Trecho de livro

Uma História da Velhice no Brasil

Das indígenas idosas nos tempos coloniais aos dias de hoje, a historiadora Mary Del Priore viaja pela dura trajetória do envelhecimento no país

Leonardo Neiva 25 de Abril de 2025

Aos olhos do mundo, o Brasil é um país relativamente jovem. Afinal, fomos “descobertos” há poucos mais de 500 anos — ignorando, é claro, as milhões de pessoas que já viviam por aqui na chegada das primeiras naus portuguesas. Porém, se há algo que irritou, surpreendeu e escandalizou os europeus cinco séculos atrás, foram os velhos que habitavam estas terras. Mais especificamente, as mulheres indígenas idosas, cujas imagens de nudez — em sua maioria, retratadas com pouquíssima verossimilhança — circularam pela Europa na época e ajudaram a construir o ideário fantasioso das bruxas então caçadas pela Inquisição.

É desse ponto de partida bem pouco amistoso que a historiadora e escritora Mary Del Priore constrói seu livro “Uma História da Velhice no Brasil” (Vestígio, 2025), uma viagem pela trajetória do que significa ser idoso no país. Lançando mão de uma grande pesquisa documental, a obra desvela uma narrativa envolvente sobre as diferentes maneiras como a sociedade brasileira viu, tratou e representou a velhice dos tempos coloniais aos dias de hoje, época em que enfrentamos novos desafios, como o envelhecimento da população.

Mesmo numa sociedade profundamente etarista, ainda é surpreendente descobrir o preconceito e o pouco caso com que a velhice foi tratada por governos, pela cultura nacional e até pela Igreja, na qual a figura dos idosos frequentemente se confundiu com a imagem do pecado e do mal. Por um lado, símbolos de sabedoria e respeito e, por outro, de exclusão e abandono, Del Priore mostra como a visão que temos dos idosos foi sendo moldada ao longo do tempo por valores sociais, políticos e econômicos.

E, logo de cara, a autora nos lembra de uma realidade que muitos tendem a ignorar, especialmente na juventude. “Com dor no joelho ou outros males, envelhecer pode ser difícil ou chato”, escreve no prefácio. “Mas é a única maneira de continuar vivo.”


A velha bruxa e a índia de seios caídos

Mas o que mais impressionou os primeiros cronistas foi a índia velha. Ora, se tudo parecia tão harmonioso, tão divino, onde estava a fonte da juventude que, segundo relatos, ficava no Jardim do Éden? Os indígenas a conheceriam? Afinal, era possível vê-los idosos e atarefados, ativos na vida familiar e nas atividades do grupo. Mas o tal banho milagroso seria só para os homens, pois o que mais impressionou os estrangeiros não foram eles, mas elas. Sim, porque, à época, surgiu uma das imagens mais presentes na ilustração dos livros de viagens: “a selvagem de seios caídos”. O responsável pela difusão desse retrato foi o editor e gravador protestante Theodor de Bry, que, em 1588, passou a expor e vender em Londres suas gravuras sobre o Novo Mundo.

A veracidade das ilustrações é questionável, pois de Bry nunca atravessou o Atlântico; porém, as cenas de antropofagia, a nudez e a invenção de uma nova figura — a índia-bruxa — fizeram espetacular sucesso entre o público europeu. A velhice do corpo feminino servia para desqualificar as novas terras. Sua feiura não era um mal, mas O mal. Suas pelancas remetiam às descrições de feiticeiras que, na época, as fogueiras das Inquisições católica e protestante se encarregavam de queimar. A bruxa, tanto na descrição de teólogos, quanto nas pinturas, era sempre a mulher velha. Velha e invejosa da vitalidade e do frescor da juventude, comedora de recém-nascidos, cuja carne, acreditava, a remoçaria.

A América passava assim a ser Éden e inferno ao mesmo tempo. O horrendo, o nauseabundo, o desfigurado, o indecente, o sujo, o obsceno, o repelente eram o signo das velhas índias. Associadas aos textos que descreviam e nomeavam os povos originários como “selvagens”, de Bry as ressignificou como diabólicas e feiticeiras. Mamas penduradas, caras enrugadas e disformes eram símbolos de feiura tanto moral — a heresia — quanto física — a velhice. Retratá-las a meio caminho entre realidade e ficção, por outro lado, revelava o preconceito que já existia na Europa: velhas eram consideradas bruxas.

Os textos só confirmavam a imagem: “As velhas acendem as fogueiras para assar os membros…”. Untavam mãos, caras e bocas com gordura desprendida do assado. Tinham boa carniça com que se fartar: “sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno”. Seguem-se gritos de alegria e distribuição de pedaços. “[…] com rugas na testa e seios caídos, cabelos desalinhados e ralos, lambem os dedos sujos de gordura do morto”, explicava o calvinista Jean de Léry.

A velhice do corpo feminino servia para desqualificar as novas terras. Sua feiura não era um mal, mas O mal

Os padres endossavam: “Já não tinham dentes de tanto roer ossos humanos” explicaria o jesuíta Luis Figueira. Seu confrade Luiz de Azpicuelta contava ter visto, com os próprios olhos, índias velhas cozinhando braços, pernas e cabeças num grande caldeirão, dentro da choça. Seis ou sete delas dançavam em volta da panela. Tanto que mais pareciam demônios do inferno — horrorizava-se o religioso, que não escondia o nojo, o horror e a repulsa. Ao que Léry emendava: as velhas “gulosas” recolhiam a gordura que caía da grelha e, lambendo os dedos, comemoravam: “‘Iguati’, o que significa ‘está muito bom'”. Sem dúvida, um espetáculo monstruoso para católicos e protestantes. Um século mais tarde, Gaspar Barléus acrescentaria: quando se tratava de comer o marido ou um amigo, “comem as carnes e raspam os ossos não em sinal de inimizade, mas de afeto e fidelidade”. Um consolo.

Não faltou a história, contada numa das cartas aos provinciais, do jesuíta que foi levar a extrema-unção a uma velha que, perguntada sobre o que mais desejaria naquela hora, em vez de responder “o paraíso”, foi taxativa: uma mãozinha de criança bem moqueada!

Pior. Por mais que os jesuítas ensinassem os artigos da fé às velhas, elas “nada podiam aprender”. Lógico: segundo a Igreja, eram inferiores aos homens desde que Eva conversou com a serpente e mordeu a maçã. Vez por outra, os padres anotavam um “bom exemplo”: o da “velha manceba de um português por quarenta anos”, mãe de muitos filhos “que, ferida de longa e incurável enfermidade”, se tornou casta, comungava todos os dias e distribuía esmolas.

Aos olhos dos jesuítas, nativas eram malditas por serem velhas, mas, sobretudo por serem antropófagas, por andarem nuas e terem um passado de “luxúria”. Eram elas que também preparavam as bebidas fermentadas responsáveis pela “bebedice”. Velhas gostavam de “beber fumo” num canudo de cana cheio de erva santa. Sobretudo quando doentes, “gastando nisso dias e noites”, contou Fernão Cardim, provincial dos jesuítas na Bahia, em 1604, e crítico da preguiça que o fumo engendrava. Diante de seus pajés, que lhes prometiam juventude, pareciam “demoninhadas, deitando-se por terra e escumando pela boca”, descreveu o Padre Nóbrega. E o Padre João de Azpicuelta relatou “festas de feiticeiros” nas quais se dançava à volta de uma cabaça adornada com penas, representando “seu santo”, “Amabozaraí”, que teria a virtude de fazer os velhos se tornarem moços. Pelo visto, ninguém gostava de ficar velho.

Nesse contexto, explica o historiador Ronald Raminelli, as imagens das velhas tupinambás canibais circularam de forma intensa na Europa. Mais do que uma imagem, ajudaram a introduzir novos elementos de identificação da bruxa: o caldeirão, a nudez e o sabá ou a dança em grupo. A feição agressiva, a velhice e a feiura aderiram à representação da feiticeira europeia. Ela era uma velha de alma viciosa, cuja vida fora dedicada ao pecado e a servir a Satã. Mais: os bichos usados na preparação de poções diabólicas pelas bruxas, ou seja, vermes, lagartixas, cobras, sapos ou ossos de defuntos, eram os mesmos que colonos enfeitiçados iriam expelir pela boca, pelo ânus, pela vagina ou através da pele nos
rituais de curandeirismo praticados por feiticeiras índias, negras, brancas e mestiças. Índias velhas na América eram a mesma coisa que as bruxas europeias que cultuavam ídolos identificados ao demônio.

Mais do que uma imagem, ajudaram a introduzir novos elementos de identificação da bruxa: o caldeirão, a nudez e o sabá

E não: nossas indígenas nunca teriam bebido da Fonte da Juventude. Porém, foram elas o elemento fundamental para a multiplicação de povoadores. Elas lhes ofereceram uma tábua de salvação: seu modo de vida. Fundadoras de famílias mestiças, ensinaram aos colonizadores a higiene do corpo, a fabricação de utensílios de cozinha e de redes de dormir, os remédios caseiros, os cuidados com a infância, a domesticação de animais, o consumo do milho, do inhame, do jerimum e do caju, o preparo do mingau, a paçoka e a acanijic, a colheita do abacaxi e a extração do mel, entre milhares de outras práticas que os ajudaram a sobreviver e, portanto, a envelhecer por aqui.

Velhice & Feiura

Em sua viagem para as Américas, cristãos trouxeram na bagagem conceitos de estética. Por exemplo, o de feiura e o de beleza. Esses eram tempos em que o ideal grego de perfeição física estava no coração e nas mentes. A repulsa aos sinais do envelhecimento se exprimia sem pudor. Mulheres eram particularmente visadas. O Renascimento assestou suas baterias contra elas. As duas Reformas, a católica e a protestante, lembravam que foi uma velha, no Jardim das Oliveiras, que mostrou aos soldados o lugar onde se encontrava Cristo. Maldita velha! O ideal renascentista de beleza, amor, prazeres terrestres representados em tantas Vênus pintadas por imensos artistas teria a sua antítese na velha. A mulher servia para ilustrar extremos: jovem e bela. Velha e feia.

No século XVII, o poeta baiano Gregório de Mattos não deixou de incluir, nas “Inconstâncias da vida”, seu pesar pelo fim da beleza: “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia/ Depois da Luz se segue a noite escura/ Em tristes sombras morre a formosura/ Em contínuas tristezas, a alegria”. Já as velhas e feias ele chamava de “jabiracas”!

Pelancas, dobras, rugas, mau cheiro, calvície: o corpo feminino acusava o envelhecimento. E a mulher velha era automaticamente feia. A feiura atribuída às velhas era uma mancha no universo belo. Belo porque criado por Deus. Ele mesmo, depois de criar o Universo, achou “tudo bom”. Até a feiura!, pois ela só existia para valorizar a beleza da obra divina. Segundo Santo Agostinho, a feiura tinha um sentido: fazer brilhar o seu contrário. Segundo ele, a juventude era signo de pureza e beleza; a velhice, de horror e pecado.

Mas a velhice da mulher não era apenas o avesso da harmonia. Ela se identificava à degenerescência, ao esgotamento, à decomposição e à putrefação. A figura da velha depravada era sempre retratada sem cabelos, olhos remelentos, peito de cigarra, pernas finas e desdentada. O véu era recomendado para cobrir o rosto desfigurado pelo tempo. Seus pecados rompiam a ordem das coisas criadas por Deus. E essa ordem só era restabelecida pelo castigo.

E ele vinha na forma de uma celebração tradicional. Em Portugal ou no Brasil, às vésperas da Quaresma, bandos de jovens “serravam a velha”. Para a brincadeira, escolhia-se uma velha idosa, mas ainda coquete, como referência para uma figura recheada de palha. Passeava-se com a velha pelas ruas, aos gritos de “serra a velha, serra a velha”. A boneca acabava em pedaços, sob o barulho de instrumentos, música e gritos dos foliões. Era costume a comédia ser representada na frente da residência de velhos. O costume vigorou até o final do século XIX, e era punido com multa o infrator que participasse do festejo. Mas
quem era a velha? Uma representação da morte.

A figura da velha depravada era sempre retratada sem cabelos, olhos remelentos, peito de cigarra, pernas finas e desdentada

Com seu leque de fealdades, a velhice também era cantada em prosa e versos no teatro e na literatura jocosa da época. Nas “cantigas portuguesas de escárnio e maldizer”, vários autores retrataram as velhas: Pero da Ponte, João Soares Coelho, entre outros estudados por Caroline de Souza Viana. Para eles, a velhice se confundia, como já visto, com pecado, perdição, doença, coisa ou pessoa ruim ou estragada. Diego Hurtado de Mendonça, por exemplo, não economiza imagens sobre certa “Senhora Aldonza”: “um só dente, peitos de cigarra onde moram teias de aranha, perna de formiga, vista de coruja, fedor de peixe desandado e pele de frango depenado”. Também não faltaram os que ridicularizavam as que escondiam a idade com cremes e preparados, caso de Francisco de Quevedo: “Que espetáculo uma velhusca pretender ressuscitar com uma ampola”. Nada era dela; se lavasse o rosto seria irreconhecível, ele prevenia.

O cristianismo não demonstrou interesse pelos velhos. Seus teólogos viam na velhice um problema abstrato e simbólico — diz o historiador Michel Muchembled. Associavam a idade à sabedoria e ao poder, mas não tinham qualquer constrangimento em exagerar dados cronológicos sem qualquer ligação com a realidade. Adão teria vivido 930 anos e Matusalém, 969! Eles utilizaram a velhice como alegoria para o domínio da moral e dos bons costumes. A carne tinha que expressar uma realidade espiritual. Ela era “a veste da alma”. Nas pinturas da época, os feios e velhos são os transgressores das leis da Igreja.

Daí que a decrepitude, com sua cadeia de horrores, servia para formar a imagem ideal do pecado. Quanto mais pecados, mais rápido se envelhecia. O homem velho era o pecador que tinha que se regenerar pela penitência. O jovem, ao contrário, era o homem novo salvo pelo Cristo. E os pregadores enchiam a literatura religiosa descrevendo as taras da senilidade. Santo Agostinho cravava: “Gostaríamos de poder unir a beleza com a velhice, mas tais desejos são contraditórios; se te tornas velho não esperes conservar a beleza, ela fugirá da aproximação da velhice e não podemos ver habitar numa mesma pessoa a força da beleza com as lamentações da velhice”.

Como já foi dito, um velho que gozasse de boa saúde só poderia se explicar pela intervenção diabólica ou por um favor divino a um ser especialmente virtuoso, explicam as pesquisadoras Mari Paz Martínez Ortega, Maria Luz Polo Luque e Beatriz Carrasco Fernández. O prolongamento da vida não era desejável. Só trazia desgastes. Cansaços. A velhice saudável — como a dos moradores da América — não era vista apenas como uma condição biológica, mas como uma demonstração da soberba do homem em relação a Deus — logo, um símbolo da propensão humana para o pecado. Para combatê-lo, velhos tinham que ser sóbrios, honrados, castos, saudáveis na fé, no amor e na paciência. Os lúbricos, em busca de carne jovem, seriam condenados a ser eternamente doentes, chifrudos e chifrados.

A velhice saudável — como a dos moradores da América — não era vista apenas como uma condição biológica, mas como uma demonstração da soberba do homem em relação a Deus

Produto

  • Uma História da Velhice no Brasil
  • Mary Del Priore
  • Vestígio
  • 320 páginas

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