Rainhas da Noite
Em novo livro, jornalista Chico Felitti, do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, resgata história de travestis que comandaram a noite no centro de São Paulo
Após o sucesso à frente do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, o jornalista e escritor Chico Felitti agora mergulha no universo das travestis que dominaram o centro de São Paulo entre as décadas de 1970 e 2010. O título do livro “Rainhas da Noite” (Companhia das Letras, 2022) se refere a Jacqueline Welch, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan, travestis que sofreram e perpetuaram violências e crimes, mas cujas trajetórias se perderam com o tempo e a falta de registros oficiais.
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Buscando justamente resgatar os últimos resquícios dessas histórias, Felitti une pesquisa e vastas entrevistas para criar uma rede de narrativas que reconstituem parte importante da vida dessas travestis, elas mesmas extremamente relevantes em seu tempo. Foi assim que jogou luz sobre pontos como as “filhas” que Jacqueline adotava no bordel, os assassinatos que Andréa dizia ter cometido e a pedofilia da qual Cristiane foi vítima e que a levou a trabalhar como prostituta.
Numa escrita que vai ligando os pontos entre o que se sabe e o que ainda não se sabe a respeito dessas três pessoas que muita gente vai conhecer pela primeira vez nestas páginas, o autor traça relatos envolventes. Exibindo as habilidades narrativas que levaram ao sucesso de seu podcast e da história de Ricardo – conhecido ofensivamente como o “Fofão da Augusta” –, Felitti tece contos comoventes e profundamente reais, ressaltando a ternura, a generosidade e a irmandade das três travestis que a história oficial mais uma vez falhou em retratar.
Andréa de Mayo está de joelhos, aos pés de um homem. Seu cabelo está preso em um coque, escondido embaixo de um boné. Seu rosto está limpo, sem nenhuma maquiagem. A calça, tamanho 46, está quase justa nas coxas, repletas de silicone, mas folgada nas canelas. Na parte de cima, ela veste uma camisa branca e ampla.
Andréa tira o boné, mas não solta o cabelo. Abre a camisa branca, botão por botão, até revelar o torso nu, sem sutiã. Olha para cima. O homem pega uma cumbuca na mesa à sua frente e vira o conteúdo sobre o rosto de Andréa. Um creme grosso e amarelo cai, e ela o esfrega no rosto e no torso, de olhos fechados. O homem a instrui a ficar naquela posição por meia hora. O creme que cobre o corpo dela é vatapá. O banho de comida é um ritual a que Andréa está se submetendo para agradecer ao seu orixá, e se expurgar de energias negativas.
Quem visse Andréa minutos antes poderia pensar que ela está prestes a cometer um crime. Ela para o carro de luxo em frente ao número 223 da rua Dona Antônia de Queirós, a um quarteirão das saunas e dos bordéis da rua Augusta. Desce e entra no edifício Sândalos, um lugar que parece mal-assombrado: as luzes da fachada estão quase todas apagadas e alguns apartamentos estão inacabados, sem janelas e portas. É que a construtora faliu no meio da obra, e o prédio só terminou de ser construído porque condôminos se cotizaram e pagaram o prejuízo. Quando sobe, vai em direção a um dos poucos apartamentos finalizados, com portas, janelas e acabamento, no décimo andar.
Andréa é recebida por um homem baixo, de nariz grande, lábios carnudos e cabelo pintado de preto, com tintura de farmácia. Ele está de terno, mas por cima usa uma veste indumen- tária com estampa típica da nação Egbá-Arakê, a mesma de Mãe Menininha do Gantois. É Pai Walter de Logunedé. Passam pelo apartamento de Pai Walter políticos como Paulo Maluf e artistas como Angela Maria. Ele é o pai de santo de uma elite que, na maior parte das vezes, oculta sua crença em religiões afro-brasileiras. E agora é o pai de santo de Andréa de Mayo.
Ela se ajoelha assim que entra na sala de Pai Walter, que tem uma cadeira de vime e três de couro. Beija a mão do guia religioso. “Meu filho”, ele responde, e passa a mão na cabeça. “Andréa nunca vinha vestida de mulher. Vinha de Ernani, o nome de documento dela. Tinha vergonha de se mostrar como mulher para mim. E pedia que eu a chamasse de Ernani”, diz Pai Walter.
Andréa passa a frequentar o apartamento de Pai Walter ao menos uma vez na semana na virada dos anos 1980 para os 1990. Descobre que seus orixás são Ogum e Oxum. Ogum é um guerreiro regido pela guerra e pelo fogo. Filhos de Ogum costumam ser corajosos, mas pouco afeitos à rotina. Sua outra orixá é oposta a Ogum em muitos aspectos. Oxum é uma divindade de água doce que é regida pela vaidade. Seus filhos costumam gostar de riqueza, de beleza e de brilho. As duas características convivem em Andréa. Ela é uma guerreira, mas uma guerreira que luta sobre um salto, dentro de um vestido feito pela melhor costureira de São Paulo.
Andréa nunca vinha vestida de mulher. Vinha de Ernani, o nome de documento dela. Tinha vergonha de se mostrar como mulher para mim
Uma das comidas associadas a Ogum é o vatapá, feito de pão amanhecido, azeite de dendê e camarão. Um dos rituais que Andréa realiza quando vai para o apartamento do guia envolve os alimentos dos orixás. “Ela passava vatapá no corpo para Ogum, e depois oferecia na rua”, diz Pai Walter. “A gente saía e deixava em um matagal aqui perto. É para purificar.” O ritual de purificação acontece pelo menos duas vezes por mês. “Tudo o que é passado no corpo é uma limpeza. Ela vinha para se limpar. E tinha muita sujeira da rua para limpar aqui”, diz o pai de santo. Mas a relação dos dois é amistosa e vai além das oferendas, pelas quais ela paga em dinheiro vivo. Depois de resolvidas as questões da alma, eles conversam sobre assuntos terrenos. É comum que almocem juntos.
No fim da década de 1980, Andréa de Mayo tem uma vida que parece completa e invejável. Até uma família ela consegue construir depois de adulta. Expulsa de casa quando era pré-adolescente, Andréa não retoma o contato com os pais. Em vez disso, se aproxima da família de sua melhor amiga, Angela Davis. Angela é uma das poucas travestis que canta, além de dublar. Sobe ao palco e, enquanto samba, interpreta o cancioneiro da MPB. Consegue, por exemplo, percorrer toda a letra de “Canta Brasil”, música imortalizada por Gal Costa, enquanto samba, troca de roupa e brinca com a plateia da boate. Angela e Andréa se conhecem em um concurso de miss e viram irmãs. Não só porque as duas se aproximam muito, mas porque Angela leva Andréa para sua família. Uma coleção de vídeos amadores de festas familiares mostra como uma das rainhas da noite se porta com a guarda baixa, se sentindo em casa.
No Natal de 1988, Andréa está lá, à mesa com a mãe e os tios de Angela. No de 1989, também. Em 1990, ela não só aparece, como faz a filmagem, como se dirigisse um programa de TV. Andréa começa dizendo o dia, o ano e o horário, como se soubesse que aquilo é um registro histórico. Então, começa a passear pela festa com a câmera, parando cada uma das pessoas. “E você, é quem?” O homem responde: “Sou marido da Jaciele”, e faz um movimento com o quadril para frente e para trás. Andréa, rindo, avisa: “Sua mulher vai saber que você esteve aqui, hein”.
No fim da década de 1980, Andréa passa a levar mais uma pessoa para as festas da família que a adota. É Devair, um homem magro, com lábios carnudos, dentes alinhados e brancos, um nariz pequeno sob dois grandes olhos verdes, cobertos muitas vezes pelo cabelo preto e liso que joga sobre o rosto. As amigas brincam que ele parece um príncipe desenhado por Walt Disney.
Andréa e Devair se conheceram na noite. Em menos de duas semanas, já se chamam de marido e de mulher, e Devair se muda para a casa de Andréa, na Vila Mariana. Os dois são opostos que se atraem. Ele é tão calado que há quem pense que é mudo. Ela é articulada, falante, gesticula com as mãos. Ela é grande no corpo e no jeito. Ele se contrai ainda mais do que sua estatura tímida, andando à sombra de Andréa. Ela é a empresária. A cafetina. A rainha da noite. Ele vive de bicos. Mas, a partir do momento que se junta a Andréa, passa a viver do dinheiro dela. Devair é o homem por trás da mulher.
Ela é a empresária. A cafetina. A rainha da noite
É em um desses vídeos caseiros, de festa de família, que Andréa define seu gênero. “A Andréa de Mayo é uma personagem, que eu monto. Não sou Andréa de Mayo o tempo todo. Nem conseguiria ser”, ela explica para a câmera. É por isso que, nas filmagens familiares, ela sempre é uma figura andrógina. Aparece com o cabelo preso, sem maquiagem. Veste uma calça jeans branca e camiseta da marca de jiu-jitsu Bad Boy, mas as mãos estão cheias de anéis que ela conquistou na última década. Há uma cena que mostra o quão confortável ela ficava nessas festas: depois do jantar, Andréa está sentada no sofá. O cachorro Al Capone está no espaldar, lambendo seu rosto. Ela faz uma concha com a mão e cobre a cabeça do animal. Dá um beijo na boca do bicho. A câmera se move e mostra que Devair está esparramado bem em frente. Os dois estão completamente à vontade na casa da família de Angela. O cachorro corre até Devair e Andréa grita, simulando braveza: “Seu traidor!”. Aquela também é a família de Andréa. Outras travestis e artistas aparecem nos vídeos, como Eduardo Albarella, que dá à luz Miss Biá, e Velha Veneza. Andréa é uma travesti de família. Tem sua fé, seu lar, seu marido, seu cachorro de madame, seus seis apartamentos, seu negócio em expansão e seus hábitos saudáveis: não bebe, não usa drogas e, se não tem trabalho à noite, dorme às dez em ponto.
Mas esse reinado só é perfeito a distância. Em uma madrugada, ela aparece sem avisar no apartamento de Pai Walter — está montada, com um vestido e batom vermelho, e olhos roxos.
“Pai, eu não queria que o senhor me visse assim.”
O babalorixá faz sinal com a mão, para Andréa se aproximar.
“É só uma roupa. Você tem a sua e eu tenho a minha”, diz Pai Walter.
Conforme Andréa percorre o corredor escuro, Pai Walter percebe que ela está chorando. Ela não espera chegar à sala de atendimento para começar a contar o motivo da visita noturna. “Eu achei que ele me amasse”, diz. Ela está falando de Devair, percebe Pai Walter. “E um momento de desamor anula uma vida inteira de amor?”, pergunta o pai de santo. Ela tira o cabelo da frente do rosto. Seu olho está inchado e roxo. Não é maquiagem, é um hematoma. Pai Walter põe a mão na sua cabeça. Não é uma bênção, mas sim um acalanto. Passa as mãos no cabelo de Andréa, como o pai que ela nunca teve. Ela desaba, leva a cabeça ao colo do babalorixá e chora. Andréa só vai embora quando o sol está raiando.
O episódio fica para trás. Andréa nunca mais aparece montada na presença de Pai Walter. Nunca mais aparece chorando. Nunca mais surge no meio da madrugada, sem avisar. Nunca mais comenta seus problemas conjugais. Meses depois, volta à presença do pai de santo, sisuda e firme, com uma pergunta bem objetiva para o oráculo.
Seu olho está inchado e roxo. Não é maquiagem, é um hematoma. Pai Walter põe a mão na sua cabeça. Não é uma bênção, mas sim um acalanto
“Eu quero abrir uma boate. Devo?”, ela dispara à queima-roupa.
Ele pigarreia. Abre um tabuleiro de palha sobre a mesa e joga os búzios, que caem muito juntos, no canto direito, com as bocas para cima. Pai Walter interpreta o oráculo como um prenúncio de aglutinação, de rebu, de mau agouro. Mais potencial de dor de cabeça do que de lucro. “É mau sinal. O oráculo diz que não é para abrir”, responde.
Andréa parece se ofender com o vaticínio. Levanta-se da poltrona e, já de pé, declara: “Bom, então o oráculo vai continuar falando. Que fale sozinho, porque às vezes a gente precisa desobedecer até pai e mãe”.
- Rainhas da Noite
- Chico Felliti
- Companhia das Letras
- 256 páginas
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