Ex-namorado de Ana Cristina Cesar fala sobre as cartas de amor da poeta — Gama Revista
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Conversas

'As cartas eram o que a gente era, o que a gente sentia '

Mais de 50 anos depois, Luiz Augusto Ramalho, ex-namorado de Ana Cristina Cesar, publica cartas de amor da poeta e relembra relação vivida em meio à repressão da ditadura brasileira

Leonardo Neiva 12 de Junho de 2022

‘As cartas eram o que a gente era, o que a gente sentia ‘

Leonardo Neiva 12 de Junho de 2022
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Mais de 50 anos depois, Luiz Augusto Ramalho, ex-namorado de Ana Cristina Cesar, publica cartas de amor da poeta e relembra relação vivida em meio à repressão da ditadura brasileira

Em perspectiva, o ano de 1968 foi um dos mais atribulados social e politicamente da era dos extremos, forma como o historiador Eric Hobsbawm entitulou o complexo século 20. Nos Estados Unidos, Martin Luther King era assassinado. Na Tchecoslováquia, tinha início a Primavera de Praga, um curto mas intenso período de liberalização política na região. Enquanto isso, a ditadura militar no Brasil endurecia suas práticas, o que levou a eventos como a sexta-feira sangrenta, em junho. Embora até hoje não se saiba a contagem real de mortos no confronto entre estudantes e as forças repressoras – segundo o governo, foram três; de acordo com o Centro de Documentação de História Contemporânea da FGV (CPDOC), 28 –, fato é que o jovem Luiz Augusto Ramalho, então com 17 anos, ficou entre as dezenas de feridos após um tiro se alojar em sua perna esquerda.

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Mais do que apenas um ano de terror no Brasil, porém, 1968 também foi marcado por uma intensa produção cultural e, no caso de Ramalho e da poeta e tradutora Ana Cristina Cesar – uma das vozes femininas mais conhecidas da nossa literatura –, por uma nascente paixão. “Foi aí que nossa relação se transformou em amor, um relacionamento de muita criatividade e vontade de descobrir o mundo, de fazer coisas diferentes, entrar na literatura, no cinema, na música”, relembra Ramalho.

A dupla se conheceu na infância, passada em brincadeiras na região da Pedra Sonora, no município de Resende (RJ), onde viviam as duas famílias. No início e por muito tempo, se tratou apenas de amizade, afirma Ramalho, hoje com 70 anos e uma longa carreira nas costas, como consultor político na Alemanha e diretor de agências de cooperação internacional. Mas o amor que só foi surgir no fim da adolescência logo encontrou um obstáculo: as ameaças de repressão do governo. Sonhando com uma forma de voltar a respirar cultura e liberdade, ainda que longe do Brasil, o casal acabou decidindo viajar para a Europa no ano seguinte. Ela para a Inglaterra, ele para a Alemanha.

Ainda tenho aquela sensação incômoda, uma mistura da coisa agradável que foi o nosso diálogo com a situação ruim em que eu estava

A separação inaugurou uma frenética troca de cartas que hoje, mais de 50 anos depois, finalmente fica disponível ao público no livro “Amor Mais que Maiúsculo” (Companhia das Letras, 2022) – ainda que só em parte. Isso porque, embora Ramalho tenha guardado com cuidado as palavras da poeta, as suas acabaram se perdendo no tempo. “Hoje só consigo lembrar minhas cartas quando refletidas nas respostas dela”, conta.

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Os textos abrangem um período que vai de 1969 até 1971, durante o qual o casal conseguiu se encontrar poucas vezes. Denunciado por autoridades ao governo brasileiro, Ramalho acabou perdendo seu passaporte e passou à condição de exilado em território alemão, enquanto a escritora seguiu com o plano de retornar ao Brasil após um ano. Com o tempo e a separação prolongada, a relação foi esfriando até que o contato entre eles simplesmente se interrompeu.

Foi só em 2020, bem no início da pandemia, que Ana Cristina retornou aos sonhos de Ramalho. A reaparição lhe deu coragem para reler as cartas e uma vontade de publicá-las. “Consegui ler, mas ainda tenho aquela sensação incômoda, uma mistura da coisa agradável que foi o nosso diálogo com a situação ruim em que eu estava. Nós criamos um universo paralelo, uma esfera específica que eu chamava de ‘estado poético’, em que a gente trocava ideias com muita intensidade”, revela Ramalho em entrevista.

Na conversa com Gama, ele retoma ainda os sentimentos e a dinâmica do casal, que teve sua relação profundamente afetada por um momento de turbulência política e social que viria a mudar o mundo.

Nós criamos um universo paralelo, uma esfera específica que eu chamava de ‘estado poético’

  • G |Por que você guardou com tanto cuidado as cartas de Ana ao longo de todo esse tempo?

    Luiz Augusto Ramalho |

    Guardei as cartas como um pequeno tesouro. Ao mesmo tempo, não conseguia lê-las, tinha uma dificuldade enorme. Pedi a um jornalista que estava em Berlim para datilografá-las. Não sabia como lidar com elas porque foi um período muito intenso e doloroso. Eu não podia voltar ao Brasil, nós íamos nos separar, nossos planos de nos encontrarmos durante nossa estadia não deram certo e ainda passei um período ilegal na Alemanha, porque não tinha passaporte, sem muito sustento e sem saber o que fazer. Então foi um período estressante para mim. E tem também toda a carga emocional que vem com as cartas. Então guardei e tratei bem delas, mas segui adiando sua leitura. Fiz até algumas tentativas, entreguei as cartas datilografadas para a mãe de Ana quando teve a ECO-92 no Rio de Janeiro. Perguntei se as minhas cartas ainda existiam, mas ela não comentou. Três ou quatro anos atrás, entreguei-as ao professor Flávio Aguiar, que foi contemporâneo de Ana. Ele olhou aquele volume de cartas, ficou admirado, mas não deu uma resposta. Fiquei pensando: Será que, além do valor biográfico, elas têm também um valor literário? Será que estou escondendo uma coisa que o público merecia ler? Isso eu só voltei a pensar quando comecei a sonhar com Ana no início da pandemia. Percebi que alguma coisa estava acontecendo comigo e que essa história estava subindo à superfície de forma quase vulcânica. Pedi a pessoas que sabem de literatura e conhecem a Ana, como o Flávio e o próprio irmão dela, o Luiz, para que lessem as cartas e dessem uma opinião. Eles acabaram me convencendo de que elas tinham valor político, cultural e também literário, porque são muito bem escritas e por uma pessoa muito jovem.

  • G |Como foi voltar a essas cartas e relê-las tanto tempo depois?

    LAR |

    Continuo sentindo o coração batendo mais forte, sou profundamente afetado pelas cartas. Também porque reconheço nelas o nosso diálogo. Nós trocávamos poemas, e Ana também comentava os que escrevia para ela. Consegui ler, mas ainda tenho aquela sensação incômoda, uma mistura da coisa agradável que foi o nosso diálogo com a situação ruim em que eu estava. Nós criamos um universo paralelo, uma esfera específica que eu chamava de “estado poético”, em que a gente trocava ideias com muita intensidade. Está valendo a pena e estou feliz com a decisão de publicar as cartas e colocá-las à disposição de um público maior, que sempre apreciou e continua apreciando a poesia dela.

  • G |Há uma sensação estranha de estar abrindo um pouco da intimidade de vocês para os leitores?

    LAR |

    Eu não sou uma pessoa pública no Brasil, mas tenho uma carreira profissional internacional. Na Alemanha, tenho uma certa projeção como consultor internacional político, fui executivo em várias agências de cooperação por lá. Mas não estava no Brasil, uma esfera pública que eu efetivamente não domino. Estou até espantado com as entrevistas, porque também não é meu campo de trabalho. Atuo na área de cooperação internacional, com diálogos políticos, e de repente me vejo nesse meio literário.

  • G |A história de amor entre você e Ana já tem mais de 50 anos. O que restou na memória sobre essa relação? De que forma nasceu essa intensa paixão entre vocês?

    LAR |

    Nossas famílias conviveram desde a infância numa espécie de comunidade em Pedra Sonora, na Serrinha, perto de Penedo. Então já nos conhecíamos bem jovens. Mas na época não era amor, só amizade. O amor entra em 1968, um ano terrível no Brasil, mas também de explosão cultural. Nós fomos parte disso, típicas meninas e meninos de 1968. Fui baleado nesse ano, na Sexta-Feira Sangrenta, e depois interrogado pelo DOPS. Foi aí que nossa relação se transformou em amor, um relacionamento de muita criatividade e vontade de descobrir o mundo, de fazer coisas diferentes, entrar na literatura, no cinema, na música. Então refletimos muito o lado político e cultural, o lado inovador que teve continuidade na viagem para o exterior. Isso porque a Alemanha foi muito afetada pelo movimento de 1968, com o qual eu, aos 17 anos, me liguei imediatamente. Então temos essa mistura da vida pessoal e do momento em que as coisas repressivas, assim como as criativas, estavam acontecendo. Esse momento se mesclou com a gente. Temos a nossa esfera própria, nosso “estado poético”, mas também essa grande mudança, que não aconteceu só no Brasil. Lendo as cartas, você identifica essas expectativas, a maturidade que ela tinha em suas reflexões, que também eram minhas.

As cartas eram o que a gente era, o que a gente sentia e a forma como nos expressávamos

  • G |A poesia foi uma das coisas que despertou o interesse de vocês um no outro? O quanto essa poética se confundiu com o relacionamento com o passar do tempo?

    LAR |

    As cartas refletem um pouco o que nós fazíamos, que era um desafiar o outro o tempo todo, inclusive na radicalidade. Lembro que estávamos cursando a escola, e eu dizia que na minha próxima redação ia escrever só oito linhas. Aí ela respondia: na minha, vou borrar a prova com tinta de caneta. Tínhamos nesses desafios uma coisa positiva, que não era de competição, mas de “vamos em frente, vamos fazer”. As cartas refletem esse nosso enfoque. São quase poemas, elas podem ser lidas com essa visão poética.

  • G |Suas cartas para Ana nunca foram encontradas. Consegue se lembrar do que diziam?

    LAR |

    Eu me lembro mais através das cartas dela. Lembro que escrevi cartas que achava bonitas. Me recordo de uma em que Ana contava que tinha lido Maiakovski por minha causa. Ela diz que gostou muito e que, com a morte de Maiakovski, tinha morrido também a Revolução. Tínhamos muitas dessas discussões estéticas, mas de várias coisas já não me lembro mais. Hoje só consigo lembrar minhas cartas quando refletidas nas respostas dela.

  • G |Você se recorda da sensação da espera pela chegada das cartas de Ana? Como foi passar aquele ano em Aachen sem ela?

    LAR |

    Pelo volume, dá para ver que escrevíamos muito. Então as cartas acompanhavam nosso cotidiano e trocavam nossas ideias sobre como enxergávamos as coisas. Uma coisa interessante é a questão da adaptação. Vivíamos no Brasil, muito impregnados da realidade brasileira, e de repente tínhamos que nos adaptar a uma escola da Alemanha ou da Inglaterra. Todos esses momentos da adaptação se refletem nas cartas. É uma forma de comunicação que não existe mais. Hoje mandamos três linhas por email ou WhatsApp, mas não tem mais essa possibilidade de se aprofundar ou refletir sobre o que está acontecendo, sobre o outro. Isso vale também para as cartas que eu mandava ao Brasil, que tinham o problema da censura. Eu e meus pais usávamos uma linguagem cifrada. Meu pai também foi perseguido, então eu sempre mandava cartas no nome da minha mãe. Demorava três semanas para uma carta chegar ao Brasil e três para voltar, algo bem diferente do tipo de comunicação atual. Hoje você vê a pobreza da nossa linguagem na comunicação diária. Se você escreve uma carta com mais profundidade, mais detalhes, falando de sentimentos, é obrigado a usar uma linguagem mais complexa. Nesse sentido, era uma coisa muito benéfica termos as cartas naquela época. É quase uma vertente literária própria. Não uma poesia ou um romance, mas uma forma literária de trabalhar as coisas não só do cotidiano, mas também sentimentais e emocionais.

  • G |Você já tinha noção naquela época da qualidade da escrita da Ana?

    LAR |

    Sinceramente, não. Achava mais do que normal. As cartas eram o que a gente era, o que a gente sentia e a forma como nos expressávamos. Mas guardei as cartas com tanto carinho e pedi para serem datilografadas porque, principalmente depois do suicídio da Ana, tive a intuição de que eram importantes. Não sabia exatamente o que fazer, se era uma coisa só minha, mas em nenhum momento pensei no sentido das cartas serem muito bem escritas. Estávamos escrevendo simplesmente um para o outro, aquela era nossa forma de se comunicar.

  • G |Numa rara poesia sua que aparece no livro, você indica ter “perdido o hábito” de escrever. Isso é verdade?

    LAR |

    Não parei de escrever, sou um poeta intermitente. Tem anos em que escrevo, outros em que paro, momentos em que volto a escrever. Devo ter uma boa coleção de poemas por aí. Inclusive estou me perguntando se não vale a pena olhar com mais cuidado para todas as coisas que escrevi naquela época e também depois. Mas esse é um projeto para o futuro. Não estou pensando em concretizar agora não.

Ana não era presente no meu cotidiano, mas os sonhos mostram que ainda estava lá

  • G |Vocês se davam muito bem nas cartas, eram amantes apaixonados e intensos no que escreviam, mas os encontros pessoais tanto na Europa quanto depois, aqui no Brasil, parecem ter sido um tanto decepcionantes. Por que acha que isso aconteceu?

    LAR |

    Num primeiro momento, tivemos um período curto, mas bem vivido. Na Alemanha, fomos a um festival de rock e fizemos várias outras coisas. Mas depois eu me senti abandonado. Ana não tinha nenhuma culpa nisso, ela foi fazer uma viagem pela Europa e eu fiquei na Alemanha. Naquela época, as fronteiras não eram abertas como hoje na União Europeia. Eu precisava de um passaporte para acompanhá-la. Dois anos depois, voltei ao Brasil e encontrei Ana muito perdida. Ela tinha perdido o rumo. Estava se empenhando na carreira, era uma pessoa que tinha sempre muito interesse em mostrar as coisas dela e que batalhou para ser publicada. Mas tive a impressão de que a volta ao Brasil foi um baque. Ela fazia análise, tinha dificuldade de se concentrar. Eu estava batalhando para estudar na Alemanha, terminei o colégio e fui cursar filosofia e sociologia em Frankfurt. Então estava vivendo minha vida num ponto muito diferente dela. Houve dois movimentos, um para cá e um para lá, que acabaram nos separando. Até mantivemos contato, mas em algum momento simplesmente paramos de nos escrever. Continuei acompanhando a carreira dela sempre que saía algo no jornal, mas não mantivemos mais aquele grau de amor e intimidade. Aliás, não me lembro muito bem da última vez que a vi. Deve ter sido em 1971 ou 1972. Nessa época, vim ao Brasil, como sempre clandestino, mas não podia ficar.

  • G |Como foi para você o impacto da notícia da morte tão precoce de Ana?

    LAR |

    Quando ela faleceu, eu estava ou nas ilhas de Cabo Verde ou na Papua-Nova Guiné, onde trabalhei um período. Acho até que recebi a notícia através de uma carta enviada por minha mãe. Me abalou fortemente. A Ana tinha uma carreira incrível pela frente, ela já era um marco literário mesmo naquela época, e acho que estava a caminho de ainda fazer muita coisa boa. Mas me abalei principalmente pelo carinho que eu tinha e continuei tendo por ela. Então me afetou muito.

  • G |Você fala no prefácio que mais tarde acabou reconhecendo a angústia de Ana nas cartas que ela mandava. O que quis dizer com isso?

    LAR |

    Era um pouco a radicalidade dela, que é necessária para a poesia. A poesia tem que ser radical, não pode ser morna. Mas essa radicalidade também criava dificuldades. Em uma carta, eu dizia sentir muita falta do Brasil, como se tivesse sido arrancado do país quanto estava empenhado politicamente. Uma das respostas dela foi: “Eu queria ter as tuas saudades”. Acho que a Ana sentiu esse retorno ao país como uma coisa negativa. Mas esse aspecto do ímpeto da poeta, a radicalidade necessária na forma de escrever e de ser é uma coisa que te leva a esbarrar nas pessoas, nos limites, na sociedade. Acho que isso também contribuiu para um momento de desespero.

  • G |Numa das cartas, Ana pergunta “Por que essa impressão que você fugiu?” Era assim que vocês dois se sentiam em relação à separação? Havia alguma parcela de culpa?

    LAR |

    Acho que não, porque nós estávamos sendo jogados de um lado para o outro, como num destino de tragédia grega. Intervém um fator político que, pela repressão, quebra o relacionamento pessoal. Nesse sentido, o personagem não tem culpa. Estávamos sendo direcionados por uma força externa. Claro que não foi só externa, porque eu fiz coisas, era uma pessoa politicamente muito radical. Falei o que achava e ainda acho que tinha que falar, sem pensar nas consequências. Então essa intervenção de fora – um empresário alemão que liga para a embaixada brasileira para me denunciar, um adido militar que retira meu passaporte –, tudo isso foi um jogo com forças externas. Nem ela nem eu sentíamos culpa nisso. Foi uma situação realmente de tragédia.

  • G |Você diz que recentemente voltou a sonhar com a Ana. Ainda tinha o costume de pensar nela?

    LAR |

    Eu sinceramente não pensava nela com muita frequência. Tenho outra vida, esposa, filhos e netos. Mas com certeza ela estava presente, senão não apareceria de repente em meio a uma crise externa, que foi a pandemia. Depois sonhei duas, três, quatro vezes. Eram sonhos agradáveis. Eu tinha um diálogo com Ana, ela estava bem. Isso apareceu de alguma profundidade na minha memória. Passei anos no Pacífico Sul, na Papua-Nova Guiné, fui consultor do governo do México durante algum tempo, então vivi uma vida muito agitada. Estive em mais de 120 países profissionalmente. Ana não era presente no meu cotidiano, mas os sonhos mostram que ainda estava lá, como uma coisa profundamente enraizada que escolhe um determinado momento para surgir.