Lançar Mundos no Mundo: Caetano Veloso e o Brasil — Gama Revista

Trecho de livro

Lançar Mundos no Mundo

Nos 80 anos do artista, livro de Guilherme Wisnik renova empreitada de explicar o fenômeno do camaleônico Caetano Veloso

Leonardo Neiva 05 de Agosto de 2022

Mais atual do que nunca — ou talvez tão atual como sempre –, Caetano Veloso completa seus 80 anos de idade sem nunca ter deixado de ser um dos nomes mais relevantes do horizonte artístico e musical brasileiro. Agora, como forma de celebrar a data, o clássico livro “Folha Explica: Caetano Veloso” (Publifolha, 2005) retorna às livrarias numa edição atualizada para chegar até os dias de hoje, na figura deste “Lançar Mundos no Mundo: Caetano Veloso e o Brasil” (Fósforo, 2022).

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Por trás da complexa empreitada de explicar o que é Caetano, o escritor, crítico de arte e professor da Faculdade de Arquitetura da USP, Guilherme Wisnik, fala na apresentação do volume das pretensões um tanto “quixotescas” do projeto. “Sei muito bem que Caetano Veloso é uma das mais ‘inexplicáveis’ personalidades brasileiras”, admite. E isso não apenas pela complexidade de seus posicionamentos, “mas também porque é uma figura pública que não cansou de se autoexplicar ao longo dos seus quase sessenta anos de vida artística (iniciada em 1965), a ponto de parecer esgotar tudo o que de novo se poderia dizer a seu respeito.”

Apontado pela revista New Yorker como um dos principais responsáveis por revolucionar o som e o espírito do Brasil, o ícone da Tropicália, autor de canções como “Alegria, Alegria” e “Sampa”, surge no livro de Wisnik em suas várias facetas. Desde o artista retornado do exílio e angustiado pelos impulsos autoritários que nunca deixaram o país — figura que abre o volume — até o camaleão musical de fama internacional em que se transformou mais tarde, se apresentando com artistas como David Byrne e Pina Bausch e integrando a trilha sonora de filmes que vão do ganhador do Oscar “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) ao “Fale com Ela” (2002) de Almodóvar, em que Caetano aparece de corpo e voz.

Embora, como diz o autor, nunca tenha deixado de enxergar o horror que define a formação do Brasil, Caetano também nunca fugiu de olhar olho no olho do jaguar ou mesmo de seguir se transformando constantemente dentro de uma trajetória tão rica e atribulada. “Daí a renovada atualidade da obra de um artista que parece nunca envelhecer”.


No ano de 1968, Gilberto Gil e eu fomos presos. Ficamos dois meses na cadeia, depois quatro meses confinados na cidade de Salvador, e por fim fomos levados ao interior de um avião de voo internacional por agentes da polícia federal para que deixássemos o Brasil, de onde ficamos longe, exilados, por dois anos e meio, em Londres. Isso me encheu de amargura, sobretudo porque nós, tropicalistas, acreditávamos que a ditadura militar — que afinal durou vinte anos — não tinha sido um acidente que se abatera sobre o Brasil, oriundo de outro planeta. Não, nós acreditávamos, e eu ainda acredito, que a ditadura militar tinha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito sobre o nosso ser íntimo de brasileiros — vocês podem imaginar como a minha dor era multiplicada por essa certeza. No entanto, uma vez no exílio, chegavam até nós, saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos diziam (nos tentavam dizer) que isso não era tudo.

Com esse depoimento, feito no show Circuladô (1992), Caetano introduzia a apresentação de “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, canção composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos em sua homenagem, entre os anos 1969 e 70. E, remexendo publicamente num capítulo até então tabu de sua vida pessoal — a prisão e o exílio –, fazia uma afirmação que soa, hoje, extremamente lúcida, aguda e atual. Sim, a ditadura militar não se abateu sobre nós como uma espécie de óvni vindo de lugar nenhum. O autoritarismo e a truculência que ela representa saíam, naquele momento — e ainda saem hoje –, de “regiões profundas do ser do Brasil”. E Caetano não apenas via isso claramente, e de forma muito dolorida, durante o exílio, mas também continuava a perceber esse fato na aparente normalidade democrática dos anos 1990, quando muitos de nós acreditávamos que essa era uma página virada na história do Brasil.

…nós acreditávamos, e eu ainda acredito, que a ditadura militar tinha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito sobre o nosso ser íntimo de brasileiros

Lançado no início daquela década, o disco Circuladô (1991) prolonga e complementa aspectos de uma importante mudança na obra cancional de Caetano, manifestada no álbum Estrangeiro (1989). Mudança que se verifica tanto em termos sonoros, com a incorporação das guitarras e teclados eletrônicos de Arto Lindsay e Peter Sherer, do grupo nova-iorquino Ambitious Lovers, quanto no discurso poético, e funda um ponto de vista novo, marcado pelo estranhamento radical em relação ao momento então presente.

Como anunciado na canção “O estrangeiro”, o sujeito que canta se sente “menos estrangeiro no lugar que no momento”, indício de que as insuspeitadas arestas que aparecem na paisagem cartão-postal do Brasil — o Pão de Açúcar e a baía de Guanabara — revelam uma disjunção que se opera antes na circunstância temporal do que no lugar. Isto é, o estranhamento que se vê na paisagem — “um Pão de Açúcar menos óbvio possível” — é o espelho de um estrangeirismo que não diz respeito à nacionalidade (a etnia, o país geográfico ou a cidade), mas ao momento histórico vivido. Essa inversão tem importância considerável no contexto de uma obra cujo fundamento maior esteve quase sempre na capacidade de tensionar a cultura do país — o lugar –, dada sua adesão máxima ao tempo presente, ancorada na exigência de se defrontar permanentemente com as informações mais atuais da modernidade cultural. E a sequência da canção não deixa dúvidas em relação a essa passagem histórica, referindo-se diretamente a “Alegria, alegria”, hino tropicalista de 1967: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contra o vento“.

Está claro que a solidão, agora, enfatizada na canção (“sigo mais sozinho”), distancia-se do alheamento leve e voluntário do sujeito daquela outra canção, que caminha com “os olhos cheios de cores” e “o peito cheio de amores vãos” em meio aos estímulos visuais velozes e intransitivos de uma cultura de consumo nascente, captados através de uma linguagem também fragmentária, na qual, segundo Augusto de Campos, “predominam substantivos-estilhaços da ‘implosão informativa’ moderna”: crimes, espaçonaves, guerrilhas, Cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. No pesadelo impressionista de “O estrangeiro”, sob a áspera massa de acordes em arpejos percussivos que não encontram repouso, o isolamento involuntário do sujeito que canta revela um doloroso amputamento histórico: o fim das utopias existenciais, estéticas, morais, sexuais, sociais, políticas de sua geração. Isto é, o desaparecimento do motor criativo e ideológico da arte surgida no ambiente contracultural dos anos 1960, que originou o movimento hippie, o tropicalismo, a rebeldia do rock e as agitações estudantis de Maio de 68 em Paris.

…a deflagração do movimento tropicalista foi a expressão vigorosa e radical de uma situação de choque entre a onda libertária dos anos 1960 e o endurecimento da ditadura milita

Ora, a deflagração do movimento tropicalista foi a expressão vigorosa e radical de uma situação de choque entre a onda libertária dos anos 1960 e o endurecimento da ditadura militar no país, sob o pano de fundo de um crescimento econômico mundial. E mais: alimentou-se de uma situação de aguerrida polarização ideológica no campo cultural, no horizonte do florescimento de uma cultura pop internacional que embaralhava as noções de “originalidade” e “redundância” antes atribuídas de modo estanque aos campos do erudito e do popular. Com efeito, no contexto “pós-utópico” mais do que desenhado na passagem dos anos 1980 para os 90, em contexto de reabertura democrática, era o avesso desse quadro que se havia cristalizado.

A canção “O estrangeiro” reconstrói poeticamente esse pesadelo, em que o sujeito está isolado numa situação sinistra, postado de costas para um cenário conhecido mas estranhado, onde o novo e o antigo se combinam nas figuras de “um velho com cabelos nas narinas”, trajando um soturno “terno negro”, e “uma menina ainda adolescente e muito linda”. A alternância circular entre dois acordes simples, obsessivamente arpejados, reforça a sensação de aprisionamento em uma estrutura que se move mas não repousa — replicando a sugestão de congelamento temporal da letra (“em que se passara, passa, passará o raro pesadelo”) –, num moto-perpétuo que vai sendo tensionado de modo crescente pela sujeira ruidosa das guitarras e pelos motivos dobrados dos teclados.

O ápice dessa estrutura narrativa impressionista acontece na hora em que a voz que canta assume com ironia teatral o papel daquele para quem se recusa a olhar — o velho –, tornando-se porta-voz do discurso autoritário:

É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto é o resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos

O certo é louco tomar eletrochoque/
O certo é saber que o certo é certo/
O macho adulto branco sempre no comando/
E o resto é o resto, o sexo é o corte, o sexo

Produto

  • Lançar Mundos no Mundo
  • Guilherme Wisnik
  • Fósforo
  • 208 páginas

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