A mulher na literatura e a literatura feminista — Gama Revista
Mulher: o que falta?
Icone para abrir

2

Semana

Elas dão a letra

Historicamente apagadas da literatura, mulheres emergem com obras feministas na contramão da crise do mercado editorial. Gama traz ainda uma seleção de lançamentos que valem o lugar na estante

Mariana Payno 07 de Março de 2021

Elas dão a letra

Mariana Payno 07 de Março de 2021
Isabela Durão

Historicamente apagadas da literatura, mulheres emergem com obras feministas na contramão da crise do mercado editorial. Gama traz ainda uma seleção de lançamentos que valem o lugar na estante

Quando embarcaram no desafio #readwomen2014, criado pela autora britânica Joanna Walsh, as milhões de leitoras que compartilharam fotos de livros escritos por mulheres nas redes sociais talvez não imaginassem que aquilo poderia fazer parte de uma transformação, ainda germinando, do mercado editorial. Inspiradas pela mobilização online, no ano seguinte, as brasileiras Juliana Gomes, Michelle Henriques e Juliana Leuenroth organizaram a primeira turma do clube Leia Mulheres — que, com a ideia de estimular a divulgação de obras de autoria feminina, já alcançou mais de 100 cidades no Brasil e cruzou o oceano até Portugal.

Não à toa, outros movimentos por visibilidade na literatura começaram a fazer coro ao Leia Mulheres. Embora elas sejam maioria nas diversas pontas do mundo dos livros, entre editoras, revisoras, tradutoras e leitoras no Brasil, era incômoda sua ausência em espaços de prestígio como os importantes prêmios nacionais e internacionais e os festivais — dívida que a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), por exemplo, só pagou em 2017, na sua 15ª edição. Outras iniciativas, como o Mulherio das Letras, organizado pela vencedora do Jabuti Maria Valéria Rezende, e listas online de títulos passaram a reivindicar microfone para essas vozes historicamente apagadas.

Hoje não é mais o caso de dizer que as mulheres não escrevem, a questão principal é a visibilidade

“Hoje não é mais o caso de dizer que as mulheres não escrevem [como se dizia no passado], a questão principal é a visibilidade”, observa Regina Dalcastagnè, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília que coordena estudos investigando o perfil de personagens e autores em centenas de obras publicadas em solo nacional ao longo do tempo. Em um deles, constatou que mais de 70% dos livros impressos no Brasil entre 2005 e 2014 eram escritos por homens.

A busca por narrativas diferentes da masculina hegemônica não se descola, é claro, da ascensão das pautas identitárias nos anos 2010. Depois de uma espécie de apagão entre as décadas de 1990 e 2000, a luta pelos direitos das mulheres ressurgiu com velhas e novas demandas em protestos nas ruas, campanhas nas redes sociais e formação de coletivos na chamada quarta onda do movimento feminista. “É uma outra linguagem política, diferente do feminismo tradicional, porque usa muito a cultura não como plataforma de conteúdo e propaganda, mas como recurso de expressão”, diz Heloisa Buarque de Hollanda, professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das maiores pesquisadoras brasileiras sobre as questões de gênero na literatura, tendo organizado inúmeras coletâneas de ficção e não-ficção.

Aceno ao futuro

Prova dessa constatação é uma de suas recém-lançadas empreitadas, o livro “As 29 Poetas Hoje” (Companhia das Letras, veja mais abaixo). O volume reúne a poesia de uma geração que faz dos versos um lugar de fala — movimento que, para Hollanda, começou a ser gestado com Ana Cristina Cesar na década de 1970 e galgou níveis mais profundos com Angélica Freitas e o seu celebrado “O Útero é do Tamanho de um Punho” (Cosac Naify, 2012), reeditado pela Companhia das Letras em 2017.

“A Ana C virou um ponto de detonação ao se perguntar muito o que é a literatura feminina, e você tem, a partir daí, uma preocupação focal sobre o que é escrever como uma mulher”, diz a pesquisadora. “E a Angélica coloca isso como problema e aprofunda. Havia um abafamento dessa voz, e ela pegou pesado: faz aquela poesia em que vai fundo, vai dissecando, para saber o que é a mulher.” Nessa viagem ao centro do corpo, não raro aparecem temas como a menstruação, o aborto, o parto, o desejo. “É uma busca que se liberta da visão do homem, uma poesia muito forte, muito política. Uma reviravolta fascinante.”

A demanda do feminismo negro vem de muito antes, mas nunca foi escutada como é agora. Uma das grandes vitórias da quarta onda é ser ouvida

Para Regina Dalcastagnè, da UnB, a questão de gênero salta das páginas hoje, “mais do que nunca, como uma necessidade”. E se manifesta, literariamente, de diversas formas: tão diversa quanto as pautas que emergem nesse novo momento do feminismo é a renovação do interesse por obras que contemplem diversas vertentes de pensamento. “Estamos diversificando mais na geografia também, com mulheres latinoamericanas, africanas, do nordeste do Brasil. Tem muito a ver com essa ideia do decolonial”, afirma Ciça Impellizieri, fundadora da editora Bazar do Tempo, que tem concentrado as energias em publicações de cunho feminista.

A partir de um olhar que subverte o eurocentrismo branco, as mulheres negras têm conquistado cada vez mais espaço entre as leitoras e os leitores. “A demanda do feminismo negro vem de muito antes, mas nunca foi escutada como é agora. Uma das grandes vitórias da quarta onda é ser ouvida”, avalia Hollanda. Nessa toada, o “Pequeno Manual Antirracista” (Companhia das Letras, 2019), de Djamila Ribeiro, uma das principais representantes do feminismo negro no Brasil, foi o livro mais vendido pela Amazon no país em 2020. É crescente, por aqui, a atenção pelos escritos não só de precursoras como Angela Davis, Audre Lorde (publicada em um esforço coletivo de quatro editoras no ano passado) e Lélia Gonzalez (veja mais abaixo) como de nomes mais jovens que falam da experiência da mulher negra, transitando entre regiões e estilos diferentes.

Se, no Brasil, temos Jarid Arraes com “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis” (Pólen, 2017) e o finalista do Jabuti “Um Corpo Negro” (Nosotros, 2019), de Lubi Prates, a condição da mulher africana está na obra viral das nigerianas Chimamanda Ngozi Adichie — com seu best-seller “Sejamos Todos Feministas” (Companhia das Letras, 2015), entre outros premiados — e Ayòbámi Adébáyò, cujo “Fique Comigo” (Harper Collins, 2018) foi o segundo livro mais vendido da Flip em 2019. O sucesso das duas, aliás, abriu o caminho para o público brasileiro conhecer Buchi Emecheta (1944-2017), pioneira da Nigéria e inspiração para as que vieram depois.

Volta ao passado

Não menos importante, a estrada que ficou para trás — e que, evidentemente, nos trouxe até aqui — tem seu espaço na lista atualizada de leituras essenciais. Entre os clássicos revisitados, estão livros teóricos e romances resgatados depois de décadas de poeira no fundo da estante. Na esteira do manual de Djamila Ribeiro, ocupando a segunda posição dos mais vendidos de 2020 pela Amazon, está “Mulheres que Correm com os Lobos” (Rocco, 2018), estreia da psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés em 1989 — recomendado pelo clube de leitura da atriz Emma Watson, ele reinou por 145 semanas na lista de mais vendidos do The New York Times recentemente. Obras de Virginia Woolf (veja mais abaixo) e Simone de Beauvoir e títulos como “O Conto da Aia” — que ganhou continuação depois do sucesso da série produzida pelo Hulu — também têm lugar entre as leitoras mais jovens.

“É impossível não olhar para o passado. Temos que fazer esse caminho para chegar até hoje, senão perdemos muito do debate que existe, das tensões que existem, da própria mola de transição de uma teoria para outra. É um andar para frente bem horizontal”, diz Hollanda. Foi pensando nisso que ela organizou a coleção Pensamento Feminista, da editora Bazar do Tempo, que parte de conceitos fundamentais do feminismo até perspectivas mais atuais, como a decolonialidade e as teorias queer. A ideia era se tornar uma espécie de repertório teórico para o ativismo contemporâneo. “Foi a contribuição de uma feminista velha que quer deixar a casa arrumada”, brinca. “É importante que a gente preste cada vez mais atenção e use essa herança.”

Resgatar obras fundamentais do passado também está entre as missões da editora mineira Luas (veja mais abaixo), que criou uma coleção dedicada a autoras brasileiras do século 19, como Nísia Floresta e Ercília Nogueira Cobra. “Eu sou da área de Letras e sempre me questionei: cadê as mulheres? Existe uma trajetória, apesar de invisibilizada, de uma escrita muito subversiva”, diz a fundadora Cecília Castro. “Acho que nós, mulheres contemporâneas, estamos desejando esses resgates ancestrais. Queremos preencher essas lacunas.”

Um bom negócio

Preenchê-las significou também encontrar oportunidades mais generosas em um mercado editorial constantemente afetado pela crise. Enquanto grupos maiores aproveitaram a onda de interesse pelas leituras feministas para recuperar ou criar novos selos — a exemplo da Record com o Rosa dos Tempos, revivido lá dos anos 1990 –, as editoras pequenas passaram a se especializar nesse tipo de publicação. “O mercado sentiu que boa parte da população leitora está buscando esses livros, então fica muito aquecido. Nas últimas feiras de aquisição de direitos, houve muito mais oferta internacional de livros de mulheres e sobre mulheres”, diz Ciça Impellizieri, da Bazar do Tempo.

O mercado sentiu que boa parte da população leitora está buscando esses livros, então fica muito aquecido

Seja revelando novas vozes ou trazendo ao Brasil textos clássicos de décadas atrás e nunca publicados aqui, muitas casas independentes acabaram esbarrando, com a literatura feminista, em duas tendências que têm dado sobrevida ao mundo livreiro no país: a curadoria especializada e os clubes de leitura. “Existe essa cooperação por trás de um interesse comum das editoras pequenas de realmente reforçar a presença dessas autoras e dessas obras. Fomos descobrindo não só novos textos, mas um nicho de mercado”, observa Impellizieri. Para ela, o boom não tem volta. “Acho que não é uma fase. Foi uma mudança de paradigma mesmo: as mulheres estão tendo e vão continuar a ter mais espaço. Fora as questões idealistas, existe uma demanda do mercado também”, avalia.

É por isso que Heloisa Buarque de Hollanda se anima com o cenário. “Fico muito feliz, sendo feminista desde os anos 1970, porque agora vejo acontecer o que sempre sonhei: no meu tempo era desconfortável ser feminista. Agora, a palavra existe.”

O que vem por aí

Não faltam opções de leituras feministas no primeiro semestre de 2021. Gama faz uma seleção dos lançamentos que valem um lugar na estante

Novas vozes

A abundante produção de uma nova geração de escritoras que debate temas como a violência sexual, o corpo feminino e o racismo em diferentes estilos de prosa e poesia ganha duas coletâneas. “As 29 Poetas Hoje” (Companhia das Letras), organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, reverbera o icônico título “26 Poetas Hoje” (1976), também publicado por ela. Dessa vez, no entanto, são mulheres negras, brancas e indígenas, trans e cis, hétero e lésbicas que expõem seus versos — entre os nomes, estão Adelaide Ivánova, Renata Machado Tupinambá, Jarid Arres e Mel Duarte. Já “Carolinas”, a ser lançado pela Bazar do Tempo em abril, reúne os escritos — muitos inspirados em Carolina Maria de Jesus — de quase 200 autoras negras que participaram de oficinas ministradas por veteranos como Ana Paula Lisboa e Itamar Vieira Jr. na Flup (Festa Literária das Periferias).

O retorno de Virginia Woolf

Para os fãs de um bom clássico, a Nós traz boas notícias com a reedição de textos de Virginia Woolf. Já saíram do forno o primeiro volume dos diários que revelam 44 anos de memórias da autora britânica e “Um Esboço do Passado”, ensaio autobiográfico escrito no fim da vida. A casa pretende imprimir ainda a história infantil “A Cortina da Tia Bá” e uma versão infantojuvenil de “Um Quarto Só Seu”. Para as adultas, o seminal ensaio de 1929 tem nova tradução, acompanhada de outros dois textos de Woolf, no primeiro livro publicado pelo Clube F — clube de leituras feministas lançado neste mês pela editora Bazar do Tempo.

Um olhar para o passado

Trazer à luz autoras brasileiras visionárias e esquecidas é o objetivo da Coleção Precursoras, criada no ano passado pela editora mineira Luas — já nascida, aliás, com a alcunha de feminista e a missão de publicar apenas mulheres. Neste semestre, saem pelo selo “Virgindade Inútil e Anti-higiênica” (1924-1927), com um ensaio e uma novela de Ercília Nogueira Cobra, e “A Mulher é uma Degenerada” (1932), de Maria Lacerda de Moura. A importância de cultivar referências pioneiras também norteia “Cartas a uma Negra” (Todavia), da escritora e ativista de Martinica Françoise Ega. O livro é um conjunto de cartas — endereçadas mas jamais entregues a Carolina Maria de Jesus e datadas entre 1962 e 1964 — sobre a situação das trabalhadoras antilhanas na França.

Vidas feministas

Memórias, biografias e uma ficção meio autobiográfica revisitam as trajetórias de diferentes mulheres importantes para a causa. Em “Recordações da Minha Inexistência” (Companhia das Letras), a historiadora norte-americana e autora do best-seller “Os Homens Explicam Tudo para Mim” (2008), Rebecca Solnit, narra sua formação como ativista, a luta contra as pequenas opressões cotidianas e a conquista de uma voz. De volta ao Brasil, a biografia “Metade é Verdade” (Edições Sesc), de Alvaro Machado, desvenda a figura da atriz e produtora cultural Ruth Escobar, que levou o feminismo aos palcos e à política; e “Dona Ivone Lara: Sorriso Negro” (Cobogó), de Mila Burns, resgata a história do disco gravado em 1981 pela sambista coroada em um reino dominado por homens. Na ficção, “Loira Suicida” (Companhia das Letras), de Darcey Steinke, um marco do movimento libertário nos EUA, chega ao Brasil três décadas depois de sua publicação original. O romance dialoga com a literatura queer e retrata uma vida regada a sexo e drogas na São Francisco dos anos 1990.

Edições inéditas

Títulos representativos de diferentes vertentes da teoria feminista, até então inéditos no Brasil, chegam às livrarias neste semestre. Autora de uma obra vasta sobre a violência e a vulnerabilidade vivida pelas mulheres latinoamericanas, sobretudo as indígenas, a consagrada antropóloga argentina Rita Segato foi professora da Universidade de Brasília por 30 anos, mas só agora terá seus livros publicados no Brasil — pela Bazar do Tempo, sairão cinco títulos a partir de junho. Em 2021 vêm os dois primeiros: “Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios”, como parte do Clube F, e “Guerra Contra as Mulheres”. Já do norte global desembarcam nos próximos meses por aqui “Cidade Feminista” (Oficina Raquel), em que a geógrafa canadense Leslie Kern defende um projeto de planejamento urbano que atenda às necessidades das mulheres, mães e trabalhadoras; e o polêmico e viral “Odeio Homens” (Rosa dos Tempos), da francesa Pauline Harmange.

A redescoberta de Lélia Gonzalez

Quando veio ao Brasil em 2019, a filósofa e ativista norte-americana Angela Davis falou a uma plateia ansiosa pela sua visita que as brasileiras e brasileiros deveriam mesmo é estar lendo Lélia Gonzalez. Pudera: antropóloga, historiadora e filósofa, Lélia foi pioneira e uma das mais relevantes personalidades envolvidas nas discussões sobre raça e gênero, em especial no que se refere à condição da mulher negra no Brasil. Como uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, em 1978, ela também liderou esforços para a criação de um movimento feminista brasileiro e deixou um legado de importantes produções, como o celebrado ensaio “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, de 1984. Até pouco tempo atrás, porém, era difícil acessar sua obra, esgotada e nunca mais publicada salvo em coletâneas esparsas. No fim de 2020, o livro “Por um Feminismo Afro-latino-americano” (Zahar), organizado pelas pesquisadoras Flavia Rios e Márcia Lima, veio preencher essa lacuna com uma seleção ampla de textos. Em paralelo, o projeto Lélia Gonzalez Vive, parceria entre a família e a ONG Nossa Causa, pretende digitalizar e disponibilizar online a obra completa da autora e ativista.