Trecho de Livro: A Segunda Morte, de Roberto Taddei — Gama Revista

Trecho de livro

A Segunda Morte

Novo romance de Roberto Taddei aborda a finitude e o declínio masculino com protagonista que deixa tudo para trás após o primeiro tombo da velhice

Leonardo Neiva 14 de Abril de 2023

Um homem dirige na noite. Quase por acaso, decide seguir pela estrada do mar — apenas porque rejeita a solidão do campo, única outra alternativa à metrópole que tanto quer abandonar. Deixa para trás três filhos, três supostos desconhecidos que menciona de passagem, assim como o apartamento vazio e as contas fadadas a se acumular mês após mês sob o vão da porta de entrada. É com essa imagem marcante que o escritor paulistano Roberto Taddei inicia seu novo livro, “A Segunda Morte” (Companhia das Letras, 2023).

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Humanos Exemplares
Cuidar de quem está esquecendo

O dia em que minha mãe envelheceu

Um retrato tão lúcido quanto mágico sobre o fim, a obra aborda temas como o declínio físico, o luto e a crise da masculinidade. Terceiro romance do autor, que é também tradutor e jornalista, o livro narra a fuga de um homem de quase 80 anos de uma vida que considerava livre, na calmaria de seus poucos pertences e resquícios de uma família que havia muito tinha deixado para trás. Assim como em “Terminália” (Prumo, 2013) e “Existe e Está Aqui e Então Acaba” (e-galáxia, 2014), o protagonista segue em movimento, numa viagem em que o destino e o que fica para trás são pontos essenciais para tecer os fios da narrativa.

Coordenador da pós-graduação Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz e mestre em escrita criativa pela Universidade Columbia, Taddei escreve sobre o envelhecimento de forma enganadoramente simples. Em sua exploração do encontro derradeiro com a morte, o autor faz questão de retratar a precariedade da vida humana, seja no estado retraído das gengivas do protagonista ou nos testículos artificiais que o pai é obrigado a usar antes do fim. Mas também deixa nas entrelinhas o mistério dessa vida que vai se dissolvendo em algo mais, deixando marcas muito mais duradouras que a poça de sangue formada na primeira queda pela idade avançada.


Ele vê a mata escura da serra acender no retrovisor, rajada pelo vermelho das luzes quando pisa no freio, e outra vez o mundo atrás de si desaparece no breu. A janela aberta para a umidade da madrugada. A pista coberta de sereno. O balanço do carro agita as samambaias da encosta. Ele escuta as defensas do acostamento rebaterem o ruído dos pneus em intervalos ritmados que revelam a hesitação da descida: ora como fuga sinuosa, ora como predição paciente de possibilidades de um futuro. Um coágulo solto, é como ele sente que se desloca. Onde os caminhos se estreitarão o bastante até fazê-lo parar?

Fugir, ele não ignora, é um movimento ridículo, a negação da idade, como uma criança que tapa os olhos e imagina fazer o mundo sumir. Mas é um velho, para todos os efeitos. E, no entanto, aqui está ele, fugindo. Talvez tenha a ver com o desequilíbrio químico, que também diminui seu apetite sexual e retarda o metabolismo, influência das pílulas que o enganam a se sentir capaz de, mesmo a essa altura, deixar tudo novamente para trás.

Ele desce a serra em ponto morto. Seu olho esquerdo lacrimeja com o vento. Podia ter ido para o interior, um sítio perdido no meio do nada , ideia que ele logo rejeita — a solidão do campo como algo lento, vergonhoso , pequeno. Vai para o litoral, uma praia, uma vila de pescadores, onde esconderá seu carro num barranco coberto pela vegetação atlântica e encontrará abrigo numa pousada qualquer. É o que ele faz.

Dirigiu pelas ruas da metrópole na noite abafada de verão antes de se decidir pela estrada do mar. Viu jovens bêbados se arrastando nas calçadas junto aos viciados e catadores de lixo. Cruzou as avenidas grandes e vazias, os semáforos organizando a solidão numa malha de tempo. Viu o novo prédio, agora recoberto de vidros espelhados, do hospital onde o amigo com câncer agonizou por meses, a maternidade onde nasceram os três filhos, circulou as quadras onde ficavam as casas demolidas de sua infância e juventude, e que tinham sido transformadas em prédios com grades e câmeras de segurança, nas ruas onde namorou e jogou bola. Já não restam as casas geminadas em que saltava pelos telhados, nem os rios em que brincava, agora canalizados. Não tem mais a habilidade para escalar muros, nem para nadar.

Fugir, ele não ignora, é um movimento ridículo, a negação da idade, como uma criança que tapa os olhos e imagina fazer o mundo sumir. Mas é um velho, para todos os efeitos

Ele lembra do pai, na cama do hospital, que um dia o chamou e disse: “É difícil ser inteligente, porque a gente sabe quando está morrendo”; depois se levantou, carregando a bolsa de soro, a agulha presa com esparadrapos no braço, cansado, e caminhou lentamente sem saber que carregava um testículo de mentira, colocado ali em segredo tramado pela família para que não percebesse a mutilação. O pai se trancou no banheiro, de onde escapava o cheiro da fumaça de cigarro. Foi ele quem teve que ir à loja de próteses escolher o testículo para o pai, e se viu com uma réplica translúcida, meio firme meio macia, na mão, pensando com qual modelo seu pai não acusaria a emasculação após a cirurgia, quando apalpasse o saco. Será que perceberia a ausência do epidídimo? Apenas um ovo líquido desenhado para ser agradável ao toque e à vista, mesmo que fosse para esconder-se debaixo da pele enrugada e quente, um ovo líquido que devia agora restar ressecado na cova, ao lado dos ossos pesados do pai corpulento.

E anos depois, uma nova cirurgia. Na véspera, deitado ao seu lado no quarto do hospital, o pai explicou onde guardava o dinheiro, falou das contas bancárias, das senhas, tirou sua caneta-tinteiro dourada da pasta, um talão de cheques, “se precisar”, o pai disse, e assinou duas dezenas de folhas em branco. “Estou com medo”, disse, com a voz fraca. Teria sido o caso de ter respondido, “Como é difícil ser inteligente, pai”, mas ele não disse nada. No dia seguinte, já não haveria como fazê-lo. Ser ignorante talvez seja ainda mais difícil.

Como os rios que antes corriam abertos e sinuosos pela cidade, ele pegou a saída para o mar. Sentiu a primeira lufada de ar salgado ao cruzar a cadeia de montanhas e deixar o planalto para trás. E agora a visão da orla iluminada, ofuscada pelo céu que começa a alaranjar no início da manhã .

Ficará ainda duas ou três horas dirigindo. Quanto tempo até que deem por sua falta? Uma semana, um mês? Arrombariam a porta do apartamento para não encontrar bilhete algum, nenhum sinal de violência, nada revirado, apenas a geladeira funcionando, as caixas de suco, os ovos e a manteiga repousando no frio artificial do que pareceu por tantos anos uma vida livre: a casa arrumada, sem as tralhas e os problemas da família que ele havia muito tinha deixado para trás. Encontrariam apenas uma marca no tapete da sala, a mancha do primeiro tombo por conta da idade, o sangue oxidado que tingiu uma poça arredondada. Quanto tempo até desaparecerem todas as marcas, até não restar nada dele?

A mancha do primeiro tombo por conta da idade, o sangue oxidado que tingiu uma poça arredondada. Quanto tempo até desaparecerem todas as marcas, até não restar nada dele?

Alguém se daria ao trabalho de vasculhar os hospitais, necrotérios, distritos policiais? Dariam queixa de desaparecimento, sumiço do carro, possível roubo, latrocínio, sequestro? Mês após mês se acumulariam as contas por debaixo da porta de entrada. Os vizinhos preocupados com os débitos e a inadimplência do morador desaparecido.

Até que, tempos depois, três supostos desconhecidos apareceriam, se tudo desse certo, para reclamar uma herança inesperada. Uma história bizarra, diriam. Ou apenas uma história lamentável. Talvez virasse notícia. Que importa. Dele, ninguém mais saberia.

Produto

  • A Segunda Morte
  • Roberto Taddei
  • Companhia das Letras
  • 136 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação