Coluna do Fernando Luna: "A queda do céu" — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

A queda do céu

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o genocídio yanomami, o narcosocialismo no Zap, a excursão da Tia Augusta pro xilindró e teoria do caos à brasileira  

23 de Janeiro de 2023

Enquanto os xamãs ainda estiverem vivos, eles poderão evitar a queda do céu

Davi Kopenawa, 1990

Até quem vive à sombra da estátua do Borba Gato se chocou com os yanomamis definhando.

Há milhares de anos no interior da floresta amazônica, eles estiveram protegidos por séculos a mais que os povos originários da costa brasileira – esses, desde 1500 atropelados pelas caravelas e tudo que veio junto.

Proteção, ali, era sinônimo de isolamento.

A barreira formada por montanhas, rios e centenas de quilômetros de selva tropical só começou a ser quebrada nos anos 1940, com as expedições do governo brasileiro pra demarcar a fronteira com a Venezuela.

Era o começo do fim.

Aberta a picada, logo se seguiram agentes do então Serviço de Proteção aos Índios e um punhado de missionários. Uns e outros, a pior ameaça aos indígenas: além de facões, espelhinhos e bíblias, levaram gripe e sarampo.

Com a ditadura militar e seu lema fúnebre-nacionalista, “Integrar para não entregar”, ocupar a Amazônia virou plano de governo. A rodovia Perimetral Norte rasgou a região do rio Catrimani, dizimando os yanomamis.

Os sobreviventes ainda encararam a corrida do ouro, que levou milhares de garimpeiros pra lá nos anos 1980. Na bagagem, violência, destruição e “xawara” – as epidemias deflagradas pela exploração do metal.

Em “A Queda do Céu”, livro fundamental onde o antropólogo Bruce Albert traduz a prosa poética do xamã Davi Kopenawa, há um diálogo emblemático entre um general, sempre um general, e o líder yanomami.

– O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?

– Não. O que desejo obter é a demarcação de nosso território.

Uma invertida merecida em quem queria ensinar os donos da terra a cultivar a própria terra. Pois a Terra Indígena Yanomami seria enfim oficializada em 1992, provando que até Fernando Collor fez algo de bom.

Infelizmente, não se pode dizer o mesmo de Jair Bolsonaro.

Com o esvaziamento da Funai sob Sergio Moro e o achincalhe dos direitos humanos por Damares Alves, seus 4 anos de governo valeram por décadas de devastação, fome, mercúrio, violência e morte. É assim que o céu desaba.

Fatos são palavras ditas pelo mundo

Orides Fontela, 1996

“Argentina, 1985” ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro – como se não bastasse a Copa do Mundo.

É daqueles longas baseados em fatos reais: o julgamento da cúpula militar responsável pelo desaparecimento de 30 mil hermanos durante a ditadura vizinha.

Aguardo ansiosamente a refilmagem nacional, “Brasil, 2023”.

Ou, pra não ser tão sonhador nestas bandas negacionistas, queria ao menos protagonizar uma versão caseira de um dos melhores diálogos do filme.

O telefone toca e o promotor adjunto atende sua mãe, uma senhora conservadora, orgulhosa de frequentar a mesma missa de domingo que o infame general Jorge Videla.

Ela, porém, tinha acabado de escutar no rádio o testemunho de Adriana Calvo, sequestrada pelos meganhas aos seis meses de gravidez, obrigada a parir algemada numa viatura e a limpar em seguida, nua, os restos de sangue e placenta.

– Ela disse a verdade?

– Claro.

– Como alguém pode ser tão cruel? Sei que eu disse coisas ruins e discutimos muito… Pensava assim por causa da minha educação, da minha religião, dos meus conhecidos… Sempre respeitei o Exército, mas agora acho que você tem razão.

Quem me dera. Por aqui, a notificação do Zap apita e lá vem mensagem de uma outra senhora conservadora, embora mais assídua em rodas de samba que bancos de igreja.

– O narcosocialismo dominou o Brasil!

Argumento que nem seria ruim se isso acontecesse, quem sabe o país melhoraria com substâncias psicoativas na Cesta Básica?

– Houve fraude nas eleições, esconderam o código-fonte!

Encaminho comunicados oficiais mostrando que não apenas o código foi disponibilizado, como as Forças Armadas deram um confere.

– Infiltrados do PT quebraram tudo em Brasília!

Desisto. Só me resta o poema-apropriação de Orides Fontela, citando ipsis litteris um trecho de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector: “Fatos são palavras ditas pelo mundo”.

Donde se conclui que fatos não são sandices espalhadas pelo Telegram, fatos não são teorias conspiratórias apresentadas na Jovem Pan. Enfim, chega de política no grupo da família, vamos falar de poesia.

É preciso não esquecer nada

Cecília Meireles, 1962

Um terrorista é terrorista mesmo se não tiver consciência disso? Sim. Nesse caso, é terrorista e idiota.

Não tenho certeza se isso deve ser considerado um agravante ou um atenuante.

*

E não adianta prender 1500 bolsonaristas, mas deixar sem julgamento o único bolsonarista que realmente importa – aquele que há 4 anos insufla o golpe.

*

Depois de tudo, os vândalos ainda eram tratados a pão de ló.

O comboio levando a turma do acampamento de Brasília pro xilindró lembrava uma excursão da Tia Augusta – cantoria no busão, bandeiras tremulando nas janelas e celulares registrando o passeio.

*

Sugestão pra próxima licitação de equipamentos policiais: 480 mil HD externos, pra armazenar selfies sorridentes ao lado de radicais da extrema-direita.

Não há nuvem que dê conta de tanto terabyte.

*

Quando tudo começou? Anistia.

A anistia não resolve o conflito, apenas varre pra baixo do tapete. Chega uma hora em que não dá mais pra esconder o entulho autoritário – que então invade o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF.

Responsabilização não é revanchismo. Sem anistia.

*

Anistia vem da palavra grega “amnestía”, que significa esquecimento.

Atualizando o Ivan Lessa: de 15 em 15 minutos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 minutos.

Vou amarrar um barbante no dedo do país, pra lembrar do verso de Cecília Meireles – “É preciso não esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso”.

*

Os idealizadores e financiadores do Bolsa Golpismo?

Tem de tudo: políticos, empresários, influenciadores, generais, policiais e pastores. O melhor jeito de identificar esse pessoal é ir atrás de quem se apressou em dizer não tem nada a ver com isso.

*

Supremo é o povo?

Bem, o povo deu mais de 60 milhões de votos pro Lula, numa eleição livre, justa, fiscalizada e auditada até pelos milicos – além de dezenas de outras instituições mais competentes.

Quatro mil boçais, quase todos homens brancos de meia-idade, parecem muita gente na tevê, mas não são exatamente o povo. São apenas 0,001 dele.

*

Patriotismo é o último refúgio do golpista.

Um galo sozinho não tece a manhã

João Cabral de Melo Neto, 1966

Depois de quatro anos de blecaute civilizatório, o céu começa a azular.

Tenho pra mim que essa virada de tempo começou quando a primeira pessoa levantou do sofá, abriu a janela e gritou: “Fora, Bolsonaro”.

Deve ter sido num daqueles dias mais assustadores da pandemia, com ruas vazias e cabeça cheia. De repente, um berro quebrou o silêncio. Era quase nada, realmente. O que é uma imprecação diante de uma cidade com milhões de bocas caladas, de uma terra em transe?

Bem, é um começo.

Quem segue a cartilha de João Cabral de Melo Neto, “A Educação pela Pedra”, sabe que, assim como um galo, um grito sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros gritos. De um que apanhe esse grito e o lance a outro – exatamente como aconteceu.

A queixa chegava enfraquecida, após atravessar quarteirões desviando de prédios, casas e lojas fechadas. Mas o volume subia quando um vizinho mais próximo enchia o peito de ar pra dar novo fôlego ao grito, repetindo com a garganta cheia de esperança e raiva: “Fora, Bolsonaro”.

E, quando eu dava por mim, tinha deixado de lado a louça, o livro ou o laptop pra me juntar ao vozerio e fazer a reivindicação avançar um pouco mais: “Fora, Bolsonaro”.

Teoria do caos à brasileira: um sopro lança duas palavrinhas ao vento e acaba provocando um furacão em Brasília.

O grito passou de boca a boca, de bairro a bairro, de cidade a cidade. Depois de quatro anos, “Fora, Bolsonaro” não é mais um desejo – é um fato, apesar de os cada vez mais perigosos doidos de quartel insistirem em negar as aparências e disfarçar as evidências.

Foi por pouco, por muito pouco, menos de 2 pontos de diferença. Nunca estivemos tão perto do fundo do fundo do fundo do poço. Recomeçar vai ser um desafio enorme. Por outro lado, 60 milhões de votos, 60 milhões de gritos, são um recorde eleitoral. Cada voto, um berro contra a barbárie.

“Fora, Bolsonaro” já disse a que veio. Agora é “Dentro, Bolsonaro” – dentro de uma cela, sem imunidade, anistia ou revanchismo, devidamente julgado pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Feliz Brasil novo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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