Observatório da Branquitude
O cinismo de Lula diante da supremacia branca
O presidente tinha a faca e o queijo na mão para fazer história, mas optou pela manteiga sem sal do Zanin e do Dino, reforçando uma estrutura branca
Essa coluna já teve uma regra interna que eu particularmente adorava. Era obrigatório citar uma música que ilustrasse as ideias aqui formuladas. Isso tinha um propósito de trazer mais poesia e ritmo para temas duros que muitas vezes tratamos por aqui, afinal de contas se falamos de branquitude todo mês nesse espaço, tratamos de racismo e de estratégias de manutenção de espaços desiguais.
Essa introdução visa relembrar as minhas colegas de coluna desse compromisso, mas também para o meu caro leitor não se assustar por eu citar aqui de forma aleatória o grupo oitentista Renato e Seus Blue Caps. A música “Faça o que digo mas não faça o que eu faço”, que minha mãe adorava ouvir quando eu ainda era criança, ficou martelando na minha cabeça enquanto estava inspirado por uma recente fala do presidente Lula. Abro aspas para o presidente: “Esses dias fui na posse de um ministro num tribunal, era uma supremacia branca que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Não tem a ver com a realidade brasileira. Não tem nada a ver”.
Para nós do Observatório da Branquitude, que estamos diuturnamente falando sobre como a sociedade brasileira reserva aspectos e características que visam o supremacismo branco, essa fala do Lula poderia ser um deleite, finalmente o presidente nos ouviu. Entretanto, nossa memória recente nos faz mais estranhar essa constatação do que celebrá-la. Para nós causou mais revolta do que fogos.
Não é novidade para ninguém que o judiciário brasileiro reserva em suas cadeiras uma estrutura monocromática, monocular e única de mundo. É essa a principal engrenagem que mói e massacra a população negra desse país. O movimento negro denuncia isso há muitas décadas, produz pesquisas, produz diagnósticos, aplica formações, pensa projetos e faz camapanhas no sentido de democratizar o sistema de justiça. A última delas foi o apelo por uma ministra negra no Supremo Tribunal Federal – STF, capitaneada pela Coalizão Negra por Direitos (rede da qual o Observatório da Branquitude é parte).
Ao surpreender-se com a supremacia branca nas instituições, Lula abraça um cinismo que ignora o papel desse judiciário pálido no genocídio da população negra
Lula teve duas indicações para o STF já no seu primeiro ano de mandato. O presidente tinha a faca e o queijo na mão para fazer história, mas optou pela manteiga sem sal do Zanin e do Dino, reforçando essa estrutura branca — que ele mesmo constatou que não reflete a população brasileira somente agora. Renato e seus Blue Caps já apontavam, faça o que eu digo mas não faça o que eu faço, até porque para o judiciário não ter essa cara supremacista Lula não faz nada.
Organizações como o Instituto de Defesa da População Negra – IDPN, o Afrogabinete de Articulação Insitucional e Jurídica- AGANJU e tantas outras do movimento negro buscam mudar essa cara do judiciário. Em uma esperança até injustificada, achamos que pode ter uma característica garantista de nossos direitos.
Ao surpreender-se com a supremacia branca nessas instituições Lula abraça um cinismo que ignora o papel desse judiciário pálido naquele que é o grande calcanhar de Aquiles de seus três governos, o genocídio da população negra que ele parece fingir não existir convenientemente.
Por fim, sugiro a leitura do boletim que lançamos em julho, chamado “Supremacia Branca; a branquitude organizada” em que entre outras coisas, afirmamos que “a supremacia branca se apoia na degradação dos corpos negros e na utilização do medo como uma estratégia de coerção”. É isso que queremos combater e esse é o chamado que fazemos ao presidente e que ele, por ora, parece ignorar.
O movimento negro está cansado de falas esvaziadas de significados práticos. Que o governo se atente com quem o elegeu e dê a real importância ao que as organizações têm trazido com generosidade esperançosa, mas não eterna. Voltando ao Renato e Seus Blue Caps, “Depois não diga que eu não lhe avisei, que eu não lhe avisei”.
Thales Vieira é antropólogo (UFF) e cientista social (PUC-Rio). Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio, é fundador e co-diretor do Observatório da Branquitude. Atuou no poder público, em organismos internacionais como o BID, ONU-Habitat e em fundações como o Instituto Unibanco e o Instituto Ibirapitanga. É especialista nos estudos críticos de branquitude e em relações raciais.
Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
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