COLUNA

Fernando Luna

A era do centauro

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre poesia numa hora dessas, o papa vivo, o jeitinho brasileiro à beira-mar e o papa morto

19 de Maio de 2025

Vamos viver a era do centauro/ metade cavalo metade também

Francisco Alvim, 1978
Antologia Profética

Poesia numa hora dessas?! E Ucrânia, Gaza, escândalo do INSS e o baby boom de bebês reborn?

Justamente por isso precisamos de poesia. Não por acaso, a poesia vive metida em confusão desde sempre: a “Ilíada”, afinal, é sobre um piti de Aquiles em plena guerra de Troia.

Se em vez da era de Aquário “vamos viver a era do centauro/ metade cavalo metade também”, como advertiu Francisco Alvim em “Meu Filho”, prefiro ficar com a poesia do que sem palavras.

Nesse final de semana, poesia parecia best-seller.

Teve “Poesia no Centro”, um Lollapalavra que levou ao coração de São Paulo centenas de poetas e leitores de poesia – o próprio Chico Alvim tava lá e brincou dizendo que existem mais poetas que leitores de poesia.

No palco, conversas e performances sobre amor, morte, sexo, liberdade, angústia, memória, desejo, solidão, esperança, tempo, sonho, medo, prazer, dor, alegria, alegria e todas as pedras no meio do caminho desta vida.

(Poesia trata de tudo isso. E também do que a gente sente e não consegue explicar – até que um poeta escreve e você se entende.)

No “Megafone”, espaço anexo do festival, Bruna Beber botou mais de 60 autores pra dizer seus versos em público: meio ágora grega, meio botequim, verbo servido sem cerimônia entre caprichos e relaxos da linguagem.

Enquanto isso, Gregório Duvivier lotava o teatro com “O Céu da Língua”, um fuzuê semântico. Mistura fina dos decassílabos de Camões e Orestes Barbosa, mashup de “As armas e os barões assinalados”, “Tu pisavas os astros, distraída” etcétera e tal.

Num jardim de Pinheiros, ainda estreou o novo experimento de Eduardo Beu. Depois de seus “Trovadores do Miocárdio”, há anos reunindo poetas, músicos e poetas-músicos, “Aural” trouxe Fausto Fawcett e grande elenco pra dois dedos de prosa sobre poesia.

E tá logo ali a Flip em homenagem a Paulo Leminski. Se continuar assim, distraídos venceremos.

Errar é humano, perdoar é divino

Alexander Pope, 1711

As últimas três eleições no Vaticano parecem o ranking do Enem carioca, com destaque pros tradicionais Santo Agostinho, Santo Inácio e São Bento.

Leão XIV é agostiniano, Francisco era membro da Companhia de Jesus fundada por Santo Inácio, Bento XVI escolheu o nome em homenagem ao xará milagreiro. Em breve: papa Eleva ou papa Avenues.

*

Aliás, se Robert Francis Prevost quer mesmo seguir o pontificado de Francisco, podia ter escolhido um nome que indicasse sua conexão com o argentino. Minha sugestão seria Lourenço I.

Não que Leão XIV seja ruim. A homenagem ao Leão anterior, defensor dos desgraçados pela Revolução Industrial, anuncia um pontificado ao lado daqueles que a Revolução Digital vai deixando pra trás.

Ninguém discute a prioridade dos desvalidos.

Penso mais numa referência ao estilo bem-humorado que marcou a atuação e ampliou o rebanho de Jorge Bergoglio. São Lourenço também tinha humor.

Foi um mártir que perdeu a vida, mas não perdeu a piada. Colocado numa grelha pra morrer tostado, teria dito a seu carrasco romano: “Pode me virar, já tô bem assado deste lado”.

*

No humor e no conclave, timing é tudo.

Se a eleição tivesse acontecido apenas um ano e meio atrás, o bispo Bob não poderia sequer votar, quando mais ser escolhido Sumo Pontífice. Seria barrado na porta da Capela Sistina pela Guarda Suíça.

Ele só virou cardeal no final de 2023. Mas, como escreveram Mateus, Marcos e Lucas, os últimos serão os primeiros.

*

O católico inglês Alexander Pope tinha sobrenome papal e pena proverbial: o verso “Errar é humano, perdoar é divino” tá no poema “Ensaio sobre a Crítica”.

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E Donald Trump teve que engolir um papa estadunidense que é neto de imigrantes e se tornou ele mesmo um imigrante no Peru – sem falar na carraspana que, ainda cardeal, passou no JD Vance, vice-presidente e dublê de teólogo da QAnon.

O Inferno são os outros/ mas o Céu também

Adília Lopes, 2007

A única instituição que funciona normalmente no Brasil é o “Pode dar uma olhadinha nas minhas coisas enquanto dou um mergulho?”.

Essa prova da retidão do caráter nacional é exibida sempre que dá praia no Rio de Janeiro, como deu no feriadão. Um sujeito esturricado pelo sol decide dar um tchibum e, sem pestanejar, deixa até 14 mil reais nas mãos sujas de areia de um completo desconhecido.

Os até 14 mil reais, claro, estão em formato de telefone celular.

(Isso numa avaliação conservadora, que leva em consideração apenas os átomos do aparelho de última geração, com tela, capacidade de processamento e preço gigantescos. Se também incluir nessa conta os bits, ou seja, as informações armazenadas nele, das figurinhas que valem por mil palavras do Zap aos vídeos gravados no show da Lady Gaga, o valor é incalculável.)

O carioca, porém, nem titubeia em deixar essa pequena fortuna pra trás.

Não se trata de desapego ou ingenuidade. Ele sabe que na volta vai encontrar tudo do jeito que deixou – não importa se foi só molhar os pés ou se ficou 50 minutos pegando jacaré. Seu vigilante praiano estará lá, zelando pelos pertences alheios até diante de um arrastão.

Esse gesto de solidariedade talvez seja o último bastião da fé na humanidade. Esse cara suando na canga ao lado, um olho no horizonte, outro nas suas coisas, é um zagueiro desarmando o ataque de cinismo do mundo moderno. Uma reserva de esperança à beira-mar.

Só o complexo de vira-lata não deixa ver que jeitinho brasileiro é isso aí.

Somos um país sério, afinal, a despeito do novo escândalo do INSS – e de todas as mutretas desde que Pero Vaz de Caminha inaugurou o tráfico de influência por aqui, pedindo favor pro genro ao rei de Portugal na carta do descobrimento.

Deixo aqui o poema da portuguesa Adília Lopes, como uma homenagem ao celestial Banhista Anônimo: “O Inferno são os outros/ mas o Céu também”.

Uma morte bonita honra a vida inteira

Francesco Petrarca, 1370

Papa morto vende jornal, papa vivo não.

Essa é uma máxima repetida nas redações desde o tempo em que, efetivamente, era possível vender jornal. O transeunte diminuia o passo diante de uma banca qualquer e, fisgado pela manchete, decidia sujar os dedos e levar um exemplar. Atualmente tá difícil vender jornal.

Papa vivo não vende jornal, papa morto também não. Quando muito, rende uns cliques extras na homepage.

*

Pareciam dois garotos que, depois de brigar no recreio, são obrigados pelo bedel da escola a fazer as pazes.

Donald Trump e Volodimir Zelenski sentaram frente a frente em cadeirinhas ordinárias de metal, a despeito da forração exuberante em vermelho papal, como se trocassem ideia num boteco da Basílica de São Pedro.

O primeiro milagre de Jorge Bergoglio, uma ação oportunista de relações públicas ou as duas coisas?

*

Sem pompa nem circunstância, a freira francesa Geneviève Jeanningros driblou o protocolo, a Guarda Suíça e o camerlengo pra furar a fila de cardeais e se despedir do amigo.

Com hábito preto e mochila no ombro, parecia a única pessoa ali chorando a morte de uma pessoa, não do papa. A grande beleza da simplicidade em meio ao espetáculo da liturgia.

“Uma morte bonita honra a vida inteira”, escreveu em seu “Cancioneiro” o poeta Francesco Petrarca, ele mesmo amigo dos papas de sua época. A irmã Geneviève deu sua contribuição pra honrar Francisco.

*

Papa morto rende cliques na homepage, papa morto que explode rende ainda mais cliques na homepage.

Não sei quem resgatou primeiro a notícia de que, submetido a um embalsamador desastrado, o corpo do papa Pio XII literalmente explodiu durante seu funeral. Pior, no primeiro dos nove dias de funeral.

Os papas seguintes deram mais sorte na despedida. Especialmente Bento XVI, que sequer precisou morrer pra se aposentar.

*

Agora quem vai telefonar pra paróquia de Gaza todas as noites, às 19 horas?

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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