Por que mulheres censuram seus corpos e ideias? — Gama Revista
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Sociedade

Por que mulheres censuram seus corpos e ideias?

Desestimuladas a seguir seus sonhos desde a infãncia e obrigadas a caber em um padrão de beleza, as mulheres são as que mais sofrem com a síndrome da impostora

Ana Mosquera 07 de Agosto de 2022

Por que mulheres censuram seus corpos e ideias?

Ana Mosquera 07 de Agosto de 2022
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Desestimuladas a seguir seus sonhos desde a infãncia e obrigadas a caber em um padrão de beleza, as mulheres são as que mais sofrem com a síndrome da impostora

“Repressão censória do próprio comportamento, palavras, ações, escritos etc” é a definição de autocensura do Oxford Languages. Por mais que o prefixo “auto” signifique “a si mesmo”, a reflexão vai muito além do “eu” quando o assunto é reprimir as próprias atitudes. Ainda mais se o sujeito da ação for feminino.

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É nas mais diversas áreas da vida que a autocensura acomete mais mulheres do que homens: nos relacionamentos afetivos, na maternidade, no trabalho. Segundo relatório do Linkedin, de 2018, as mulheres se candidatam 20% menos para as vagas, além de estarem 26% menos propícias a pedir referências para ingressar em um novo trabalho.

A falta de estímulo, desde a infância, para que meninas exerçam as atividades que quiserem — da matemática a alguns tipos de brincadeiras — só corrobora para que, no futuro, as mulheres possam sofrer com o chamado fenômeno da impostora e ocupem menos cargos de liderança. Hoje são 25% das posições nas empresas, sendo 3% de mulheres negras, segundo levantamento da Gestão Kairós.

Cunhada em 1978, pelas psicólogas Pauline Clance e Suzanne Imes, da Universidade da Geórgia (EUA), a expressão surgiu para definir pessoas capacitadas que não conseguem reconhecer o próprio sucesso e se autossabotam. Apesar de mais conhecido como síndrome da impostora, o fenômeno não foi classificado como doença mental pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

O fenômeno vem sendo bastante abordado nos últimos anos e a psicóloga e professora da Puc-SP, Renata Paparelli, acredita que isso tenha a ver com as novas formas de organização do trabalho, em que se busca a excelência a todo o custo. No caso das mulheres, é ainda pior, porque a exigência vem somada às dimensões impostas pelo gênero: gestão afetiva familiar, trabalho doméstico, cuidado com os filhos.

O mais importante, segundo as especialistas, é nomear os sentimentos. Assim como o fenômeno da impostora, o mansplaining (quando os homens explicam coisas óbvias às mulheres) e o manterrupting (quando a mulher é interrompida por um homem, em sua fala) devem ser nomeados, para serem combatidos.

“Se eu pegar uma mulher já fragilizada com essa sensação de impostora, pode ser que ela comece a sofrer mais com outros tipos de violência psicológica”, fala a psicóloga, terapeuta e professora da Puc-SP, Ana Laura Schliemann.

A verdade é que imposições e violências atravessam todas as esferas de vida das mulheres em uma sociedade patriarcal. Na mesma época em que mamilos são considerados polêmicos e a decisão de gestar um filho é invadida pela opinião de todos, a ditadura sobre o corpo feminino se intensifica nas redes sociais e entre quatro paredes.

Do próprio corpo

Há dois meses, Luísa Sonza trocou os decotes por macacões fechados até o pescoço para subir aos palcos, questionada se a qualidade do seu show tinha relação com a forma como se vestia.

Por medo do descrédito, do assédio e do preconceito, a todo o tempo, mulheres estão abrindo mão de algum tipo de exposição do próprio corpo, seja daquele considerado padrão ou do que se enquadra fora dele.

Foi essa ditadura da beleza feminina que fez com que a psicóloga Camila Fabre passasse boa parte da vida preocupada com dietas, chegasse a uma depressão, que levou ao emagrecimento forçado, e a uma posterior compulsão alimentar.

Antes da autocensura virtual, ela passou a evitar vivências reais por não se sentir enquadrada. “Quando engordei, parei de ir a lugares que gostava, como festas, samba e encontro com amigos. Parei de ficar com os caras. Foi muito dolorido”, diz a Gama.

A autocensura tem raízes profundas no patriarcado, que controla o corpo feminino da exposição pública aos direitos reprodutivos

Após uma fase intensa de terapias, a relação com o corpo mudou de tal modo que ela criou um workshop, o “Verão com Compaixão”, para ampliar a discussão para mais mulheres. “A cura não é individual, é coletiva, porque nós saímos ‘lá fora’ e continuamos a ser bombardeadas com a informação de que nossos corpos são inadequados.”

“Para você ter um corpo de praia, faça o seguinte: tenha um corpo e vá à praia!”, disse Paparelli, sobre uma campanha pró diversidade dos corpos. Segundo ela, a desconstrução da dicotomia nas propagandas, por exemplo, colabora para uma relação mais amigável da mulher com o próprio corpo e com a sua exposição, onde quer que seja.

“Conforme a gente vai tendo contato com a diversidade, vamos nos libertando do padrão. Os corpos têm que circular na sua infinita e maravilhosa beleza“, ela diz.

A autocensura, entretanto, tem raízes profundas no patriarcado, que controla o corpo feminino da exposição pública aos direitos reprodutivos. “A forma com que a sociedade lida com os corpos femininos faz com que as mulheres façam escolhas sobre o que elas vestem e como se comportam”, lembra a psicóloga e executiva de recursos humanos, Mafoane Odara.

Para ela, apegar-se a práticas que trabalham a compaixão do corpo e da mente femininas, como autoconhecimento e autocuidado, são fundamentais para barrar a autocensura e o fenômeno da impostora.

Dos projetos pessoais

“Criei essa crença de que não era boa o suficiente”, diz a jornalista e social media, Bianca Kachani. Após viver um relacionamento abusivo de três anos, ela conta que perdeu não só a autoestima, mas a companhia de pessoas queridas e que deixou de ir atrás de alguns sonhos, como cursar gastronomia e teatro – hoje realizados.

Tudo por conta dessa voz externa, do ex-companheiro, que se internalizou: “Quando você é colocada num lugar de inferioridade acaba acarretando uma autocensura”.

Além da falta de incentivo e de ter sua capacidade de criação contrariada o tempo todo, as traições que sofreu fizeram aumentar a sensação de suposta ineficiência: “Criei essa insegurança interna, por achar que eu não era suficiente para aquela pessoa, que ela sempre ia buscar coisas que faltavam em mim em outras”.

Segundo Odara, não é raro que mulheres, sobretudo mais jovens, passem por relacionamentos abusivos, dada a colocação de que precisam agradar constantemente. Um estudo publicado pela Science, em 2017, da pesquisadora Lin Bian, da Universidade de Illinois, apontou que, a partir dos seis anos, meninas passam a achar meninos mais inteligentes do que elas.

Somos formatadas, desde criança, a não explorar nossos dons e talentos

“Esse sistema do patriarcado é feito com séculos de expertise. Ele é extremamente sofisticado, pois somos formatadas, desde criança, a não explorar nossos dons e talentos“, diz a consultora e palestrante em diversidade, Alexandra Loras.

“É preciso trazer menos a imagem do lugar e do papel de gênero definidos, que é o da mulher em casa e o do homem no mundo externo”, comenta Odara.

“Ao conviver mais com crianças, a gente vê que essa voz interna não existe. A gente tem essa confiança, esse amor próprio, essa liberdade de ser com a gente é. É algo aprendido”, diz a publicitária Luiza Voll, mãe de um bebê de oito meses.

Ao lado da jornalista Dani Arrais, Voll é uma das sócias-fundadoras da Contente.vc, plataforma que visa promover o bem-estar digital e uma relação mais saudável com a internet, essa que pode ser o algoz ou a aliada da impostora.

“A gente sempre se comparou, mas, com a internet, tem um cardápio extenso para todos os gostos, em que você pode mergulhar na sua ‘nóia’ preferida por horas a fio”. Mas ela logo contrapõe, “Ao mesmo tempo, ela é a grande responsável por a gente se conscientizar sobre as microviolências”, e aproveita para citar uma frase da escritora indiana Rupi Kaur: “Que alívio que as minhas dores não eram só minhas”.

Da liderança no trabalho

“Foram muitos anos me sabotando, me escondendo nos bastidores do meu próprio trabalho”, fala a pesquisadora de culturas alimentares, Patty Durães. “Quando me reconheço com meus dois recortes, feminino-negro, o exercício da libertação corporal, poética, profissional e afetiva precisa de mais esforços.

Essa sensação de não merecimento e de não pertencimento aos espaços, como pontua Durães e reforça Odara, deve-se ao fato de que mulheres negras ocupam 3% dos cargos de liderança em grandes empresas, segundo levantamento da consultoria de diversidade Gestão Kairós.

O maior empoderamento feminino é econômico

Isso sem falar nas diferenças salariais, já que uma mulher negra chega a receber 40% do valor pago a um homem branco que ocupa o mesmo cargo.

“Mulheres negras sofrem mais, porque existe essa interseccionalidade de gênero e raça, mas também a dificuldade do empoderamento econômico. O maior empoderamento feminino é econômico. Isso me dá liberdade de ser minha melhor versão“, ressalta Loras, que conta que, no passado, chegou a acreditar que abundância e prosperidade não eram para ela.

Ao trabalhar com mulheres em um ambiente competitivo, como o corporativo, ela lembra que combater a autocensura e o fenômeno da impostora no campo do trabalho também inclui manter uma rede de apoio.

“O fato de você transitar ao lado de pessoas que torcem por você, que estão te estimulando a crescer, vai mudar muito a sua forma de se enxergar.”

Encarar os desafios que vêm aceitando hoje, exemplifica Durães, só é possível graças ao apoio da família e de outras profissionais da área. “Nessa luta me visto das minhas heranças ancestrais, para deixar um legado para as meninas negras que nem sabem da possibilidade de co-existir e criar em outros mundos.”

Acolhendo a impostora

No seriado espanhol “Valéria” (2020), da Netflix, a protagonista de mesmo nome conta com a ajuda das três melhores amigas para os desabafos sobre seu lado impostora, que a impede de finalizar a escrita de um livro.

Por mais clichê que possa parecer, cercar-se de uma rede de apoio é dos passos mais relevantes para mulheres que andam questionando sua performance. “Quando a gente fala de saúde mental, a gente fala de rede”, lembra Paparelli, “é aquilo que protege, que acalenta, que nina, que impede a gente de se esborrachar quando a gente cai, que nos põe fora do isolamento”.

“Envolver mais pessoas no processo faz uma diferença tremenda no calar essa voz”, comenta Voll. Junto com o aprendizado social, ela sugere, individualmente, criar diálogos internos. “Talvez uma forma de calar seja conversar com essa voz, que está ali diariamente a cada convite, a cada nova oportunidade.”s

Para Odara, autoconhecimento e autocuidado são dimensões bastante importantes dessa transformação, assim como a valorização da potência e da competência femininas. Há que acolher a impostora, pois ela sempre estará à espreita.

A última dica, e não menos importante, é o letramento racial e feminista. “É uma reflexão que precisa acontecer a todo momento. Cada vez que encontro um grupo para falar sobre desenvolvimento, percebo o quanto é importante nomear esses sentimentos”, finaliza Odara.

E sempre resgatar as primeiras perguntas: “Por que preciso dar conta de tudo?”, “Preciso ser excelente para quem?”.