COLUNA

Vanessa Rozan

Tempo de crise no corpo da mulher

Quando o contra-ataque aos nossos direitos acontece, a beleza padrão se alia à moralidade tradicional e prega um corpo frágil que reflete a obediência da mulher

23 de Abril de 2025

Assistindo a um vídeo da @nikitadumptruck, conhecida no TikTok como “Bimbo University”, achei uma boa análise de como a moda muda nos períodos de recessão e como, nesses tempos, a estética feminina incorpora códigos mais austeros e conservadores. Nikita explica notícias, história, economia e cultura em “girly terms”, ou seja, em uma linguagem casual entre amigas. Ela dá o exemplo de como a moda da Gibson Girl nos Estados Unidos — vestidos longos, corsets e cabelos longos — passa para as saias mais curtas e para os vestidos com cintura deslocada nos anos 1920, momento em que o corpo feminino se move em busca do direito ao voto. E depois, com a Grande Depressão, na década de 1930, tudo volta a ser mais longo e acinturado.

O “efeito batom” acontece quando a consumidora deixa de gastar em itens mais caros e investe em pequenos elementos de luxo

Os exemplos históricos que mostram a relação entre recessão e moda na América do Norte são muitos. Podemos seguir observando a cada década suas mudanças. Os impactos de períodos de recessão ou de valores conservadores em alta podem ser medidos na moda, e por consequência indireta, no corpo da mulher. Existe até a história do batom em tempos de recessão. Descrito em 1998, o “efeito batom” acontece quando a consumidora deixa de gastar em itens mais caros e investe em pequenos elementos de luxo, como um batom, que servirá como uma pequena recompensa sem tanto investimento. Tentaram comprovar essa tese de várias formas; em uma pesquisa recente publicada no “Journal Personality and Social Psychology”, há uma hipótese que sugere que, com base nas teorias evolucionistas (cof, cof, cof), mulheres gastam mais em produtos que as façam mais atraentes para os parceiros. É isso, colega: a recessão batendo e a gente preocupadíssima em atrair um homem.

Segundo esse mesmo estudo, “como há menos homens com acesso a recursos durante crises econômicas [devido ao aumento do desemprego, por exemplo], o desejo das mulheres por um parceiro com recursos financeiros cresceu em resposta aos sinais de recessão”.

Foi a partir dos anos 1980 que a beleza interferiu diretamente como agente de controle do corpo. Não que antes disso não existissem cremes anti-idade, redutores de celulite e elixires milagrosos de origem duvidosa — uns que até levaram muitas mulheres à morte. Isso sempre esteve presente, assim como os ideais de juventude e de um único padrão de beleza que sempre foi eurocêntrico.

Susan Faludi, autora do já clássico “Backlash”, de 1991, cita que, fora dos períodos de recessão e quando a direita não está em levante, a sociedade “aceita” o corpo da mulher cheio de vigor físico e saúde, é um momento “mais receptivo ao anseio de independência das mulheres”. Quando o contra-ataque aos nossos direitos acontece, a beleza padrão se alia à moralidade tradicional e prega um corpo frágil que reflete a obediência da mulher. Nos anos 1980, os ideais estéticos vendidos eram o da fragilidade e palidez, aliados ao incentivo das cirurgias plásticas e da venda do skincare como um combate ao envelhecimento — isso tudo junto à ideia da administração do corpo, que segundo David Le Breton, se tornou “um empreendimento a ser administrado da melhor maneira possível no interesse do sujeito e de seu sentimento de estética”. É pelo corpo que somos primeiro julgados, especialmente se você é uma mulher.

A volta da magreza está colada a períodos de recessão e também quando a voz da extrema direita aumenta o som

Se essa ideia for suficientemente forte e bem incutida na sociedade por meio do reforço positivo — e sobretudo do negativo — de nossas aparências (algo que todas nós sabemos bem como é), o corpo se torna quase que o foco total das mulheres, que passam a utilizar toda a sua capacidade para controlá-lo, desviando seus pensamentos para a observação minuciosa de cada parte de si, comparando-as com outras tantas imagens de corpos femininos.

Sabemos que a magreza extrema está de volta, como já escrevi aqui. As modelos plus size e medium size desaparecem dos desfiles de moda das semanas internacionais, as celebridades ressurgem cada vez mais magras. Isso não seria uma questão em si, afinal, cada um decide o que quer fazer do seu corpo. Mas a questão não é individual. Você vai me dizer: “Mas, Vanessa, me sinto mais bonita assim”. Claro, todo movimento que nos aproxima do padrão de beleza carrega com ele o capital social e afetivo de fazer parte.

O que precisamos observar com atenção é: como a volta da magreza, de forma silenciosa, se cola em períodos de recessão e também quando a voz da extrema direita aumenta o som. As incertezas aumentam e parece que é preciso se apegar a uma nostalgia do “antigamente era bom” (leia-se: a volta das tradwifes e o surto de tentar colar isso a um papel biológico natural feminino, que de natural não tem nada).

Esse discurso do lugar da mulher está bem junto do que prega a religião e dos pensamentos de muitos escritores ao longo dos séculos. A mulher deve achar seu lugar original de sacrifício e do anjo do lar (alô Virginia Woolf). No século 19, o livro “Woman”, de Jules Michelet, definiu que sacrifício era, antes de mais nada, uma palavra feminina, que a mulher deveria se sacrificar pelo seu homem, e que uma mulher perfeita deveria estar “sempre pronta a ceder a sua própria dor para que os outros não sofram”. Pronto, a gente precisa citar a pobre Sofia de Emílio?

A mulher que se sacrifica é aquela da moralidade, da virtude e da renúncia. É o perfeito manequim que não goza. Ela é a mulher da performance, daquilo que se espera dela. Nesse contexto, conter os impulsos do corpo, como a fome por exemplo, também é visto como capacidade de autocontrole maior e, portanto, de boa administração de si mesmo.

Seria a magreza o novo efeito batom? Uma das conclusões do estudo de 2022 é que se gasta mais com itens que aumentam a moral, como mostra o exemplo de idas ao cinema, mesmo durante a Grande Depressão para ver Charlie Chaplin. Pensando assim, quanto o corpo, mais do que a roupa, tem o poder de carregar todo o nosso valor dentro da sociedade atual?

Essa tese já viralizou em 2020 no TikTok e comprova que mais do que a roupa que se veste, é o corpo que a carrega que faz o resultado ser “harmônico” e aplaudido. Para saber mais, é só procurar pelo tweet de Rayne Fisher-Quann, uma jornalista canadense, ou pelas contas das tiktokers @senorapattinson e @sanrizzle, que trouxeram o questionamento de que as mesmas roupas usadas em corpos não magros parecem “cafonas”, mas quando vestidas por modelos como Kendall Jenner ou Bella Hadid são avaliadas como “estilosas”. Vale a pena buscar a trend para pensar mais sobre o assunto. Procure por: ‘is it fashion or she is just skinny?’- (ela é estilosa ou só magra?) e reflita.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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