No quarto de Caetano — Gama Revista

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No quarto de Caetano

Thiago Quadros / Gama Revista / Getty Images / Reuters

Acompanhar o posicionamento político do artista é uma tarefa invulgar. Com ‘Anjos Tronchos’, ele segue nos provocando a pensar o que significa ‘ser de esquerda’

Ricardo Teperman 24 de Setembro de 2021

“Quem lê tanta notícia?” é o nome do novo podcast de Tati Bernardi, Thiago Amparo e Vera Iaconelli – um entre tantos versos de Caetano Veloso que se tornaram expressões correntes ou batizaram novos projetos. A pergunta é tirada da canção “Alegria, Alegria”, sucesso de 1967 que tornou o baiano nacionalmente conhecido. Ele cantava a liberdade do indivíduo que desafia as contradições de seu tempo, caminhando à toa, sem nada no bolso ou nas mãos, mas igualmente interessado pelas ofertas da sociedade de mercado e pelas estratégias de combate a ela: fuzis e refrigerantes, bombas e bombshells. O refrão provocador era entoado com o sorriso escancarado que imprime afetividade à voz e se tornou uma de suas marcas registradas como cantor: “Eu vou, por que não?”

O sucesso foi imediato e a canção deu a Caetano o quarto lugar no Festival de MPB da TV Record – um resultado que pareceria apenas razoável, não fosse a excepcionalidade dos três primeiros lugares da edição de 1967, respectivamente: “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam, “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, e “Roda Viva”, de Chico Buarque.

Um ano após o sucesso de “Alegria, Alegria”, Caetano tomaria uma imensa vaia ao apresentar “É Proibido Proibir”, acompanhado pelos Mutantes e por uma performance provocadora do bailarino Lennie Dale. Enfrentou os apupos do público com um discurso semi-improvisado que se tornou célebre como um questionamento à esquerda dogmática, que recusava de chofre qualquer coisa que visse como “americanizada”. Com a voz esganiçada, Caetano perguntava: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? São a mesma juventude que vai sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”.

A produção simplória talvez se justifique pela densidade da letra, que condensa a melhor discussão sobre redes sociais e tecnopopulismo

Acompanhar o posicionamento político de Caetano é uma tarefa invulgar. Como ele mesmo diz no prefácio que escreveu para a edição comemorativa dos 20 anos de seu livro “Verdade Tropical”, o cantor nunca foi e nunca seria um “esquerdista convencional”. Ninguém discutiu essa dimensão com maior rigor e brilhantismo que o crítico Roberto Schwarz, no longo ensaio que escreveu sobre o livro do baiano, publicado em “Martinha versus Lucrécia”. A polêmica entre os dois gerou rico debate, de início com entrevistas com um e outro no caderno ilustríssima, da Folha de S. Paulo, e em seguida reverberando em bons textos de José Miguel Wisnik, Francisco Bosco, Ruy Fausto, Pedro Meira Monteiro, Hermano Vianna e Milton Ohata, entre outros.

Com a canção “Anjos Tronchos”, lançada na última semana, Caetano traz novos elementos para essa conversa sobre o que significa “ser de esquerda”. Alguns ficarão insatisfeitos com a melodia elementar e a produção simplória. A opção, que evoca o bom momento de “Cê” e o belo disco recente de Bob Dylan, talvez se justifique pela densidade da letra, que condensa boa parte da melhor discussão sobre redes sociais e tecnopopulismo.

O diagnóstico não poderia ser mais sombrio. Assim como as guerrilhas latino-americanas dos anos 1960, o espírito revolucionário da onda de manifestações iniciada com a Primavera Árabe – e que no Brasil teve seu apogeu em junho de 2013 – deu em horror: um mundo liderado por “palhaços macabros” como Trump e Bolsonaro, “munidos de controles totais”. Em artigo recente, Rodrigo Nunes faz boa análise da possível retomada da “linha evolutiva” dos movimentos contestadores do início dos anos 2010 – e é no mínimo curioso que ele tenha escolhido uma expressão consagrada justamente por Caetano.

Os ‘anjos tronchos’ da nova letra são empreendedores e investidores que contribuíram para a criação do mundo digital em que vivemos

Os “anjos tronchos” da nova letra são empreendedores e investidores que contribuíram para a criação do mundo digital em que vivemos. Nele, os indivíduos têm poder inédito ao mesmo tempo em que são transformados em “densos algoritmos”. Desde o início da pandemia, já não se caminha tanto contra o vento mas se navega mais que nunca pela internet, gerando dividendos inéditos para a turma do Vale do Silício enquanto o povaréu morre ou passa fome.

Um estudo do FMI concluiu que US$ 50 bilhões, um quarto do patrimônio individual de Jeff Bezos, teriam sido suficientes para financiar a vacinação do mundo inteiro e nos livrar da crise sanitária e de suas nefastas consequências econômicas. Sem desprezar doações em montantes inéditos feitas pelo combate à pandemia (R$ 1 bilhão do Itaú Unibanco, US$ 1,7 bilhão da Fundação Bill e Melinda Gates, para citar duas delas), os números continuam acanhados. Via de regra, os milhões, bilhões ou trilhões com que apostam os anjos tronchos seguem a serviço de seus próprios bolsos e o número de zeros à direita é indistinguível para a maior parte da população mundial, mais preocupada com sua próxima refeição.

Apesar da catástrofe generalizada, resta a Caetano uma ponta de esperança – um ‘otimismo programático’ do qual não abre mão

Desde “Alegria, Alegria”, Caetano aposta no indivíduo como agente da transformação – uma utopia que exige tanto a primazia da liberdade, paradigma da direita, quanto a superação da ordem vigente, como pede a esquerda. Em “Anjos Tronchos”, tudo se acelera, mais e mais e mais, e a ânsia por liberdade do autor se renova em ritmo dobrado: “Eu vou por que não eu vou por que não eu vou”. Num tempo em que “um post vil poderá matar”, ele pergunta: “Que é que pode ser salvação?”

Apesar da catástrofe generalizada, resta a Caetano uma ponta de esperança – um “otimismo programático” do qual não abre mão, como afirmou em mesa com o filósofo Paul Preciado, na Flip de 2020. Hoje há poemas (e canções) como jamais – acessíveis a um clique. E quem não é “otário” pode ouvir compositores vanguardistas como Schoenberg, Webern e Cage, igualados por Caetano a fenômenos da música pop, numa reedição do conhecido nivelamento tropicalista.

Mas o último e estranhíssimo verso é a pedra de toque da canção: “Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”. Maior fenômeno recente da indústria da música, Billie Eilish lançou seu primeiro álbum em 2019, lindamente intitulado “When We All Fall Asleep, Where Do We Go?”. Produzidas por seu irmão Finneas, as faixas foram inteiramente gravadas na pequena casa da família, em Los Angeles, algo que só se tornou possível graças aos avanços tecnológicos impulsionados pelos mesmos anjos tronchos.

O som distorcido que abre a nova canção de Caetano evoca recurso usado na abertura de “NDA”, do mais recente disco de Eilish, “Happier Than Ever”. Em nossos tempos tronchos, mais do que nunca, é possível embalar e abalar o mundo sem sair do quarto – mas nem todos podem se dar esse luxo.

Ricardo Teperman é doutor em Antropologia pela USP e autor de “Se Liga no Som: As transformações do rap no Brasil” (Claro Enigma, 2015). Atualmente, é publisher na Zahar e editor na Companhia das Letras

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