Muito além de Dostoiévski: Sete livros russos para ler hoje
O jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo e a professora de literatura russa Elena Vassina selecionam obras de origem russa para fugir dos clássicos
A invasão russa à vizinha Ucrânia, que vem dominando os noticiários há mais de um mês, provocou uma onda de boicotes a produtos e à cultura russa, atingindo inclusive quem não tinha nada a ver com isso: a literatura. Mas, se é que é verdade que leitores mundo afora estão se desfazendo de seus enormes volumes de “Guerra e Paz” ou “Crime e Castigo”, parece que esse cancelamento literário ainda não chegou ao Brasil, país onde os clássicos russos são leituras das mais frequentes. Ao menos não na visão do jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo, que já verteu para o português de Tolstói a Dostoiévski.
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“O triste seria se parássemos de ler os russos, pois, com isso, pararíamos de ler a nós mesmos, de tão embebidos que estamos de sua literatura”, afirma Perpétuo, que é autor de “Como Ler os Russos” (Todavia, 2021), livro no qual explora a literatura russa de forma mais aprofundada. Mas, se por aqui estamos carecas de saber da literatura russa clássica, quando se fala na produção literária contemporânea ou em autores que fogem do cânone, a história muda de figura. “Há um grande interesse pela releitura dos clássicos russos, mas a literatura contemporânea russa, com raras exceções, não consegue concorrer com os grandes escritores da época de ouro”, afirma a professora de Letras Russas da Universidade de São Paulo, Elena Vassina.
Para a especialista, que é russa, boa parte do que tem sido escrito em seu país nas últimas décadas traz uma ênfase no relato documental e uma tentativa de entender a Rússia de uma perspectiva histórica, características essenciais para quem busca entender as origens do que vem acontecendo hoje por lá. Perpétuo, que vê escritoras mulheres como “a bola da vez” entre os russos, enfatiza que três autores vivos de língua russa vieram à Flip (Feira Literária Internacional de Paraty) na última década: Vladímir Sorókin, Liudmila Petruchévskaia e Svetlana Aleksiévitch. “Me parece um bom indício do interesse por aqui pela literatura russa contemporânea”, afirma o tradutor, para quem as últimas gerações de escritores não chegam a compartilhar muitas características estilísticas em comum. “Talvez possamos dizer que o fim da censura dos tempos soviéticos tenha libertado os escritores de amarras formais ou temáticas. Agora eles podem escrever o que querem, como querem.”
A seguir, os especialistas consultados por Gama fugiram um pouco dos clássicos para sugerir sete livros de escritores russos que vale a pena ler hoje, seja por sua relevância histórica, pelo tema de que tratam ou simplesmente para conhecer um novo autor.
“Meninas”, de Liudmila Ulítskaia (Editora 34, 2021)
Ambientados em Moscou na década de 1950, próximo da morte de Stálin, os contos que compõem “Meninas” têm como protagonistas garotas que vão dos nove aos onze anos. Sua juventude se confunde com as lembranças da própria autora, que viveu a infância e adolescência nesse mesmo período. Traduzido para o português por Perpétuo, esse é o primeiro livro da autora publicado no Brasil. Ainda que seja uma ilustre desconhecida para os leitores brasileiros, Ulítskaia é uma das principais escritoras russas em atividade, vem sendo cotada todos os anos para o prêmio Nobel e integra o que o jornalista e tradutor considera como uma forte tendência feminina dentro da literatura contemporânea do país.
“Tolstói, a Fuga do Paraíso”, de Pável Bassínski (LeYa, 2013)
Como na literatura russa é difícil não acabar voltando os olhos para os autores clássicos, Vassina recomenda o premiadíssimo “Tolstói: A Fuga do Paraíso”. Na escrita do biógrafo Bassínski, o livro investiga os últimos dias de vida do autor de “Guerra e Paz” e “Anna Karênina”. Aos 89 anos de idade, Tolstói pegou um trem apenas com sua filha e um criado. Sua intenção era fugir de casa para viver uma vida mais simples no campo. Porém, devido à saúde debilitada, acabou morrendo pouco depois. “A obra faz o leitor mergulhar no universo do gênio russo e entender sua complexidade e grandeza”, afirma a pesquisadora.
“Os Sonhos Teus Vão Acabar Contigo”, de Daniil Kharms (Kalinka, 2013)
Se o papo é sobre obras de escritores menos conhecidos da literatura russa, o trabalho da editora Kalinka pode ser considerado um grande destaque no cenário brasileiro, aponta Perpétuo. E, dentro de seu rico catálogo, uma das principais joias é este livro de Daniil Kharms (1905-1942), “um brilhante escritor satírico, vanguardista e absurdista da primeira metade do século 20, cuja produção só foi publicada na Rússia a partir da glasnost de Gorbatchov.” Por sua vez, “Os Sonhos Teus Vão Acabar Contigo” é uma coletânea que engloba sua produção infantil, pela qual ficou mais famoso na União Soviética, além de contos, peças de teatro, poesias e a conhecida novela “A Velha” — encenada no teatro no Brasil por ninguém menos que o ator Willem Dafoe e o bailarino Mikhail Baryshnikov.
“Era uma Vez uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha”, de Liudmila Petruchévskaia (Companhia das Letras, 2018)
Quem andou frequentando livrarias nos últimos anos não vai estranhar o título quilométrico nem a capa em vermelho vivo estampando um ameaçador gato preto. Autora best-seller e altamente premiada, Petruchévskaia chegou às estantes brasileiras com pompa neste bizarro livro de contos. Considerada uma das maiores escritoras russas vivas, aqui ela remete às tradições folclóricas de seu país para criar assombrações, pesadelos e acontecimentos macabros dotados de um humor bastante contemporâneo e com um fundinho político. Vista por Vassina como a mãe do pós-modernismo literário russo, na opinião da especialista a escritora “dialoga com vários arquétipos da literatura clássica russa”.
“Parque Cultural”, de Serguei Dovlátov (Kalinka, 2016)
Citado por ambos os especialistas, Dovlátov (1941-1990) foi um escritor satírico russo que só conseguiu publicar depois de emigrar para os EUA. O que é compreensível, já que, segundo Perpétuo, “seus livros hilariantes são sátiras demolidoras e dilacerantes do modo de vida na URSS”. Dentre sua obra ainda pouco publicada no Brasil, Vassina destaca “Parque Cultural”. A novela se passa num parque-museu fictício, dedicado à memória do clássico escritor russo Aleksándr Púchkin (1799-1837). Ali, o narrador, alter ego do escritor, desconstrói a aura soviética que se formou em torno de Púchkin, desfiando de forma mordaz questões sociais importantes da era Brejnev, nos anos 1970, como o alcoolismo, a censura, o antissemitismo e a emigração. “Uma desconstrução dos mitos soviéticos”, declara Vassina.
“O Fim do Homem Soviético”, de Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2016)
Hoje, a vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch já é bem conhecida dos leitores brasileiros, com várias de suas obras publicadas com sucesso por aqui a partir da última década. “Sua literatura documental aborda temas candentes dos tempos soviéticos e pós-soviéticos”, afirma Perpétuo, que indica “O Fim do Homem Soviético” como uma das obras mais atuais da escritora. “Este livro equivale a conversar com os russos de hoje, reflete suas preocupações, traumas e problemas.” O livro, no inconfundível estilo da autora, reúne depoimentos de pessoas afetadas pelo fim da URSS, desde uma mãe cuja filha morreu em um atentado até um velho militante que passou dez anos num campo de trabalhos forçados. Em meio à obra da escritora, Vassina recomenda também “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, “As Últimas Testemunhas” e “Meninos de Zinco”, todos publicados pela Companhia das Letras.
“O Amor de Mítia”, de Ivan Búnin (Editora 34, 2016)
Apesar de o autor vencedor do Nobel ter escrito suas principais obras lá no início do século 20, seus livros acabaram sendo redescobertos pelo público ocidental só bem mais tarde. Publicado originalmente em 1925, “O Amor de Mítia” explora a potência do amor e do desejo, sentimentos recém-descobertos pelo jovem protagonista. No romance, “o ser humano, pequeno e frágil, sai do centro do universo para figurar como uma partícula perdida na imensidão da natureza, na eternidade do cosmos”, considera Vassina. Apesar de pouco conhecido pelos leitores do Ocidente, Búnin (1870-1953) era admirado por seus pares, o que inclui alguns grandes nomes da literatura, de Thomas Mann a Nabokov.
BÔNUS – Zuleikha, Guzel Yakhina (não publicado no Brasil)
Apesar de ainda não ter uma tradução para o português, Vassina considera a obra da escritora e roteirista russa um dos mais importantes romances produzidos no país nos últimos anos. Um trabalho de ficção histórica, o livro descreve a luta de uma série de personagens que tentam sobreviver durante o exílio na Sibéria, entre os anos de 1930 e 1946. A obra se baseia em histórias contadas à autora pela avó e também nas memórias de várias outras pessoas que viveram alguns desses acontecimentos na pele. Para quem quiser se arriscar, há uma tradução em inglês disponível.
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