O mundo gira porque não sabe dançar — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

O mundo gira porque não sabe dançar

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre um pas de deux planetário, um Nero às avessas, um Borba Gato em chamas e o álibi perfeito pra infelicidade

09 de Agosto de 2021

“O mundo gira porque não sabe dançar”

Charles Peixoto, 1985
Antologia Profética

Tenho uma notícia ruim e outra péssima.

A ruim: a última década foi a mais quente em 125 mil anos. A péssima é que vamos sentir saudade dela.

Pra quem não se impressionou com a onda de calor cozinhando mariscos vivos numa praia do Canadá – e eu me perturbo quando um gaiato frita um ovo no asfalto durante o verão carioca –, o Painel Intergovernamental de Mudança Climática divulgou seu novo relatório.

É uma edição revista e ampliada do livro do Apocalipse.

Reúne dados de 40 mil pesquisas, desenvolvidas por centenas de cientistas de todos os cantos do mundo. Graças a novos modelos computacionais, projeta cenários com uma precisão inédita. E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico – mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.

Sim, vai continuar esquentando.

Mesmo que a Greta Thunberg vire presidente dos Estados Unidos e o Chico Mendes reencarne como Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, dando um jeito nos dois principais poluidores do planeta, o estrago tá feito. A temperatura subiu 1,1 grau Celsius desde a revolução industrial, e deve subir mais 0,4 nos próximos vinte anos.

Sim, a culpa é nossa.

O clima da Terra sempre mudou naturalmente, por conta da atividade solar e das erupções vulcânicas. Foram 4,5 bilhões de anos nesse esquema, até que uma espécie de primatas decidiu queimar fósseis, acelerando brutalmente a velocidade e a extensão da mudança climática. Daí pra sexta extinção em massa foi rápido. Parabéns aos envolvidos.

Sim, dá tempo de fazer alguma coisa.

Mas precisa ser agora, porque nada é tão ruim que não possa piorar – inclusive ondas de calor, frentes frias, secas, inundações, furacões, incêndios, degelo das calotas polares, elevação dos oceanos e a zaga do Flamengo.

A emissão de gases do efeito estufa faz o mundo girar, só que o rodopio virou um ralo. Melhor engatar um pas de deux com o planeta, como sugere o poema de Charles Peixoto: petróleo pra lá, Green New Deal pra cá.

(Enquanto isso, o Brasil debate a volta do voto impresso.)

“A minha história é outra e começa agora/ Estou sempre a começar”

Adília Lopes, 2006

Sempre que tento acender uma fogueira ou uma lareira, fico espantado: como, diabos, algo pega fogo por acidente?

Digo isso porque essas coisas, fogueira e lareira, foram cuidadosamente projetadas com o propósito específico de entrar em combustão quase que espontânea – mas nunca queimam quando a gente quer que queimem.

Faço meu melhor.

Arrumo tudo com esmero. Distribuo os pedaços de madeira de um modo que me parece infalível, sabedoria ancestral mesmo, o único arranjo comprovadamente capaz de evocar e estimular o elemento fogo desde o paleolítico: ajeito a lenha naquele formato do símbolo de hashtag.

Desconfiado, enfio por baixo algumas folhas de jornal velho. Precavido, distribuo em pontos estratégicos dois ou três daqueles acendedores em formato de tabletes cor-de-rosa. Cético, encharco todo esse material supostamente inflamável com uma piscina olímpica de álcool 70%.

Tomo uma distância segura e lanço o fósforo aceso, como quem arremessa um coquetel Molotov. Aguardo a explosão azulada, em vão. O fósforo, claro, apagou no ar e pousou inofensivo. Esconjuro Prometeu pelo presente de grego. Tento outro fósforo, e outro, e outro, e outro, e outro, até que a chama alcance seu destino.

Finalmente.

Burn, baby, burn? Nada. O álcool já tinha evaporado. Assisto, humilhado como um Nero às avessas, atônito como um piromaníaco incapaz de brincar com fogo, o palito queimar breve e solitariamente. Desisto.

Então, diabos de novo, como é possível uma sede da Cinemateca Brasileira ser consumida por um incêndio? Como é possível que isso ocorra, atenção, na mesmíssima semana em que o Museu da Língua Portuguesa reabre, após também ser lambido pelas chamas – assim como o Museu Nacional e o acervo de Hélio Oiticica?

Não tem coincidência, acidente nem infortúnio: Brasil é brasa. Sempre foi, hoje mais que nunca. E vamos nós, sempre a recomeçar. Ou melhor, como escreveu a portuguesa Adília Lopes em “A Árvore Cortada”, e vamos nós sempre a começar – partindo do zero, sem história, sem memória, sem identidade. É o que perdemos, é o que temos.

“Uma coisa é um país, outra um fingimento. Uma coisa é um país, outra um monumento”

Affonso Romano de Sant’Anna, 1980

A estátua do Borba Gato é uma mistura de Playmobil gigante com Chucky, o brinquedo assassino de índios e negros.

Desde 1963, ela encara do alto de seu pedestal a avenida Santo Amaro – francamente, um dos lugares mais inóspitos de São Paulo, talvez do Brasil, quiçá do continente. Uma via dolorosa onde batem de frente o pior do urbanismo e da arquitetura.

Essa terra devastada esquentou com os ativistas da Revolução Periférica. O movimento levou ao pé da letra a expressão “fogo nos racistas” e carbonizou o bandeirante – que passa bem, apesar de um tanto chamuscado.

(Seu rosto de pedra ficou escurecido pela fumaça dos pneus queimados: o avesso do avesso da performance política de Ailton Krenak, pintando a cara com tinta preta de jenipapo, símbolo do luto em sua etnia, enquanto discursava pelos direitos indígenas na Assembleia Nacional Constituinte.)

Borba Gato teve mais sorte que seus coleguinhas genocidas.

O traficante de escravos Edward Colston acabou no fundo do rio Avon, na Inglaterra. Resgatado, tá num museu em Bristol, exibido na horizontal ao rés do chão e devidamente contextualizado.

Já o General Lee foi escorraçado com cavalo e tudo da praça em Charlottesville, nos Estados Unidos, apesar da resistência dos supremacistas brancos – seu destino final ainda vai ser definido.

Faz tempo que o Borba Gato devia ter saído dali.

Não se trata de ignorar a história. Ao contrário. Entender que o mundo mudou e mudar junto com o mundo é fazer girar a roda da história. Uma estátua não é simplesmente um registro de época, é uma homenagem a um indivíduo e a celebração de seus feitos.

Affonso Romano de Sant’Anna publicou o poema “Que País É Esse?” na primeira página do Jornal do Brasil, no final da ditadura militar. Uma maneira de responder ao poeta é conferir quem o país festeja em seus monumentos e espaços públicos.

Hum, nem adianta fugir da pergunta: pra sair de São Paulo, vai acabar pegando a rodovia dos Bandeirantes. Ou a Fernão Dias. Ou a Raposo Tavares. Ou a Anhanguera. Sem falar na rodovia Presidente Castelo Branco.

Que desculpa vou agora dar para não ser feliz?

José Miguel Silva, 2011

Eu sei, eu sei. Ainda estamos longe do final da pandemia.

Todavia mas porém, com a vacinação avançando mesmo aos soluços por conta da falta de insumos, tudo indica que estamos mais perto do fim desse pesadelo virótico que do princípio.

Eu sei, eu sei. Nesse ritmo, apenas em dezembro o Brasil chega a 70% da população imunizada, número mágico pra derrubar de vez a transmissão do vírus e tornar realmente seguro circular por aí.

Entretanto contudo não obstante, algo aconteceu no último final de semana. Mesmo com a variante Delta à solta e mais de 1000 mortos por dia ampliando
nosso luto, parecia um fim de semana normal.

A fila da distopia andou?

Olha a padaria aqui perto de casa. Nesse sábado, passei lá crente que poderia escolher uma das mesas da varanda, vazias como me acostumei desde sua reabertura. O sonho acabou. Dei de cara com uma fila de espera.

Emendei uma visita ao Jardim Botânico. Fila, fila, fila e fila: no estacionamento, na entrada do parque, na lanchonete e diante de uma estufa incrivelmente fotogênica, pra fazer uma selfie – a estufa saiu ótima na foto, não tive a mesma sorte.

Mais tarde, tentei um restaurante arejado. Outra fila. Quanto tempo, mais ou menos? “Duas horas e meia”. Duas horas e meia não é estimativa de espera, é uma maneira polida de dizer “lotado, geral esperando, vaza daqui”. Vazei.

À noite, festa de swing. Mentira, ainda nem tomei a segunda dose. Mas li que a polícia carioca interditou uma balada liberal e multou a casa por cigarro em ambiente fechado – prova definitiva de que ali não se usava máscara.

A vida lentamente volta aos eixos, ou seja, ao absurdo de sempre.

E, assim, perdemos o álibi perfeito pros nossos desacertos existenciais. Se antes qualquer problema pessoal e instransferível podia ser debitado na conta da pandemia, agora temos que assumir novamente os perrengues.

Ou não.

Felizmente, “Desculpas Não Faltam” – como lembra o título do poema do português José Miguel Silva. Espero dar logo um jeito de terceirizar mais uma vez minhas responsabilidades, pra voltar a sorrir sem culpa.


Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia Profética”, com versos desgraçadamente atuais.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação