COLUNA

Francisco Brito Cruz

Quem deve regular as plataformas?

O objetivo é buscar entender como plataformas decidem o que mostrar e para quem e sua relação com o exercício de direitos

25 de Abril de 2025

Antes de tudo, um aviso: este texto vai falar de órgãos públicos e vai usar algumas siglas. Sei que isso costuma espantar, mas vale a pena segurar o tédio por uns minutos. Porque a discussão sobre quem vai regular as plataformas digitais no Brasil está aberta — e tem muita gente querendo ocupar esse espaço. Entender esse jogo agora é fundamental para não entregar essa tarefa para qualquer um.

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O governo federal está se preparando para enviar, ainda no primeiro semestre de 2025, uma proposta de regulação das plataformas. Essa pode ser a última cartada do governo no tema ainda neste mandato.

Entretanto, o contexto é diferente de 2022 ou 2023. Essa cartada vem em um momento da geopolítica que diferentes países debatem internamente como devem se posicionar e construir sua soberania (e estruturas de governança) no meio digital. E, justamente por isso, questões que ficavam para o rodapé há alguns anos vêm para o cabeçalho hoje. É o caso da discussão sobre quem deve aplicar regras e fiscalizar obrigações a serem estabelecidas para grandes plataformas digitais.

Esse ponto, que parece técnico, é na verdade político — e estratégico. A escolha do órgão regulador vai moldar o tipo de regulação que teremos. Ela pode nos empurrar para um modelo punitivo, baseado em remoção de conteúdo, ou nos levar a um caminho mais cuidadoso, que olhe para os sistemas, as lógicas de funcionamento e os modelos de negócio.

Criar algo novo era uma opção, mas não parece mais ser. Um órgão independente, com autonomia financeira, técnicas multidisciplinares e capacidade plena de fiscalização seria ideal, mas demoraria décadas para estar em pleno funcionamento e exigiria espaço no orçamento. Não é possível ignorar que o tempo é curto e que para muitos atores a urgência do momento exige pensar em um caminho de compromisso — talvez reforçar o que já está em curso.

Nesse ponto, entra em cena um peso pesado, a Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. A agência que regula as telecomunicações está abertamente fazendo lobby para assumir também a regulação das plataformas. É uma opção com apoio em setores do Congresso – e em alguns pontos da discussão sobre o digital, faz sentido. Questões que envolvem infraestrutura — como o combate a apostas ilegais, que dependem de bloqueios técnicos — precisam de interface direta com as operadoras, por exemplo. São pontos fundamentais para a garantia da soberania e do Estado de direito. Porém, quando saímos dessa camada e entramos na lógica das plataformas, o cenário muda.

As principais plataformas digitais não operam como as empresas de telecomunicação. O que move seus negócios não é a capacidade de sua infraestrutura de rede e atendimento ao cliente na ponta da linha, mas o ciclo contínuo entre tratamento de dados e sistemas de moderação de conteúdo. Elas vivem de coletar informações, traçar perfis, segmentar públicos e preparar ambientes para a produção, recomendação e consumo de conteúdos. E a Anatel, com todo o seu peso institucional, simplesmente não tem fluência nesse vocabulário. Pior: tem sinalizado que quer entrar no campo da moderação de conteúdo na lógica do controle de postagens específicas. Fala em fiscalizar fake news, combater pirataria em marketplaces, supervisionar o que circula nas redes.

Com isso, a liderança da agência nos leva direto para uma discussão improdutiva sobre censura que tem prejudicado o debate sobre os projetos de lei no próprio Congresso Nacional. Mais do que isso, revela que não está sintonizada com as experiências internacionais recentes e como que elas podem ser compatíveis com padrões internacionais de proteção a direitos humanos. O DSA, regulação europeia de redes, não segue essa lógica de “combate a fake news” no varejo, mas sim de criação de obrigações de transparência e de devida diligência para uma conduta empresarial responsável. Não é remover este ou aquele post que vai transformar o ambiente digital, mas uma discussão sistêmica sobre qual é a arquitetura dos serviços digitais e sua relação com o exercício de direitos a partir deles.

Não é remover este ou aquele post que vai transformar o ambiente digital, mas uma discussão sistêmica sobre qual é a arquitetura dos serviços digitais e sua relação com o exercício de direitos

Tem mais: a Anatel tem tentado assumir competências que hoje já são bem desempenhadas por outros entes. Um exemplo recente são as propostas de transferir a gestão dos nomes de domínio para a agência, tirando isso do Comitê Gestor da Internet. Essa ideia, além de desnecessária, coloca em risco um modelo de governança que tem funcionado e que é referência internacional.

Diante disso, talvez seja hora de olhar com mais atenção para um outro órgão — um que vem avançando com menos barulho, mas mais consistência. Estou falando da autoridade responsável pela proteção de dados pessoais no Brasil — a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados). Criada em 2018 com a missão de zelar pelo cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados, ela vem se consolidando como uma referência em temas que estão no centro do funcionamento das plataformas: uso de dados, modelos de negócio e elaboração de relatórios de impacto sobre direitos.

No debate de regulação de plataformas a ANPD já se manifestou para ao menos manter as suas competências, mas vale pensar se ela não seria o ente certo para fazer mais — inclusive a partir de maior reconhecimento dentro do próprio governo.

Primeiro porque não está dedicada a falar de controle individual de conteúdo — e parece não querer. De fato, não devemos querer uma autoridade disposta a isso. O que faz sentido é buscar entender como plataformas decidem o que mostrar e para quem, por exemplo. Com efeito, a ANPD está posicionada para nos ajudar a saber quais dados são tratados, com que finalidade e com quais impactos. Com isso, entender como os sistemas de recomendação e moderação interagem com tais tratamentos parece uma consequência lógica.

E esse olhar sistêmico já está no seu dia a dia. Por conta da LGPD, a ANPD já conta com relatórios de impacto à proteção de dados, por exemplo, que exigem que empresas analisem os efeitos dos seus próprios sistemas sobre direitos fundamentais. É a lógica que faz parte das regulações mais avançadas e que buscam serem mais equilibradas com parâmetros de direitos humanos. Em vez de vigiar postagem por postagem, estaríamos olhando para sistemas e comportamentos, para como funcionam os fluxos de atenção, os incentivos internos, os circuitos de promoção e exclusão. E tudo isso pode — e deveria — estar cravado no texto da lei: a autoridade não regula o conteúdo que os cidadãos produzem, regula a estrutura montada pelas corporações que dali extrai riqueza.

É claro que hoje ela ainda é pequena se comparada a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Estamos falando de uma diferença de quase dez vezes em tamanho. Mas isso, ao invés de um problema, pode ser uma oportunidade. Diferente da sua prima mais velha — que teria que reciclar sua estrutura, reaprender o assunto, mudar sua cultura institucional — a autoridade de dados está justamente no momento de se construir. E isso importa. A regulação das plataformas digitais é um terreno novo, ainda em disputa.

Ter um órgão em formação, que pode nascer já com essa missão no horizonte, pode ser muito mais produtivo do que tentar adaptar uma máquina que já vem pronta para outro jogo. Assim, se for para apostar em algo agora, talvez o melhor caminho seja reforçar quem está crescendo na direção certa (inclusive considerado para encabeçar o próprio sistema de governança de inteligência artificial nas propostas que têm sido discutidas no Congresso), em vez de injetar energia onde o custo de adaptação será alto e o retorno, duvidoso.

Um exemplo prático é o debate iniciado pelo ANPD sobre o controle da idade de adolescentes que ingressam na plataforma do TikTok. Quando surgiram indícios de violações no tratamento de dados de crianças e adolescentes, foi essa autoridade que puxou o processo de fiscalização, preocupada com um ponto central (e mais consensual) na agenda digital – a proteção de crianças e adolescentes. É possível discordar de alguns pontos da atuação, mas ficou claro que ali existe um corpo técnico mais capacitado para lidar com a forma de atuação das plataformas, por exemplo.

Não se trata de dizer que esse órgão vai resolver tudo. Precisamos colocar a participação no centro em qualquer modelo a ser pensado. O Comitê Gestor da Internet tem uma expertise reconhecida globalmente. A Anatel ainda tem um papel a cumprir. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), os órgãos de defesa do consumidor e o próprio sistema de Justiça também. Mas se tivermos que escolher agora quem pode ocupar papéis importantes dessa nova arquitetura regulatória, a autoridade de proteção de dados parece ser uma aposta sensata.

E se vamos mesmo virar esse debate de ponta cabeça — discutindo primeiro quem regula — então precisamos fazer essa escolha com coragem e clareza.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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