COLUNA

Fernando Luna

O que a gente não pode explodirá

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre Tempo Rei, um Edward chamado Zé, o amor na loja de materiais de construção e a adolescência como um navio no ciberespaço

14 de Abril de 2025

“Não se incomode o que a gente pode, pode/ o que a gente não pode explodirá”

Gilberto Gil, 1979
Antologia Profética

“Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ‘ocê sorrir”

Gilberto Gil, 1981
Antologia Profética

Do luar não há mais nada a dizer a não ser que a gente precisa ver o luar

Gilberto Gil, 1981
Antologia Profética

“Não adianta nem me abandonar porque mistério sempre há de pintar por aí”

Gilberto Gil, 1976
Antologia Profética

“O melhor lugar do mundo é aqui e agora”

Gilberto Gil, 1977
Antologia Profética

Por uma imperdoável distração, escrevi 233 colunas a partir de versos e jamais citei Gilberto Gil.

Dançar e cantar durante as 2h30 de “Tempo Rei” era o que eu precisava pra me redimir. Saí do estádio paulistano dividindo com outras 40 mil pessoas a sensação de que minha alma cheira a talco, como bumbum de bebê.

(Quem mais seria capaz de uma metáfora comparando a alma imaterial com um bumbum de bebê deveras material, frequentemente material demais?)

Então vamos logo com cinco vezes Gil.

Podiam ser 50 versos, talvez até 500. São mais de 780 músicas, afinal. Mas essa minúscula amostra do carrossel destaca um aspecto essencial de Gil e sua poesia: uma compreensão elevada da existência.

Pra além do ritmo, engenhosidade e inteligência, suas canções são minutos de sabedoria ancestral.

Suas palavras têm muito de espiritual, sem serem necessariamente religiosas – embora muitas vezes reverberem, sim, a tradição do candomblé, catolicismo e religiões orientais. Mas expressam, acima de tudo, reflexões estéticas e morais sobre vida, amor e morte.

(No show, quando a plateia faz coro de “Gil, eu te amo”, ele responde como quem come uma moqueca no “Banquete” de Platão: “O amor é mais difícil que a morte”.)

Ele sempre soa mais transcendental que dogmático, mais “Meditações” de um Marco Aurélio baiano que autoridade eclesiástica romana, mais griô que canônico.

É um filósofo estóico com “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Mestre taoísta em “Não se incomode o que a gente pode, pode/ o que a gente não pode explodirá”. Físico quântico em “Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ‘ocê sorrir”. Poeta epistemológico em “Do luar não há mais nada a dizer a não ser que a gente precisa ver o luar”. Existencialista apaixonado em “Não adianta nem me abandonar porque mistério sempre há de pintar por aí”.

Não creio em muita coisa, mas acredito em Gilberto Gil.

“Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos”

Bernardo Soares, 1932

Edward Albert Lancelot Dodd Cantebury Caterham Wickfield – mas pode chamar de Zé.

Zé, de José Eduardo Franco dos Reis, nome verdadeiro do juiz paulista que criou uma versão onomástica da Grávida de Taubaté, escondendo sua identidade por 40 anos.

A sucessão de nomes e sobrenomes é exuberante como aquelas fantasias de luxo nos Baile de Gala dos carnavais dos anos 1980: “Apoteose de Nabucodonosor em Noite de Esplendor e Glória do Império Assírio”.

Pensando bem, Edward Albert Lancelot Dodd Cantebury Caterham Wickfield é o avesso do avesso de Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufunbo.

Ninguém sabe se ele falsificou os documentos por razões psiquiátricas ou legais. Certo é que teria sido prudente escolher uma alcunha mais comum: Francisco Santos, Carlos Oliveira ou qualquer combinação capaz de passar batida numa última chamada de aeroporto.

Mas o Zé fez questão de complicar a própria vida.

Imagina a quantidade de vezes em que, ao telefone com um operador de telemarketing, teve que soletrar “seu nome completo, senhor?”:

“Olha, Edward não tem “u”, é com “w” depois do primeiro “d”. Ah, e com “d” mudo no fim. O Albert é com “t” mudo. Lancelot idem. Não, idem não é um sobrenome. O Dodd tem dois “d”. Aliás, três “d”, um no começo e dois no fim. Isso. Cantebury termina com ipisilone. Você ainda tá na aí? Canterham tem “h” depois do “r”. Wickfield é melhor ignorar. Não pode? Então vamos letra por letra: dábliu, “i” de Índia, cê, “k”, éfe, “i” de novo, é, éle, “d” mudo.”

(Dica pra pacificar o país: anistia pro Bolsonaro se ele pronunciar “Edward Albert Lancelot Dodd Cantebury Caterham Wickfield” e a gente compreender cada fonema.)

Bernardo Soares, nome que Fernando Pessoa inventou com bem menos extravagância que o nobre juiz, anotou em seu “Livro do Desassossego”: “Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos”. Mas o Zé abusou.

“O possível não basta”

Hans Magnus Enzensberger, 1964

Ninguém acredita mais no amor do que um casal fazendo compras sábado de manhã numa loja de material de construção.

Esse casal poderia, talvez até deveria, estar em qualquer outro lugar mais aprazível a casais: esquentando a cama sem a pressa de segunda a sexta, caminhando pelo bairro pra aproveitar o sol de outono ou tomando um café daqueles de hotel na padaria da esquina.

Mas não.

Em vez disso, a dupla arrancou as cobertas ao toque do despertador – e despertador no final de semana nunca é recomendável –, pra logo se apressar rumo ao cantinho do capeta: um showroom com luz fria e vendedores com conhecimentos enciclopédicos de válvulas hidráulicas.

(Às vezes fico em dúvida: pior um vendedor ruim, que deixa o cliente entregue à própria sorte, ou um vendedor bom, que deixa o cartão de crédito do cliente entregue à sua lábia?)

Esse shopping frenzy não é só efeito colateral da reforma – é uma aposta no amor, entre louças e metais.

Tá tudo em jogo: o projeto da casa, a vida a dois, a promessa de felicidade. O futuro, enfim. Casais de todos gêneros, raças e credos, compenetrados entre gôndolas abarrotadas, escolhendo um misturador monocomando como quem decide o nome do filho.

Cada decisão mínima parece capaz de espalhar seus efeitos por toda a existência. Uma ducha higiênica cromada ou branca pode ser a diferença entre o felizes pra sempre e a separação litigiosa. Uma tampa de vaso sanitário com fechamento suave ou convencional é prenúncio da ordem ou do caos.

Um cínico perguntaria quantos casais ainda serão um casal quando a obra terminar? Obra atrasa, paixão jamais. Mas lá, enquanto ponderam se uma torneira de 3 mil reais jorra água Perrier e se duas cubas no banheiro são o segredo do casamento blindado, aqueles dois não têm fim.

Eles querem tudo. “O possível não basta”, como no verso do alemão Hans Magnus Enzensberger, o possível é pouco pra quem ama.

“É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”

Ana Cristina Cesar, 1979

“Você gosta de mim?”, pergunta Jamie, protagonista de “Adolescência”.

Não vou dar spoiler dizendo pra quem ou em que situação ele formula a questão central da vida dele. Mas é em torno dessa dúvida que gira toda a microssérie inglesa. E, psicanalizados ou não, é essa mesma pergunta que volta e meia nos pegamos fazendo e refazendo pro mundo.

(Antes de continuar, um breve manifesto anti-hype: o problema de chamar qualquer série nota 7 como “White Lotus” e “Ruptura” de genial e imperdível é que, quando aparece uma realmente genial e imperdível como essa, a gente duvida. Não duvide, telespectador de pouca fé.)

O título desse poema de Ana Cristina Cesar com apenas uma frase – e quem precisa de duas frases quando se tem “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”? – vem a calhar: “Recuperação da adolescência”.

Geral precisando se recuperar da cacetada de “Adolescência”, com sua apavorante história do garoto de 13 anos que, digamos, não conseguiu ancorar seu navio no espaço. Seu quarto de menino, aliás, é forrado com um papel de parede com desenhos do espaço sideral.

Foi na androsfera, esse buraco negro da masculinidade tóxica on line, que Jamie se perdeu.

Em apenas quatro planos-sequência, um pra cada episódio, vemos como as inseguranças que nos fazem humanos, demasiado humanos, crescem exponencialmente no mundo virtual. Uma overdose de red pill transforma o garoto ao mesmo tempo em vítima e paladino da misoginia.

Se antes os pais tinham medo do que poderia acontecer a seus filhos soltos nas ruas, hoje o pânico vem do que se passa quando as crianças tão trancadas no quarto navegando pelos becos sem saída da internet.

Assim como a pergunta de Jamie fica sem resposta, “Adolescência” não tenta oferecer uma resposta simples ao problema complexo de viver na era digital. Essa é uma de suas maiores qualidades – e certamente a mais desesperadora delas.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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