Trecho de Livro: O Sentido da Vida, de Contardo Calligaris — Gama Revista

Trecho de livro

O Sentido da Vida

Em três textos curtos que concluiu pouco antes de sua morte, o psicanalista Contardo Calligaris questiona a busca pela felicidade e o que significa “morrer bem”

Leonardo Neiva 12 de Maio de 2023

Poucos dias antes de morrer, o psicanalista e escritor Contardo Calligaris (1948-2021) concluiu três textos breves, que abordavam questões profundas e inesgotáveis da existência humana: a eterna busca pela felicidade, a compreensão de como morrer bem e os porquês da vida. Agora, eles chegam ao público em “O Sentido da Vida” (Paidós, 2023), que reúne mais uma leva de pensamentos tradicionalmente pouco ortodoxos do psicanalista italiano radicado no Brasil.

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Em um dos textos da obra, Calligaris aborda a ideia do “bel morir”, a morte bonita, termo retirado de um verso de Petrarca e incutido no psicanalista na infância por uma tia literata. De início tomado pela ideia de que uma morte heroica poderia dar valor até para uma vida medíocre, ele acabou se surpreendendo ao descobrir que o poema original falava de amor. “Ele [Petrarca] estava dizendo que morrer apaixonado era uma coisa muito legal”, aponta num trecho do livro. Assim, Calligaris chegou à conclusão de que a morte não era nem algo para o que se deveria preparar nem um momento justificado pela espera de uma recompensa divina. “A morte bonita era só um jeito de terminar, eu diria, com elegância.”

Com prefácio do cineasta Max Calligaris, único filho do autor, o livro traz reflexões como essas naquilo que soa como uma discussão cara a cara com o psicanalista, em que este recorda passagens da própria vida, divaga e parte de questionamentos íntimos para expor sua maneira de pensar. É dessa forma que aborda sua insatisfação com a mania do brasileiro de perguntar “tudo bem?” mesmo sem querer saber a resposta e com a nossa visão da felicidade como um ideal que precisamos buscar a vida inteira. Pontos de vista que, segundo Max, refletem a própria forma de viver do pai. “O que meu pai realmente valorizava não era a vida em si, mas a coragem de se permitir desfrutar, com atenção, das aventuras que ela eventualmente proporciona.”


Tempos atrás, em 2014, numa entrevista, eu disse (e confirmo e continuo pensando parecido) que não me importava muito ser feliz. De fato, a felicidade sempre me pareceu uma preocupação desnecessária. Certo, ela é um ideal socialmente forte, se não dominante, e, como tal, é, no mínimo, um sucesso comercial — vende bem. Mas essa nunca foi uma razão para eu comprar grande coisa.

Desde essa minha resposta, sou condenado a falar dessa questão — ou seja, do que seria, então, a felicidade — e da importância que ela teria (ou não) para mim.

Até aqui, tenho dito que, para mim, a felicidade, seja lá o que ela for, não depende de a vida e o mundo terem um sentido no qual eu acredite. Ao contrário, se a vida tiver um sentido fora dela, nas nuvens do paraíso ou nas dos sonhos, onde vivem as utopias sociais, suspeito que a gente se distrairia dela. E não sei se existe uma chance de viver uma vida plena sem destinar a esse projeto toda a nossa atenção.

Agora, só empurrei a bola um pouco mais longe, pois sobra a questão: o que é uma vida plena? O que seria viver uma vida “boa”?

Nessa mesma entrevista de 2014, eu disse que, em vez de me preocupar com a felicidade e seu mistério, preferia me esforçar para viver uma vida interessante. E o que seria uma vida interessante?

Questão dupla, então: o que seria uma vida plena (um estado de espírito ou um estado do mundo)? O que seria uma vida interessante?

A felicidade sempre me pareceu uma preocupação desnecessária

Eu sempre tive, e ainda tenho, dificuldade com uma das expressões mais corriqueiras da língua portuguesa — ou pelo menos do português do Brasil —, pela qual, ao encontrar alguém, um amigo ou um desconhecido, tanto faz, você pergunta: “Tudo bem?”. O outro, geralmente, se for bem-educado, responde da mesma forma, “Tudo bem?”, e fica implícito que está tudo bem para todo mundo. Prefiro as perguntas francesas ou americanas “How are you?” e “Ça va?”. Não que sejam muito mais autênticas, mas são perguntas concretas, indagações efetivas sobre o estado da pessoa, enquanto “Tudo bem?” é anunciado como uma espécie de acordo pressuposto. Na verdade, ninguém quer ouvir que não está tudo bem; todos preferimos só esperar uma confirmação.

Isso sem nem considerar a perplexidade na qual deveríamos ser jogados pelo possível alcance desse “tudo”: como é que vou saber se tudo está efetivamente bem?

Vejo dezenas de pessoas por dia no meu consultório — e são pessoas educadas que, em geral, me querem bem. Ao chegar, elas perguntam: “Tudo bem?”. Não gosto de apenas confirmar que “Sim, tudo bem”, nem de responder colocando de volta a mesma pergunta. Não estava a fim de nada disso por princípio, porque um dos princípios básicos da psicanálise é que a gente tente levar a sério o que a gente diz, propositalmente ou não.

Surge também outra pergunta: se está tudo bem com meu paciente, então o que ele está fazendo no meu consultório? Enfim, a resposta que adoto é, geralmente, “Não sei”. E há quem continue: “Como você não sabe? Se você não sabe, quem vai saber?”. Justamente. Ninguém sabe. “Não sei”, e é verdade que eu realmente não sei se está tudo bem. De fato não sei. Essa resposta, que tende a irritar alguns de meus pacientes, e até meus amigos, porque a uso realmente com todo mundo, não é uma grande novidade.

Na verdade, ninguém quer ouvir que não está tudo bem; todos preferimos só esperar uma confirmação

Os capítulos 10 e 11 da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, são textos admiráveis. Aristóteles se pergunta se saber ou não saber como andam efetivamente as coisas do mundo (no nosso exemplo, saber se “tudo” está realmente bem) é relevante do ponto de vista da felicidade.

Felicidade é uma tradução próxima da palavra grega eudaimonia, que significa literalmente “bom espírito” ou “bom gênio” (o daemon, para um grego, é a figura intermediária entre o humano e o divino).

Para nos ajudar a avançar na nossa pergunta, Aristóteles traz como exemplo um homem que tem filhos, ou um filho, tanto faz — e acredita que eles estejam bem encaminhados; isso contribuiria para a própria sensação de paz desse homem, a sensação de “estou vivendo num mundo que está direito, que está dando certo”. Será que o homem de nosso exemplo pode ser “feliz” se o mundo estiver longe do que ele imagina? Por exemplo, e se o tal filho acabasse entrando no crime organizado ou estivesse se drogando sinistramente, ou então estivesse destinado a uma morte próxima ou a qualquer tipo de fim trágico?

Segundo Aristóteles, o fato de esse homem não saber de nada disso não melhora a situação: ele não sabe que o seu mundo (seu presente e seu futuro) é tragicamente desalentador. Mesmo não sabendo e mantendo-se na ilusão de que está “tudo bem”, não, ele não vai estar feliz, pelo menos não no sentido que a expressão tem para um grego.

Isso é muito interessante porque imediatamente isso revela que, para um grego clássico, Aristóteles é um cara que pensa em muitos casos de maneira bastante parecida com a gente; não é um sujeito de uma cultura longínqua, estranha, bizarra nem nada disso; ele é estranhamente familiar, mas, de repente, ele nos diz que o bem-estar, o bom espírito, precisa de uma situação objetiva em que o cosmo esteja em harmonia com você.

O bem-estar, o bom espírito, precisa de uma situação objetiva em que o cosmo esteja em harmonia com você

Nos mesmos capítulos, 10 e 11, da Ética a Nicômaco, ele se faz, aliás, uma pergunta que para nós é absolutamente hilária, que mede a grande diferença entre Aristóteles e nós. Ele se coloca seriamente a seguinte pergunta: “Um morto pode ser feliz?”. É claro que, para nós, não pode, né? Porque, para nós, a felicidade é, sem dúvida, um afeto subjetivo, uma coisa que sentimos. Então, se eu estiver morto, não sentirei nada. E, mesmo que eu pudesse estar morto e sentir alguma coisa, essa “alguma coisa” não seria necessariamente algo agradável.

Mas Aristóteles está pensando numa linha diferente. Parece que, para ele, a felicidade eventual do morto não depende de uma sensação, de um afeto, de um pensamento do morto — porque não é uma questão subjetiva. Ou seja, a felicidade eventual do morto depende de um estado do mundo, é uma questão objetiva. Talvez para ele um morto feliz seja um morto em harmonia com a ordem do mundo.

Produto

  • O Sentido da Vida
  • Contardo Calligaris
  • Paidós
  • 144 páginas

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