Trecho de Livro: Humanos Exemplares, de Juliana Leite — Gama Revista

Trecho de livro

Humanos Exemplares

Segundo livro da escritora carioca Juliana Leite acompanha o cotidiano de uma viúva idosa e solitária, que vive por meio de lembranças para suportar um presente tedioso

Leonardo Neiva 15 de Julho de 2022

Enclausurada em seu apartamento, Natalia conta a passagem dos dias por meio de cafés e pães com manteiga, da leitura cada vez mais infrutífera dos jornais e de uma eterna espera pelo toque do telefone ou da campainha, por mais improvável que este possa parecer. Após a morte do marido e a ida da filha para outro país, a idosa protagonista de “Humanos Exemplares” (Companhia das Letras, 2022), da escritora carioca Juliana Leite, divide seu espaço principalmente com as memórias, único lugar onde sua vida continua se movendo.

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Em seu segundo livro, a autora de “Entre as Mãos” (Record, 2018), finalista do Prêmio Sesc de Literatura, explora as consequências do envelhecimento de uma mulher solitária, a única sobrevivente de um grupo de amigos que acabou sucumbindo à idade. Assim, Leite evoca uma existência muito mais presa ao passado do que ao presente, em que reviver amores, laços familiares, erros e acertos, talvez seja a única oportunidade de seguir vivendo.

Apesar de abordar temas de peso, como a ditadura, sombra que também resiste nas lembranças da protagonista, e as complexidades da relação entre mãe e filha, a escritora consegue inserir humor e um ritmo leve num romance que evoca reflexões sobre o que significa a vida quando esta se aproxima de seu fim – e quando tudo mais ao redor também parece estar desaparecendo. Desde os primeiros parágrafos, o livro constrói um sentimento de continuidade e um melancólico êxtase por seguir existindo, mas sem abafar o tiquetaque do relógio que ressoa ao fundo, dia após dia: “Ela se sente assim, como alguém que permaneceu, por enquanto.”


Ela abre os olhos para mais um dia e já não pode impedir a si mesma de se sentir um pouco livre, ela se sente assim, como alguém que dormiu numa rede fresca e acordou livre para escolher o que fazer em uma manhã comum. Quem olha de fora percebe que seus ossos despertaram firmes sobre a cama, mais ou menos firmes, e isso sim é uma surpresa. A quantidade de ossos que uma velha possui é um espanto, um assombro, porque afinal alguns humanos como ela sumiram, muitos já sumiram e até agora por algum motivo ela permaneceu, ela se sente assim, como alguém que permaneceu, por enquanto.

Como ainda não se apagou, como ainda existe mais ou menos como antes, membros, pele, pulmão, ela pode até confundir um pouco as coisas, achar que isso significa que é uma velha de sorte. Mas logo todos esses pensamentos se apagam porque está na hora de se levantar para passar o café, pronto, já está na hora de ela se vestir e fazer o de sempre, o de todos os dias, e a sorte não costuma ter nada a ver com isso.

Ainda bem que a manteiga dormiu fora da geladeira esta noite. O pão não é fresco, mas a velha não se importa com isso, não mesmo, ela até prefere assim. Ajeita um pratinho e a xícara, aqueles do jogo com flores vivas, e aperta quatro vezes o êmbolo da garrafa de café para se servir. Ela adora a companhia dessa xícara florida, ainda mais quando o vapor do café sobe; deixa espaço suficiente para pingar um pouquinho de leite quente por cima, assoprando a leiteira para impedir que a nata venha junto. A velha não gosta de beber a nata, mas sim de passá-la dentro do pão, junto com a manteiga, e é por isso que pesca a gordura do leite com um garfo.

É na mesa da cozinha, no jornal que ainda não foi aberto, que novas pessoas se apagam nas notícias. Todos os dias os apagamentos se acumulam e se empilham por toda parte formando um número impossível. Só de olhar para a lista de apagados uma velha de apartamento pode imaginar que a sorte morreu, que os vivos talvez sejam fruto do acaso e que, mesmo que ainda respirem, bem, eles também desaparecem pouco a pouco, de todo jeito, e em algum momento acabam se unindo aos demais.

Embora outras coisas ainda aconteçam, notícias comuns, nesse momento é como se o comum estivesse impedido de existir, adiado e em suspenso, com a rua fechada por um tapume que encobre a vista e a passagem. Antes a velha abria o jornal de manhã e lia as notícias se sentindo um pouco como uma investigadora, uma espiã apta a encontrar ali, por trás daquelas linhas, o objeto escondido do dia. Havia algo a ser buscado por seus olhos, uma pedra, algo que ao ser encontrado daria a uma velha a sensação de recompensa por ela ainda estar informada, ciente do mundo. Ultimamente essa velha desistiu disso, está até constrangida de buscar pela pedra, não saberia em que bolso guardá-la ou o que fazer para lidar com seu peso.

A quantidade de ossos que uma velha possui é um espanto, um assombro, porque afinal alguns humanos como ela sumiram, muitos já sumiram

Ela adia a abertura do jornal e molha o pão no café com leite bem quente. Morde a ponta molhada do pão onde a manteiga está derretida e logo sente aquilo que mais desejava nesta manhã, a gordura salgada tomando a superfície da língua. A gordura é generosa e a velha se arrepia inteira, é sempre assim, uma gordura quente e salgada faz uma velha como essa arrepiar todos os pelos de manhã cedo. Ela sente o grande prazer do pão molhado entre os dentes e de repente fica um pouco encabulada. Talvez devesse pedir autorização por escrito a alguém para, além de seguir viva a essa altura, ainda por cima sentir prazer na língua, talvez esse fosse o procedimento correto, ver se ainda é permitido aos humanos revirar os olhos de delírio.

Mas agora é tarde, ela já mordeu o pão e já sentiu o prazer engordurado invadindo o corpo, de alguns gozos não se pode voltar atrás. Ainda assim, são tantas as coisas que se derretem e que se desfazem, são tantas as maneiras de se desfazer que uma velha amanteigada também acaba se diluindo um pouco, ela se desfia a cada vez que se lembra da imagem de alguém amado que desapareceu, um humano, um parente, um animal, uma paisagem, uma geleira, uma estrada, uma dama-da-noite, uma formiga, um colibri, um cavalo-marinho, uma manada, um cupinzeiro, um riacho, uma montanha, um barbante, uma borracha escolar, fios de cabelo, todas essas coisas importantes já se diluíram bem diante dos seus olhos formando uma coleção de ausências. A falta dessas coisas já estava dentro do pão, pela manhã, antes mesmo de uma velha morder qualquer coisa.

Ela termina o café num gole largo porque prefere o leite pelando e nos dias de hoje o leite esfria muito mais rápido do que antigamente. É difícil dizer por quê, mas é o que acontece. Põe a xícara dentro da pia, onde já estão as louças do dia anterior, e então pode abrir as janelas a qualquer momento. Pronto, ela abriu as janelas da sala e agora tudo está mais fácil para quem olha de fora.

Hoje a luz da manhã está mesmo uma beleza. Quando o dia está assim a velha se sente levemente empolgada, ajeita o sofá azul, o tapete e os quadros na parede como se algo novo e bom estivesse prestes a acontecer. A sala está arejada e algo agradável pode surgir em breve, por que não? Seu maior desejo, vejamos, seria ouvir inesperadamente a campainha, abrir a porta do apartamento e encontrar ali do outro lado um visitante, imagine só, alguém adorável trazendo novidades e rosquinhas de presente. Isso seria esquisito e genial para alguém como a velha, que não lava a louça nem limpa a cozinha, mas que faria tudo isso contente caso houvesse a chance de aparecer alguém em casa.

Já faz bastante tempo que ninguém entra pela porta, ninguém mesmo. Se isso acontecesse nesta manhã a velha estaria em apuros, não teria nem mesmo geleia para oferecer ao visitante, tampouco manteiga, já que hoje ela exagerou e passou tudo que restava no pão do café da manhã. Ela se preocupa porque não teria nada de gostoso para servir, e ainda precisaria se sentar longe da visita porque, além de tudo, nem banho ela tomou hoje. Não seria recomendável que ficasse assim, tão perto de alguém, ainda mais se esse alguém fosse amável.

Mas na maior parte das horas a velha fica bem quieta e parada, tão quieta e parada que alguém inexperiente poderia achar que pronto, agora essa velha morreu

A velha se senta um pouco no sofá, cruza as pernas, não tem pressa de nada. Repara que seu roupão felpudo precisa ser lavado, isso tem que acontecer em breve porque a mancha no colarinho, a mancha bege, é café com leite de ontem, de anteontem ou de semana passada. O gole de café com leite caiu no colarinho naquele dia em que o telefone tocou em uma hora incomum, muito incomum neste apartamento, e isso foi um susto tão grande que ela acabou cuspindo um pouquinho do café que estava na boca. É preciso lavar o roupão, ela sabe, mas prefere deixar para quando fizer um dia de sol, um belo sol que seque rapidamente seu único roupão. Isso não vai acontecer hoje.

Hoje, por acaso, ela está vestindo azul por baixo, mas isso não acontece sempre. Para quem olha de fora, a velha de azul pode estar encoberta pelas cortinas, a não ser nos dias realmente quentes em que ela não aguenta e deixa tudo aberto. Quando fica perto das cortinas, a velha compõe uma paisagem em que quase nada se move, uma paisagem sem vento e sem barcos. Depois é possível vê-la perambulando de lá pra cá, embora às vezes ela suma de vista inesperadamente. Quando não está enquadrada por um dos vidros, significa que andou para o banheiro ou para a área de serviço, os dois únicos lugares em que pouco se pode saber sobre o que ela está fazendo, uma pena.

Mas na maior parte das horas a velha fica bem quieta e parada, tão quieta e parada que alguém inexperiente poderia achar que pronto, agora essa velha morreu. Isso, porém, ainda não é verdade, por enquanto não. Basta o telefone tocar para ela se mexer como alguém vivo. Pode parecer mentira, mas a velha já foi vista inclusive correndo pela sala para tirar logo o fone do gancho e não perder a ligação. Ela preferiria perder os dentes a perder um telefonema, até porque esses dentes já não são mais os de fábrica, eles não são nem parecidos com os originais.

Como já está sentada e não tem pressa, ela aproveita para retirar coisinhas incômodas do nariz enquanto pensa que um bom visitante seria aquele rapazinho que trabalhava na padaria, aquele que começou no caixa mas depois foi promovido graças à receita de pão doce da avó. Não há como saber se os pães doces ainda existem, afinal não se sabe ainda quem sobreviveu do lado de fora. Na semana passada uma vizinha do prédio da frente gritou da janela avisando que a padaria havia fechado as portas, e que portanto todos estavam na rua, inclusive o rapazinho. A vizinha não apareceu mais na janela desde então e por isso a velha não sabe o desdobramento do assunto.

A verdade é que o tal visitante repentino provavelmente se sentiria entediado ao lado da velha, afinal o que alguém como ela teria de novo para contar a não ser que o cabelo está caindo e que todos os fios estão recolhidos ali dentro daquele potinho. Caso se tratasse de um visitante ideal, sem defeitos, ele se interessaria em observar esses fios junto com a velha e seria bravo o suficiente para pegar tudo isso e jogar no fogo, no ralo ou pela janela, em nome da limpeza ou apenas do divertimento. Imagine se, além disso, o visitante tivesse um isqueiro de prontidão no bolso e um espírito livre. Essa velha adora o cheiro de cabelo queimado, mesmo que muitos humanos torçam o nariz para isso. Resta apenas saber onde está esse visitante, alguém que ainda se interessa por velhas e por brincadeiras perigosas e que por ora não surge.

Em algum momento a filha se tornou uma filha que mora longe e Vicente desapareceu porque, bem, ele morreu e por isso ficou ocupado com outras coisas

Bem, nesta manhã a velha pode até estar com o roupão sujo, mas ao menos seu nariz já está bem limpo. Nos últimos anos quem olha de fora só vê a mulher sozinha em todos os cômodos, mas não foi sempre assim. Houve um tempo em que quem olhasse pela janela perceberia ali com a mulher pelo menos duas pessoas: Vicente, o marido, e a filha deles, que naquele tempo poderia ser ruiva ou loira perolada, a depender do resultado da tintura. As luzes do apartamento ficavam acesas e o cheiro de comida atravessava a sala. Faz tempo que eles não fazem mais companhia à velha, mas não é por mal. Em algum momento a filha se tornou uma filha que mora longe e Vicente desapareceu porque, bem, ele morreu e por isso ficou ocupado com outras coisas.

Produto

  • Humanos Exemplares
  • Juliana Leite
  • Companhia das Letras
  • 248 páginas

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