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ConversasEduardo Jardim: 'A ditadura não criou nada do ponto de vista da arte'
Autor de livro que analisa três expressões artísticas fundamentais da ditadura discute a arte que escapa à censura e o papel do artista em tempos de opressão
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Eduardo Jardim: ‘A ditadura não criou nada do ponto de vista da arte’
Autor de livro que analisa três expressões artísticas fundamentais da ditadura discute a arte que escapa à censura e o papel do artista em tempos de opressão
Se não tivesse sido publicado num momento inicial da ditadura brasileira, quando os mecanismos de censura e repressão ainda não haviam sido totalmente estabelecidos, provavelmente o livro “Quarup” (José Olympio, 2014), do escritor Antonio Callado, jamais teria visto a luz do dia. O livro retrata um padre ainda jovem e idealista que acaba perdendo a ingenuidade ao viver o período entre o suicídio de Getúlio Vargas e o golpe militar de 1964. Ao final, ele acaba aderindo à luta armada contra a ditadura.
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Em seu livro “Tudo em Volta Está Deserto” (Bazar do Tempo, 2017), o filósofo e escritor Eduardo Jardim — autor de livros como “A Brasilidade Modernista” (Ponteio, 2016) e “Eu sou trezentos – Mário de Andrade, vida e obra” (Edições de Janeiro, 2015), pelo qual ganhou o prêmio Jabuti — reúne expressões artísticas típicas de três momentos distintos da ditadura como forma de explorar o avanço da repressão e da censura ao longo do período. “Quando se fala em ditadura, e na cultura durante a ditadura, se costuma pensar que foi sempre a mesma coisa, mas eu e a minha geração atravessamos momentos muito diferentes ao longo dela.”
Divulgação
Além do livro de Callado, Jardim fala do show de Gal Costa que deu origem ao álbum ao vivo “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” (1971), do qual ele esteve entre os espectadores, e da obra da poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983), de quem foi grande amigo. A conectar essas três manifestações de arte num período de intensa repressão, estão o que o autor descreve como “formas diferentes de conceber e vivenciar a relação da literatura e da música com a vida”.
Seja por ter nascido num período anterior ao endurecimento do regime, como “Quarup”, por cantar de forma mais difusa ideologicamente, tal qual Gal, ou mesmo por evitar intencionalmente em seus textos falar da política que está aí, a exemplo de Cesar, os três exemplos foram manifestações que sobreviveram a uma censura que chegou a exilar grandes expoentes da nossa arte, como Caetano e Gil.
O título do livro Jardim tomou emprestado de um verso da canção “Como 2 e 2”, de Roberto Carlos, que integrou o repertório do show de Gal: “Meu amor/ Tudo em volta está deserto, tudo certo/ Tudo certo como 2 e 2 são 5”. Além de todo um sentimento da época, o autor selecionou a canção porque o lembrava da sensação que tinha ao deixar um espetáculo artístico como o de Gal Costa. “Nos reuníamos a cada noite em um teatro no fundo de uma galeria comercial em Copacabana e vivíamos momentos mágicos de encontros e de liberação das nossas emoções. Essa experiência liberadora, de confraternização, constrastava com tudo aquilo que a gente vivia fora daquele ambiente.”
Em entrevista a Gama, Jardim também fala sobre a associação que se faz entre ditadura e um momento marcante na arte brasileira, sobre as pressões artísticas atuais e o papel do artista em tempos de censura e opressão.
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G |Por que motivo você quis juntar no livro “Tudo em Volta Está Deserto” exemplos artísticos de três momentos diferentes da ditadura, que parecem tão distintos entre si?
Eduardo Jardim |Quando se fala em ditadura, e na cultura durante a ditadura, se costuma pensar que foi sempre a mesma coisa, mas eu e a minha geração atravessamos momentos muito diferentes ao longo dela. Nos primeiros anos, de 1964 a 1968, até o AI-5, ainda havia liberdade de se expressar. Não existia exatamente uma censura, e alguns movimentos artísticos foram criados. Logo nos primeiros anos, em 1964 e 1965, criou-se no Rio e em São Paulo, por exemplo, o teatro Opinião. É verdade, eram espetáculos em salas muito pequenas, mas muito críticos do regime. Também era possível publicar um livro como “Quarup” porque não havia censura prévia nas editoras, isso só começa em 1970. Com sua solução final que defende a adesão à luta armada, “Quarup” foi escrito quase todo em 1965 e 1966, e publicado em 1967. Foi um enorme sucesso, o livro mais vendido no ano. Depois do AI-5, as coisas mudaram radicalmente. A situação política do país piorou com a tomada do poder pela linha mais dura. A censura passou a atuar de forma muito mais contundente. Até os livros passaram a ter censura prévia. Então “Quarup” certamente não seria publicado depois de 1969. Os anos 1970 foram muito difíceis, mas a criatividade ainda estava viva. Formas alternativas de fazer arte e poesia foram inventadas. Mesmo nesse período, que foi bravo do ponto de vista político e da repressão, havia experiências sendo feitas, como toda a produção poética dessa época. A poesia marginal e uma série de outros itens de uma pauta de costumes, que aparecem nesse momento e não existiam antes. A poesia da Ana Cristina Cesar foi escrita em grande parte no fim desse período. Quando ela afirma que não se interessa por essa política que está aí, já está assumindo uma atitude política. No livro, eu achava que devia tentar fazer essas distinções.
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G |Você selecionou três manifestações que não chegaram a ser proibidas ou censuradas, mas que de certa forma representam maneiras diferentes de resistência e de crítica ao regime militar. Elas são bons exemplos de como a arte se adapta e sobrevive mesmo em um momento tão difícil?
EJ |Meu livro quer mesmo mostrar que a literatura e a canção popular criam possibilidades e se reinventam nos vários contextos em que vivem. A ditadura não criou nada do ponto de vista da arte, ou da boa arte. Havia uma reação ao que estava acontecendo em artistas como Caetano, Chico ou Zé Celso, que eram super criativos.
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G |Existe uma espécie de aura em torno das manifestações artísticas de resistência ou que foram críticas à ditadura, como se a repressão tivesse criado essas manifestações. Você considera esse ponto de vista injusto?
EJ |Se não houvesse ditadura, se eles tivessem sido menos tolhidos, acho que esses artistas teriam feito coisas ainda mais criativas. O que eu não queria no livro era dar a entender que a ditadura foi responsável por uma boa arte. A arte seria muito melhor ainda sem ela. Essas pessoas que citei são gênios, fariam coisas muito melhores, não tenho dúvidas.
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G |Na sua opinião, qual é o papel dos artistas em tempo de opressão?
EJ |Na época da ditadura, tinha admiração pelo surrealismo e me impressionava muito o manifesto de Trotsky e Breton, “Por uma Arte Revolucionária Independente” (Sob Influência, 2021). Eles tinham como foco a repressão que acontecia na União Soviética, mas também, em sentido geral, queriam dizer que os artistas deviam continuar fazendo arte sem subordiná-la a alguma ideologia. Em tempos de opressão, o artista deve seguir fazendo arte. Quanto à sua atitude como cidadão, ele deve lutar contra a opressão.
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G |Você cita no livro, em relação ao show da Gal, que ele trazia uma atmosfera sombria, devido ao avanço da repressão, mas tinha uma linha ideológica menos precisa do que um movimento como o Tropicalismo. Essa era uma das formas que os artistas encontravam para resistir à censura no período?
EJ |Ali era uma experiência muito própria e específica. É possível que outras parecidas tenham acontecido. Houve sim, no álbum de Gal “Fa-Tal” (1971), um afastamento do Tropicalismo. O Tropicalismo foi o último momento do movimento modernista, no qual se procurava fazer um retrato do país e se buscava uma saída para nossos problemas. O Tropicalismo, mesmo com suas muitas perplexidades, apresenta um projeto para o Brasil, na linha do que pretenderam os modernistas de 22 e nossos principais intérpretes. O show da Gal tem um tom muito mais para baixo. Na verdade, é um espetáculo pessimista. Suas canções falam muito mais de escapar sozinho em um velho navio. O disco não aponta para saídas coletivas, como no caso do Tropicalismo, mas busca soluções mais individuais. O que eu noto é que, num ambiente extremamente repressivo, nós nos juntávamos naquela sala fechada e vivíamos uma coisa liberadora. Nos reuníamos a cada noite em um teatro no fundo de uma galeria comercial em Copacabana e vivíamos momentos mágicos de encontros e de liberação das nossas emoções. Essa experiência liberadora, de confraternização, constrastava com tudo aquilo que a gente vivia fora daquele ambiente. Quando terminava o espetáculo, íamos para casa, atravessávamos a cidade e notávamos que tudo em volta estava mesmo deserto de emoções, de esperança e de segurança. Tudo em volta está deserto. Era isso que eu queria dizer, o que a música do Caetano estava dizendo.
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G |Dá para fazer qualquer tipo de paralelo em relação à arte que era produzida naquele período e a atual?
EJ |Eu não sei responder essa pergunta. São situações tão diferentes, o que a gente vivia na época e o que a gente vive hoje, que não consigo fazer comparações e analogias. Vivemos hoje um momento muito diferente do tempo da ditadura. Quando você fala da ditadura, se — Deus que me perdoe — houver algum tipo de ditadura ainda neste país, será de forma completamente diferente daquela que vivi, porque os tempos mudaram completamente. Podemos medir nossa distância em relação àquilo, porque estamos bem longe. Pode ser que eu esteja desinformado, mas não noto na produção contemporânea alguma coisa que se aproxime, por exemplo, da música daquela época ou da literatura. Não que fôssemos melhores, os tempos é que são diferentes.
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G |Hoje os artistas brasileiros se submetem a outros tipos de censura ou pressão, na sua opinião? Quais?
EJ |Eu não vejo que isso aconteça da mesma forma. Acho que há uma exigência de tratar de certos assuntos, como o feminismo, a questão LGBTQIA+… Existe uma mudança, algumas pautas entraram e tentam se impor de uma maneira que considero às vezes até um tanto autoritária. Ser homem e não poder falar de uma personagem feminina, por exemplo. Mas não acho que isso tenha nada a ver com a censura do ponto de vista da arte. Sinto mais que essas pautas se impõem, mas não sei avaliar o quanto isso funciona como uma cobrança a que as pessoas precisem responder.
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G |Como você tem visto a reação da arte num momento em que artistas seguem sob ataque contínuo no Brasil, seja em termos políticos ou ideológicos?
EJ |O governo Bolsonaro desconfia da inteligência. Não teria como sustentar uma discussão em bases racionais e não existe ali nenhuma sensibilidade para a arte.
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G |Pessoalmente, como foi sua experiência em relação à arte e à cultura no período ditatorial?
EJ |Em 1964, eu era muito garoto. Na verdade, li “Quarup” quando foi publicado, em 1967, mas não devo ter entendido muito bem. Foi em 1968 que, na universidade, comecei a viver essas coisas e refletir sobre elas. O meu contato com isso de que falo é muito mais do segundo momento, o show da Gal, e do terceiro, com a Ana Cristina, porque eu era muito amigo dela. Então acompanhava sua vida e o que acontecia com ela. A gente conversava muito. Um dia, ela me chamou para perguntar o que eu achava de dar o título do livro que ela ia publicar de “A Teus Pés”. Fiquei sem saber o que responder. Achei que era exagerado, mas acabou ficando bonito. Havia uma coisa de submissão que me deixava meio constrangido. Na época, eu não queria que ela colocasse aquele título.
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G |No livro, você fala que a obra de Ana Cristina Cesar, tão avessa aos modismos artísticos da época, até por isso era uma contestação de seu tempo. O que quer dizer?
EJ |Ana Cristina, como muitos da minha geração, buscava escapar de um grande desconforto. Ela fez isso com sua poesia. Talvez, se ela apostasse ainda mais na força da poesia, sua vida não tivesse sido tão curta. A Ana não se ocupava da coisa de política que acontecia no nosso dia a dia. Não era assunto dela. Então, a impressão que eu tenho é que essa rejeição que ela tinha pelas questões políticas também tinha um significado político, de rejeição a uma certa maneira de se fazer política, ainda que isso não fosse de forma nenhuma algo consciente para ela. Ela nunca explicitou isso, eu é que estou dizendo.
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