A Morte de Ivan Ilitch — Gama Revista

Trecho de livro

A Morte de Ivan Ilitch

Em obra de 1886 que voltou recentemente ao debate, Lev Tolstói apresenta a vida insossa de um personagem comum, que, prestes a morrer, reflete sobre a finitude após uma existência morna

Ana Elisa Faria 06 de Outubro de 2023

“Talvez eu não tenha vivido como se deve. Mas como não, se eu fiz tudo como é preciso?”, questiona-se o protagonista moribundo de “A Morte de Ivan Ilitch” (Editora 34, 2009), clássico do escritor russo Lev Tolstói que reflete sobre a existência lembrando, a cada página, do quão mortal somos.

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Publicado em 1886, o livro narra a história de Ivan Ilitch, um juiz que descobre uma doença terminal e sabe que, em breve, vai morrer — assim como nós, leitores, que temos esse spoiler já no título. A partir daí, o personagem, cheio de dores — do corpo e da alma —, passa a matutar sobre a finitude, o dia a dia medíocre que teve em casa e no trabalho. À beira da morte, Ivan tenta entender o que o levou a desperdiçar a vida.

Os questionamentos profundos suscitados pela obra mexem com quem a lê, do século 19 ao 21. E é por isso que, recentemente, a publicação voltou a ser comentada no Brasil: sites de fofoca apontaram “A Morte de Ivan Ilitch” como uma espécie de pivô da separação de Lucas Lima e Sandy depois que uma postagem do cantor, feita em setembro no Instagram, com a opinião dele sobre a leitura, ressurgiu.

Na publicação, ilustrada com uma foto do livro e trechos grifados, Lima diz que se sentiu chacoalhado. Obviamente, não saberemos o que levou o casal famoso a se separar, mas que é difícil alguém passar incólume aos escritos de Tolstói, isso é.


Tirou os pés da posição elevada, deitou-se de lado sobre o braço e teve pena de si mesmo. Esperou apenas que Guerássim saísse para o quarto vizinho, deixou então de se conter e chorou como uma criança. Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade dos homens, a crueldade de Deus, a ausência de Deus.

“Para quê fizeste tudo isto? Para quê me trouxeste aqui? Para quê, para quê me torturas tão horrivelmente?…”

Ele nem esperava resposta, e chorava porque não havia nem podia haver uma resposta. A dor cresceu novamente, mas ele não se movia, não chamava ninguém. Dizia consigo: “Está bem, mais ainda, bate mais! Mas por quê? O que foi que eu Te fiz? Por quê?”.

Depois sossegou, deixou não só de chorar, mas suspendeu o fôlego e fez-se todo atenção: era como se ele atentasse não na voz que falava por meio de sons, mas na voz do espírito, na sequência dos pensamentos, que se erguiam nele.

— O que precisas? — foi a primeira noção concreta, possível de ser expressa por meio de palavras, que ele ouviu. — O que precisas? Precisas do quê? — repetiu para si mesmo. Do quê? Não sofrer. Viver — respondeu ele.

E novamente, entregou-se todo à atenção a tal ponto tensa que mesmo a dor não o distraía.
— Viver? Viver como? — perguntou a voz do espírito. — Sim, viver como vivi antes: bem, agradavelmente.

— Como viveste antes, bem e agradavelmente? — perguntou a voz. E ele começou a examinar na imaginação os melhores momentos da sua vida agradável. Mas, fato estranho, todos estes momentos melhores de uma vida agradável pareciam agora completamente diversos do que pareceram então. Tudo, exceto as primeiras recordações da infância. Lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse. Mas não existia mais o homem que tivera aquela experiência agradável: era como que a recordação sobre alguma outra pessoa.

E apenas começava aquilo que resultara no seu eu atual, Ivan Ilitch, tudo o que parecia então ser alegria derretia-se aos seus olhos, transformando-se em algo desprezível e frequentemente asqueroso.

Mas não existia mais o homem que tivera aquela experiência agradável: era como que a recordação sobre alguma outra pessoa

E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias. A começar pela Faculdade de Direito. Ali ainda havia algo verdadeiramente bom: havia a alegria, a amizade, as esperanças. Mas, nos últimos anos, esses momentos bons já eram mais raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, surgiam de novo momentos bons: eram as recordações do amor a uma mulher. A seguir, tudo isto se baralhava, e sobravam ainda menos coisas boas. Adiante, ainda menos, e, quanto mais avançava, mais elas minguavam.

O matrimônio… tão involuntário, e a decepção, o mau hálito da mulher, a sensualidade, o fingimento! E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia, e assim um ano, dois, dez, vinte sempre o mesmo. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo. “Como se eu caminhasse pausadamente, descendo a montanha, e imaginasse que a estava subindo. Foi assim mesmo. Segundo a opinião pública, eu subia a montanha, e na mesma medida a vida saía de mim… E agora, pronto, morre!”

E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia, e assim um ano, dois, dez, vinte sempre o mesmo. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo

“Mas o que é isto? Para quê? Não pode ser. A vida não pode ser assim sem sentido, asquerosa. E se ela foi realmente tão asquerosa e sem sentido, neste caso, para quê morrer, e ainda morrer sofrendo? Alguma coisa não está certa.”

“Talvez eu não tenha vivido como se deve — acudia-lhe de súbito à mente. Mas como não, se eu fiz tudo como é preciso?” — dizia de si para si, e no mesmo instante repelia esta única solução de todo o enigma da vida e da morte, como algo absolutamente impossível.

“E o que tu queres agora? Viver? Viver como? Viver como tu vives no tribunal, quando o meirinho proclama: ‘Está aberta a sessão!…’ Está aberta a sessão, a sessão” — repetiu consigo. — Aí está o julgamento! Mas eu não tenho culpa! — exclamou com raiva. — Por quê? parou de chorar e, voltando o rosto para a parede, pôs-se a pensar sempre no mesmo: por quê, por que todo esse horror?

Mas, por mais que pensasse, não encontrou resposta. E quando lhe vinha o pensamento, e vinha-lhe com frequência, de que tudo aquilo ocorria porque ele não vivera como se devia, lembrava no mesmo instante toda a correção da sua vida e repelia esse pensamento estranho.

Passaram-se mais duas semanas. Ivan Ilitch não se levantava mais do divã. Não queria ficar deitado na cama e jazia no div?. E deitado quase todo o tempo com o rosto contra a parede, sofria solitário sempre os mesmos tormentos sem escape e pensava solitariamente o mesmo pensar insolúvel. O que é isto? Será, de verdade, a morte? E a voz interior respondia: sim, é verdade. Para quê estes sofrimentos? E a voz respondia: à toa, sem nenhuma finalidade. E nada mais existia além disso.

Desde o início da doença, a partir de quando Ivan Ilitch fora ao médico a primeira vez, a sua existência dividira-se em dois estados de espírito opostos, que se alternavam: ora havia o desespero e a espera de uma morte incompreensível, horrenda, ora a esperança e a observação, repassada de interesse, da atividade do seu corpo. Ora tinha diante dos olhos apenas o rim ou uma tripa que se recusaram por algum tempo a cumprir as suas obrigações, ora unicamente a morte incompreensível, horrenda, da qual não se podia salvar com nada.

Desde o início da doença, estes dois estados de espírito se alternavam; mas, quanto mais avançava a doença, mais duvidosas e fantásticas eram as considerações sobre o rim e mais real a consciência da morte que chegava.

Bastava-lhe recordar o que ele fora três meses atrás e o que era agora, lembrar com que regularidade ele descera a montanha, para que se aniquilasse toda possibilidade de esperança.

Nos últimos tempos da solidão em que ele se encontrava, deitado com o rosto contra as costas do divã, daquela solidão em meio à cidade populosa e aos seus numerosos conhecidos e membros da família, solidão que não poderia ser mais absoluta em parte alguma, mesmo no fundo do mar ou no seio da terra, nos últimos tempos dessa terrível solidão, Ivan Ilitch vivia apenas no passado, graças à imaginação. Apareciam-lhe, um após outro, os quadros do seu passado. Isto começava sempre pelo que estava mais próximo no tempo e ia dar sempre no mais distante, na infância, onde se detinha.

Solidão que não poderia ser mais absoluta em parte alguma, mesmo no fundo do mar ou no seio da terra, nos últimos tempos dessa terrível solidão, Ivan Ilitch vivia apenas no passado, graças à imaginação

Se Ivan Ilitch lembrava a ameixa seca cozida, que lhe ofereciam agora para comer, vinha-lhe também à memória a ameixa seca crua francesa, enrugada, da sua infância, o seu gosto peculiar e a abundância de saliva quando se chegava ao caroço, e a par dessa recordação de um sabor, surgia toda uma série de recordações daquela época: a ama-seca, o irmão, os brinquedos. “Não devo pensar nisso… é doloroso demais” — dizia Ivan Ilitch a si mesmo e tornava a transportar-se para o presente. Um botão nas costas do divã e rugas no marroquim. “O marroquim é caro, pouco resistente; foi causa de uma briga. Mas houve também outro marroquim e outra briga, quando rasgamos a pasta de meu pai e fomos castigados, e mamãe trouxe uns pirojki.” E de novo aquilo detinha-se na infância, e mais uma vez Ivan Ilitch sentia dor e procurava repelir aquelas imagens e pensar em outra coisa.

E de novo ali mesmo, a par desta sequência da recordação, perpassava-lhe no espírito uma outra sequência de lembranças: sobre como se intensificava e crescia a sua doença. Quanto mais voltava para trás, mais vida havia. Havia igualmente mais bondade na existência e mais vida propriamente, também. Ambas se fundiam. “Assim como os tormentos se tornam cada vez piores, também toda a vida se tornava cada vez pior” — pensou ele. Havia um ponto luminoso alhures, atrás, no começo da vida, e depois tudo se tornava cada vez mais negro e cada vez mais rápido. “Na razão inversa dos quadrados da distância para a morte” — pensou Ivan Ilitch. E esta imagem da pedra caindo para baixo com velocidade crescente calou-lhe no espírito. A vida, uma série de tormentos em crescendo, voa cada vez mais veloz para o fim, para o mais terrível dos sofrimentos. “Eu voo…” Estremecia, mexia-se, queria opor-se; mas já sabia que não se podia opor resistência, e novamente, com olhos cansados de fitar, mas impossibilitados de não olhar aquilo que estava diante deles, fitava as costas do divã e esperava: esperava essa terrível queda, empurrão e aniquilamento.

A vida, uma série de tormentos em crescendo, voa cada vez mais veloz para o fim, para o mais terrível dos sofrimentos

“Não se pode resistir — dizia de si para consigo. — Mas se pudesse ao menos compreender para quê isto. E também é proibido. Seria possível explicar, se se dissesse que eu não vivi como se devia. Mas é impossível admiti-lo” — dizia a si mesmo, lembrando toda a legitimidade, exatidão e decência da sua vida. “É impossível admiti-lo — dizia, sorrindo com os lábios, como se alguém pudesse ver este seu sorriso e ser enganado por ele. — Não há explicação! O sofrimento, a morte… Para quê?”

Produto

  • A morte de Ivan Ilitch
  • Lev Tolstói
  • Editora 34
  • 96 páginas

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