Coluna da Fabiana Moraes: Eu me vingo me amando — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Eu me vingo me amando

As periferias, o samba e os maracatus nos ensinam que a coletividade e a beleza são formas de resistir à morte

25 de Setembro de 2024

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

 Arquivo pessoal

Eu li pela primeira vez esse trecho de “As Cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino, há pouco mais de uma década. Os patriotas brasileiros que batem continência para os EUA começavam a aparecer nas ruas. Lá e cá, via-se uma ou outra triste figura pedindo intervenção militar. Meu casamento já estropiado estava indo para o ralo. Nas rádios e nas festas, ironicamente, Pharrell Williams cantava “Happy“.

Eu tinhaum PDF de “As Cidades Invisíveis” no computador e estava na estrada fazendo uma reportagem sobre pessoas desaparecidas. Lia o livro quando finalmente ia descansar em alguma pousada, antes de dormir. Quando cheguei na segunda maneira que Calvino sugere para não sofrermos, parei. Li e reli.

Reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Nos anos seguintes, fomos nos ferrando mais: extrema-direita, arminha, coronavírus, Malafaia, a pandemia da gargantilha choker estilo tatuagem.

Provavelmente como resposta, esse trechinho do famoso livro do escritor (filho de italianos, criado na Itália, mas nascido em Cuba) bombou nas redes. Calvino emergia como uma espécie de band-aid pop-literário, à moda de Clarice Lispector e Renato Russo. Tá tudo bem: na hora do aperto, cada um escolhe seus salmos.

Chegamos a 2024 e agora, mais do que nunca, nós dançamos com o fogo. É noite de sexta-feira e estou, com mais duas amigas, na casa do companheiro que amo (sim, meu coração teve mais sorte que o Brasil). Uma delas está há algum tempo tomando remédios contra a ansiedade. Também usa pílulas para dormir. Desconfia que pode ter depressão. Eu a escuto atentamente: ela nos fala sobre as porradas que sua família já viveu. Do sofrimento da mãe, que conheceu a fome. Da violência que estrutura sua cidade, violência essa que conecta política, casamentos, Pernambuco, São Paulo. Fala sobre relações de trabalho pautadas pelo uso perverso do poder. Fala sobre como, na sua perspectiva, não adianta nadar contra a maré: o mundo é uma merda e nós estamos fodidos.

Ela chora silenciosamente. O seu sofrimento é tão palpável quanto correto, quase obrigatório. As tentativas de fechamento do horizonte daqueles que podem menos nunca foram tão múltiplas (e tristemente aplaudidas inclusive por quem pode menos). Tem 20 anos a menos que eu, que de alguma estranha maneira me sinto mais jovem do que seus 30.

Faz alguns anos que somos próximas e eu sei como ela, no meio disso tudo, também registra e oferece beleza enquanto caminha. Eu gosto muito do que ela produz e sei que suas imagens me ajudaram a renovar, diversas vezes, minha fé. Percebo que, através dela, eu reconheço, no meio do inferno, o que não é inferno. E que, com ela ali ao meu lado, eu tento preservar e abrir espaço.

Carrego com cuidado algo que aprendi a  respeitar: a minha raiva

Eu não sou nenhuma otimista radical, fique claro. Na segunda onda da pandemia, eu cheguei a pensar que não tinha mais o que fazer por aqui. Por outro lado, carrego com cuidado algo que aprendi a respeitar: a minha raiva (Marilene Felinto falou sobre isso há tempos). Ela me ajuda um bocado alcançar outra coisa pela qual tenho apreço: coragem. E a coragem, e não a vida, é o antônimo de morte, como me disse em um e-mail a artista e educadora Val Souza: é preciso dela para seguir sonhando e insistindo. É urgente superar a ideia de que a raiva é um sentimento unicamente negativo. Sem ela, nos tornamos simplesmente pessoas que dizem, para tudo, sim. E imagina dizer um “sim” para um imbecil que quebra uma placa com o nome de Marielle, por exemplo? Imagina dizer sim para uma Justiça que até hoje não devolveu uma sombra de paz para Mirtes, após a perda de Miguel?

Há algum tempo, tenho percebido que, felizmente, elaborar a raiva tem se tornado algo mais aceito e assimilado (espero que nunca domesticado). No meio de nossa dança com o fogo, no meio da destruição, um outro salmo-mantra emergiu: “defender a alegria e organizar a raiva“. Procurei saber de onde exatamente a frase vem e a encontrei relacionada aos movimentos feministas e também, principalmente, a Nego Bispo (se me ajudarem a localizar a origem, serei grata e prometo atualizar o texto). Encontrei, além de muitas bandeiras com a frase, um seminário do necessário Intervozes justamente com esse título. Nego está lá ao lado de Jerá Guarani. Ele fala sobre fogo e insistência, e quero registrar essa beleza (dedicada a Mãe Bernadete) também aqui:

“Queimaram Canudos. Nasceu caldeirão. Fogo! Queimaram Caldeirão. Nasceu Pau de Cuié. Fogo! Queimaram Pau de Cuié. Nasceram e nascerão tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando. Porque mesmo que queimem a escrita, não vão queimar a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão os significados. Mesmo que queimem os corpos, não queimarão a ancestralidade”.

Eu não vou romantizar a dor, os assassinatos, as arminhas. Longe disso. Mas o que entendo, através de Nego, de Val, de Marilene, de Neon Cunha, do Águia Misteriosa, do Estrela Brilhante, do Caboclinho Sete Flechas, do Cacique de Ramos, de todos os bois do Maranhão, é que nossa insistência (e portanto nossa coragem) não é negociável, e que a produção da beleza — raivosa, lantejoulada, sabida, negra, periférica, tesuda — é sempre a nossa melhor resposta.

Ela nasce e vive coletivamente, como nos ensinam os maracatus. E é com ela que abrimos espaço no meio do inferno.

Naquela noite, na casa do homem que eu amo, vendo minha amiga chorar silenciosamente, eu lhe perguntei se ela tinha raiva e ela disse que sim. Então, falei sobre o valor da vingança.

E uma forma de a gente se vingar é se amando

Ficamos muito tempo ali, conversando. No outro dia, pela manhã, minha amiga Luciana, que também procura abrir espaço no inferno e estava presente naquela longa e emocionada madrugada, escreveu a frase em um papel. Dias depois, raio da silibrina que ela é, mandou estampar a frase em dezenas de camisetas. Aqui, estamos nós duas, no CCBB de São Paulo, vestidas com elas.

 Arquivo pessoal

Tenho pensando cada vez mais nessas coisas todas as vezes que me perguntam o que quero dizer com “textos de luta e lantejoula“, subtítulo de meu último livro. É nada mais do que o reconhecimento de uma forma de existência secular que se dá nas periferias — geográficas, pessoais —, nas quais a binaridade nunca foi uma fundação. As coisas coexistem, se retroalimentam, se misturam. A periferia sempre produziu beleza — e continuou produzindo enquanto lhe tacavam fogo. Ela é a minha maior referência teórica.

Digo isso e lembro de um trecho que li recentemente no livro “No Vestígio”, de Christina Sharpe:

Pois, se tivermos sorte, vivemos sabendo que o vestígio nos posicionou na não cidadania. Se tivermos sorte, saber desse posicionamento nos trará maneiras específicas de (re) ver, (re) habitar e (re) imaginar o mundo. E poderemos usar essas maneiras de existir no vestígio em nossas respostas ao terror e às várias e variadas formas como nossas vidas Negras são vividas em estado de sítio. Quero que No vestígio declare que somos povos pretos no vestígio, sem Estado ou nação que nos proteja, sem cidadania vinculada a ser respeitada nem a nos posicionar nas modalidades da vida Negra vivida na/como/sob a/apesar da morte Negra: pensar, ser e agir a partir daí“.

É isso. É reconhecer o inferno. E reconhecer quem e o que, no meio dele, não é. E preservá-lo, e abrir espaço.

Faz tempo que Odair José cantou: “a Felicidade não existe/O que existe na vida são momentos felizes”. Tá ligada? Faz tempo também que um certo moço baiano escreveu: “respeito muito minhas lágrimas, mas muito mais minhas risadas”.

(Pharrel, Odair e Caetano em um texto só. Hoje eu realmente tô animada).

Sempre acho que temos muito o que aprender com as ervas daninhas.

A artista Rosana Palazyan fez um belo trabalho baseados nelas. Nos lembra que as ervas daninhas são espécies de berçários para diversas sementes, nos lembra que elas irrompem em terras que foram devastadas. Que são expressão de vida e renascimento. “Durante a pesquisa para as obras em livros de agronomia, me impressionaram alguns nomes populares dados às plantas consideradas daninhas como forma de depreciação. E os desenhos foram surgindo como forma de não esquecimento. Em alguns dos desenhos, imagens de plantas e pessoas são parte do mesmo organismo e os nomes populares nas raízes, fazem refletir sobre formas de violência como: exclusão, racismo, preconceito, genocídios”, escreveu ela.

Alguns nomes populares para ervas daninhas, grande parte deles fazendo referência à pessoas pretas  Rosana Palazyan/Reprodução

A gente precisa aprender a fazer política olhando para as festas. Aprender a se organizar, resistir e produzir beleza olhando para as rodas de samba. Dando conta da sofistificação política de todas elas. Aprender com Seu Severino, que em fevereiro de 2020, pouco antes de a covid-19 se alastrar pelo planeta, bordava pacientemente, sentado na calçada de sua casa em Tracunhaém (PE), uma gola do Boi Burucutu. Lantejoula por lantejoula. Entre um e outro dia de trabalho, a bordo de sua bicicleta.

Ele sabe: a gente se vinga se amando. Produzindo beleza e renascendo, apesar do fogo.

Quero dedicar esse texto ao nosso amigo Efrain Almeida, que nos deixou essa semana. Efrain, que sempre será uma revoada de passarinhos levantando, pela manhã, do terreiro do seu pai. Efrain, uma coisa linda.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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