Trecho de Livro: Não Me Pergunte Jamais, de Natalia Ginzburg — Gama Revista

Trecho de livro

Não Me Pergunte Jamais

Partindo de memórias da infância, impressões sobre obras de arte e acontecimentos corriqueiros, volume reúne textos impactantes da escritora italiana Natalia Ginzburg

Leonardo Neiva 10 de Junho de 2022

Uma menina atormentada por não saber se sua família é rica ou pobre e pela terrível ideia de não ser nem uma coisa nem outra; uma mulher que frequenta a ópera após ter feito uma assinatura da temporada, apesar de não conseguir escutar nenhuma delas; uma senhora espantada com a incapacidade de se espantar, que ela enxerga como um prenúncio da velhice. São essas e dezenas de outras Natalias Ginzburg (1916-1991) que surgem em “Não Me Pergunte Jamais” (Âyiné, 2022), volume que reúne os textos publicados pela escritora no diário italiano La Stampa entre os anos de 1968 e 1970.

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Caçula de uma família tradicional da esquerda italiana, a infância e chegada à idade adulta da escritora se confundiram com a ascensão do fascismo no país. Judia e casada com Leone Ginzburg, intelectual judeu, viveu boa parte do período ditatorial da Itália no exílio – o marido acabou morto por forças alemãs. Parte dessa história ela reconta nas lembranças do romance “Léxico Familiar” (Companhia das Letras, 2018), considerado por muitos sua obra-prima. Em “Caro Michele” (Companhia das Letras, 2021), ela também resgata o drama político familiar por meio de cartas que revelam não só a cisão provocada pela partida de um personagem importante, mas também o ressurgimento de movimentos radicais no cenário político italiano.

Em “Não Me Pergunte Jamais” – frase tirada do refrão de “Lohengrin”, ópera de Wagner que embalou a infância de Ginzburg e foi fonte de sua grande decepção com as óperas em geral –, o tom é cotidiano, mesclando gêneros como crônicas e ensaios. Seja uma pintura, a leitura do livro “Cem Anos de Solidão” ou a lembrança da primeira ida à escola, a autora parte de impressões sobre pequenos acontecimentos e memórias para traçar reflexões pessoais de forma aparentemente despretensiosa, mas que revelam os talentos de uma grande escritora e observadora do mundo ao tocar em temas maiores, ressoando de forma quase universal.


A velhice

Agora estamos nos transformando naquilo em que nunca quisemos nos transformar, ou seja, em velhos. Nunca desejamos nem nunca esperamos a velhice, e quando tentamos imaginá-la foi sempre de forma superficial, grosseira e distraída. A velhice nunca nos inspirou curiosidade ou interesse profundos. (Na história da Chapeuzinho Vermelho, a personagem que nos causava menos curiosidade era a avó, e não nos importava nem um pouco se ela saía ou não sã e salva da barriga do lobo). O estranho é que mesmo agora, quando somos nós que estamos envelhecendo, não sentimos nenhum interesse pela velhice. Assim, está acontecendo uma coisa conosco que não havia acontecido até hoje: até hoje nos mantinha acesos ao longo dos anos uma viva curiosidade por aqueles que iam ficando nossos coetâneos; mas agora sentimos que estamos avançando em direção a uma zona cinzenta, e faremos parte de uma multidão cinzenta cujas vicissitudes não poderão acender nem nossa curiosidade nem nossa imaginação. Nosso olhar ainda estará sempre destinado à juventude e à infância.

A velhice em nós significará, basicamente, o fim do espanto. Perderemos seja a capacidade de sentir espanto, seja a de causar espanto. Nada mais nos deixará maravilhados, depois de termos passado a vida nos maravilhando com tudo; e não faremos os outros se sentirem maravilhados, ou porque já nos viram fazer e dizer coisas estranhas, ou porque não olharão mais para nós.

Poderá acontecer de nos tornarmos ferro-velho abandonado no mato, ou ruínas gloriosas visitadas com devoção; aliás, talvez sejamos ora uma coisa, ora outra, sendo a sorte bastante mutável e caprichosa; mas tanto num caso como no outro não nos espantaremos; nossa imaginação velha de toda uma vida já terá usado e desgastado em seu ventre todo evento possível, toda volatilidade da sorte; e ninguém vai se espantar, sejamos nós ferro-velho ou ruínas ilustres: não há espanto na devoção dispensada às antiguidades, e menos ainda ao esbarrar em ferro-velho enferrujado em meio às urtigas. E na verdade não há nenhuma diferença apreciável entre ser uma coisa ou outra: nos dois casos o rio tépido dos dias corre em outras margens.

A velhice se entedia e é entediante; o tédio gera tédio, propaga tédio ao redor assim como a lula propaga sua tinta

A incapacidade de se espantar e a consciência de não causar espanto nos fará pouco a pouco adentrar o reino do tédio. A velhice se entedia e é entediante; o tédio gera tédio, propaga tédio ao redor assim como a lula propaga sua tinta. Nós assim nos preparamos para estar juntos, e a lula, e a tinta: o mar ao redor se tingirá de preto e esse preto seremos nós, justamente nós, que odiamos e fugimos a vida toda da cor preta do tédio. Dentre as coisas que ainda nos espantam há esta: nossa completa indiferença ao nos ver sujeitos desta nova condição. Uma indiferença provocada por estarmos caindo, pouco a pouco, na imobilidade da pedra.

Todavia, compreendemos que antes de nos tornar pedra nos tornaremos outra coisa, pois que também isso ainda é motivo de maravilha para nós: a extrema lentidão com a qual envelhecemos. Mantivemos por muito tempo o hábito de acreditar que éramos “os jovens” do nosso tempo, tanto que quando ouvimos falar de “jovens” viramos o rosto como se falassem de nós, hábito tão enraizado que talvez não o percamos, a não ser quando teremos nos tornado inteiramente pedra, isto à, às vésperas da morte.

Essa nossa lentidão em envelhecer contrasta com a rapidez vertiginosa do mundo que gira ao redor: a rapidez com que lugares se transformam e jovens e crianças crescem; nesse redemoinho somente nós somos lentíssimos, mudando de rosto e hábitos com a lentidão típica das lesmas, seja porque detestamos com toda nossa força a velhice e a negamos, mesmo depois de nosso espírito já ter se curvado a ela com indiferença; seja porque é trabalhosa e cansativa a passagem de animal a pedra.

O mundo ao redor que gira e se transforma conserva somente pálidos vestígios do mundo que foi o nosso. Nós o amávamos não por considerá-lo belo ou justo, mas porque nele dissipamos nossa força, nossa vida e nosso espanto. O mundo que temos hoje diante dos olhos não nos espanta, ou nos espanta muito pouco, mas nos escapa e nos parece indecifrável, e nele conseguimos ler apenas pálidos vestígios do que era. Gostaríamos que esses pálidos vestígios não desaparecessem, para ainda poder reconhecer no presente alguma coisa que foi nossa; mas sentimos que em pouco tempo não teremos, para expressar este desejo talvez pueril e ingênuo demais, nem força, nem voz.

Mantivemos por muito tempo o hábito de acreditar que éramos “os jovens” do nosso tempo, tanto que quando ouvimos falar de “jovens” viramos o rosto como se falassem de nós

À exceção desses tênues resquícios, para nós o presente é obscuro e não sabemos como nos acostumar a tal obscuridade; perguntamo-nos que tipo de vida é a nossa, se um dia conseguiremos acostumar nossos olhos a tanta escuridão; perguntamo-nos se nos anos futuros não seremos um bando de ratos enlouquecidos entre as paredes de uma fossa.

Perguntamo-nos sem parar como passaremos o tempo da velhice. Perguntamo-nos se insistiremos em fazer o que fizemos quando jovens: se, por exemplo, seguiremos escrevendo livros. Perguntamo-nos que tipo de livro conseguiremos escrever em nossa cega correria de ratos, ou mais tarde, quando teremos caído na imobilidade das pedras. Na juventude, nos falaram da sabedoria e da serenidade dos velhos. Nós, porém, não sentimos que seremos capazes de ser nem sábios nem serenos; aliás, na verdade nunca amamos a serenidade e a sabedoria, sempre amamos a sede e a febre, as buscas inquietas e os erros. Mas a nós em pouco tempo até os erros serão vetados, pois sendo o presente incompreensível, nossos erros ainda terão a ver com aqueles inexpressivos vestígios de um tempo anterior e que está prestes a desaparecer; nossos erros sobre o mundo de hoje serão como desenhos na areia ou o ruído de ratos correndo pela noite.

O mundo que temos pela frente e que nos parece inabitável será no entanto habitado e talvez amado por algumas das criaturas que amamos. Que esse mundo esteja destinado a nossos filhos, e aos filhos de nossos filhos, não nos ajuda a entendê-lo melhor, pelo contrário, aumenta nossa confusão. Porque o mundo que nossos filhos conseguem habitar e decifrar nos é obscuro; e, aliás, eles estão acostumados desde a infância a nos dizer que nunca entendemos nada. Por isso nossa postura diante de nossos filhos é humilde e às vezes até mesmo insignificante.

Diante deles, sentimo-nos como crianças na presença de adultos, pois na verdade estamos absortos em nosso lentíssimo processo de envelhecimento. Todo gesto realizado por nossos filhos nos parece fruto de grande astúcia e pertinência, parece-nos aquilo que nós também sempre quiséramos fazer e sabe-se lá por que nunca fizemos. De nossa parte, não somos capazes de realizar nem mesmo um gesto no presente, pois todo gesto nosso automaticamente despenca no passado.

Na juventude, nos falaram da sabedoria e da serenidade dos velhos. Nós, porém, não sentimos que seremos capazes de ser nem sábios nem serenos

Assim medimos as imensas distâncias que nos separam do presente, vemos que teríamos diluído qualquer ligação com o presente se não estivéssemos envolvidos nas complexas e dolorosas tramas do amor. E uma coisa ainda nos espanta, a nós, que hoje em dia somos cada vez mais raramente tomados de maravilha: observar como nossos filhos conseguem habitar e decifrar o presente, e cá estamos sempre concentrados em soletrar as palavras límpidas e claras que encantavam nossa juventude.

Dezembro, 1968

Produto

  • Não Me Pergunte Jamais
  • Natalia Ginzburg
  • Âyiné
  • 250 páginas

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