Um Grande Dia para as Escritoras
Livro reúne coro de vozes de mulheres presentes em fotografia histórica para a literatura feminina no Brasil
No dia 12 de junho de 2022, quase 500 escritoras se reuniram na arquibancada do estádio Pacaembu, em São Paulo, para uma foto histórica. Durante A Feira do Livro, evento organizado pela revista Quatro Cinco Um, a imagem se juntou a várias outras registradas pelo país, em cidades como Fortaleza, Roraima, Vitória, Goiânia, Salvador, Porto Alegre e Rio de Janeiro. A ideia era fazer a releitura de “Um Grande Dia no Harlem” (1958), fotografia clássica de Art Kane com célebres jazzistas da época, só que celebrando e reforçando a grande presença e diversidade de mulheres na literatura brasileira.
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Além de um marco recente na escrita feminina do país, o evento agora também se tornou livro, com o lançamento de “Um Grande Dia para as Escritoras” (Bazar do Tempo, 2023). A obra faz um registro coletivo do movimento, que tomou 50 cidades brasileiras e reuniu mais de 2,3 mil autoras. “Juntas lotamos de ponta a ponta aquele estádio e entoamos um coro de gerações. Igualmente juntas, lotamos coretos, praças e escadarias. Fomos milhares nas fotos em que só havia cinco. Seremos milhares em qualquer foto que vier depois”, escreve Giovana Madalosso, autora de livros como “Suíte Tóquio” (Todavia, 2020) e “Tudo Pode Ser Roubado” (Todavia, 2018), também idealizadora do movimento.
Nas páginas do livro, se une a ela um coro de vozes, numa espécie de jogral por escrito que ilustra a diversidade que compõe a literatura feita por mulheres. “Participar desse movimento é poder dizer e fazer ressoar nossas vozes, nossas palavras cantadas, encantadas”, diz num dos muitos depoimentos do livro Sony Ferseck, escritora e poeta pertencente ao povo indígena Macuxi.
“Criamos e publicamos, mesmo em um país machista, racista e homofóbico. Às vezes, escrevemos com leveza, em outros momentos, somos mulheres pesadas, porém seguimos firmando a nossa escrita”, escreve Esmeralda Ribeiro, que integra o coletivo de autoras negras Quilombhoje e cujo texto — uma carta a Maria Firmina dos Reis (1822-1917), primeira romancista negra do Brasil — Gama reproduz abaixo.
Querida ancestral das letras, batemos paô pela sua história literária, por você ter sido a primeira romancista negra do Brasil. Esta missiva é uma conexão secular para evidenciar a sua e a nossa pluralidade no modo como vivemos e escrevemos. Ancestralidade exige respeito, deveria chamá-la por senhora, mas serei reverente no uso das palavras.
Sabe, Maria Firmina, ainda no século XXI, quebramos o conceito da representação ser responsabilidade de uma única mulher preta, porque isso nos sufoca, nos molda e também nos silencia. Tenho voz, temos vozes e queremos falar, gritar, esbravejar, amar, sussurrar. Se queremos ir rapidamente, vamos sozinhas. Quando queremos ir longe, vamos acompanhadas. Por isso, no momento da foto, no estádio do Pacaembu, ficamos juntas, conversamos, nos abraçamos e até criamos um quilombo literário virtual, que depois foi celebrado no Julho das Pretas com a produção de uma foto histórica na Escadaria do Bixiga. Foi lindo também ver o encontro de gerações de escritoras.
Maria Firmina, você foi a primeira e única no seu tempo. É preciso ser guardiã da sua história e algumas são, como a escritora Tatiana Nascimento, com cartazes com imagens suas, conectada com sua devida importância literária. Foi ela quem me apresentou o projeto Um Grande Dia e eu também fui convidando outras escritoras negras para conhecer a iniciativa. Todo o dia 11 de março celebramos a data do seu nascimento em 1822. Divulgamos os seus feitos, como a publicação, em 1859, do romance abolicionista Úrsula. Além disso, como educadora, você criou a primeira escola mista e também foi pioneira nas publicações e na área da educação, ou seja, foi uma mulher à frente do seu tempo.
Ainda no século XXI, quebramos o conceito da representação ser responsabilidade de uma única mulher preta, porque isso nos sufoca, nos molda e também nos silencia
Sabe, Maria Firmina, agora no século XXI, existem inúmeras escritoras brancas, asiáticas, indígenas e negras. Na foto do Um Grande Dia, nós, mulheres negras e não negras, estávamos nos conectando com a sua pluralidade, porque você, Maria Firmina, deixou escritos em diversos gêneros literários, podemos encontrar até composições suas. Sim, estávamos lá, porque somos suas herdeiras literárias.
Maria Firmina, você iria gostar e se orgulhar de ver que, no hiato dos séculos, criamos e publicamos, mesmo em um país machista, racista e homofóbico. Às vezes, escrevemos com leveza, em outros momentos, somos mulheres pesadas, porém seguimos firmando a nossa escrita. Não é pública e nem notória a desafiante tarefa de encontrar as chaves escondidas com os “cavaleiros”, por isso, abrimos algumas portas literárias e jogamos as chaves fora. Ainda há outras portas trancafiadas, mas vamos abri-las!
Sabe, Maria Firmina, você ficaria surpresa, porque ainda temos dúvidas, nós, escritoras negras, se podemos ou não pisar firme no caminho da escrita. Algumas de nós precisam da sua coragem e certeza para pisar nesse novo solo letrado, desconstruído de gêneros literários e humanos. Dancemos ou não, com o som das palavras, composta por nós mesmas.
Sabe, Maria Firmina, nem todas as escritoras negras estavam lá para a foto do Um Grande Dia, mas como guardiã de memória é preciso nomear algumas delas: Alzira Rufino, Bianca Santana, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Dinha Alves, Djamila Ribeiro, Geni Guimarães, Eliana Alves Cruz, Elisa Lucinda, Esmeralda Ortiz, Dona Jacira (Jacira Roque de Oliveira), Jenyffer Nascimento, Kiusam de Oliveira, Lia Vieira, Miriam Alves, Neide Almeida, Nilza Iraci, Raquel Almeida, Roseane Borges, Ryane Leão, Sueli Carneiro. E lembrar também das potências de tantas outras escritoras negras, ainda, invisibilizadas.
Abrimos algumas portas literárias e jogamos as chaves fora. Ainda há outras portas trancafiadas, mas vamos abri-las!
Sabe, Maria Firmina dos Reis, foi bonito de ver um número significativo de escritoras negras lá no estádio do Pacaembu. Foi uma ação contagiante, mostrando nossos rostos, nossos textos. Entraremos também para a história, porque não foi uma simples foto e sim um ato cultural e político para afirmar que estamos aqui, existimos, somos escritoras e nossas escrevivências estão publicadas em diversos gêneros e espaços literários. Para finalizar esta missiva, querida Maria Firmina, reforço o fato do registro fotográfico ter acontecido no Dia dos Namorados, dia 12 de junho, relembrando a estrofe de uma cantiga do coletivo Quilombhoje Literatura: “No Quilombo de Palavras, a gente ama e protesta”.
Obrigada!
Esmeralda Ribeiro É escritora, editora e jornalista. Integra os coletivos Quilombhoje Literatura e Flores de Baobá — Escritoras Negras. É uma das editoras da série Cadernos Negros, na qual tem textos publicados, assim como em diversas antologias. Idealizou os projetos Sarau Afro Mix, Xirê de Palavra & Poesia Afro. Publicou dois livros individuais: Malungos & Milongas (conto) e Orukomi (Meu nome), livro infantojuvenil.
- Um Grande Dia para as Escritoras
- Deborah Goldemberg, Esmeralda Ribeiro, Giovana Madalosso, Paula Carvalho, Sony Ferseck (Org.)
- Bazar do Tempo
- 176 páginas
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