Coluna do Fernando Luna: Lutar com palavras é a luta mais vã — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Lutar com palavras é a luta mais vã

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre a ansiedade do “Digitando…”, o amor não correspondido de Luiz Melodia, um naufrágio chamado Brasil e o bullying via e-mail

01 de Julho de 2024

Lutar com palavras é a luta mais vã

Carlos Drummond de Andrade, 1942

Você abre o Whatsapp e lê logo abaixo do nome do contato: “Digitando…”.

Não bastasse o gerúndio, ainda os três pontinhos – um reforçando o senso de urgência do outro, reticências e tempo verbal unidos pra disparar uma leve taquicardia, quiçá sudorese e falta de ar.

Isso não é status, é gatilho de ansiedade.

Caramba, ainda “Digitando…”? Por que tanta demora, não deu pra entender a pergunta? Devia ter relido antes de enviar: parece que alguém sem polegar opositor usou meu celular, fora os erros do corretor automático.

Mas também não chega a ser a pedra de Roseta. Mesmo sem um Champollion, dá pra decifrar tudinho. Qual o problema, fui seco? Ficou meio grosseiro, mesmo com um “oiê” – incluindo esse simpático acento circunflexo que só existe na pronúncia mais sorridente?

Pior que o “Digitando…”, só mesmo quando o “Digitando…” desaparece.

Desistiu de mim? Achou algo mais importante pra fazer? Vai me deixar no vácuo? Isso é o começo de um ghosting? Tá ligado que esse é um app de mensagens instantâneas e não uma troca de cartas no século 19?

Ah, reapareceu o “Digitando…”. Vem textão aí, tá “Digitando…” há horas. Nem era pra tanto. Ai, parou. Voltou. Parou de novo. Gente. Agora vai. Eita, sumiu de novo.

Tá certo que até pro maior poeta da língua brasileira “lutar com palavras é a luta mais vã”, mas isso já é um MMA com o ABC. Desembucha duma vez. Sim ou não? Almocinho quarta? O plantão é meu ou fui dispensado? Vamos sair ou nunca mais nos ver?

Então, a resposta chega no varejo:

Digitando… “Oiê”. Plin de notificação.

Digitando… “Tudo bem?”. Plin.

Digitando… “Ok”. Plin.

Meu Santo Protetor das Mensagens Fracionadas, opere o milagre da não multiplicação de balõezinhos. Junte tudo num só: “Oiê, tudo bem? Ok”.

Mas, francamente, oquei?! Tudo isso por um “ok”? Nem dá pra entender se é “ok” sim ou “ok” não. Até um joinha, o mais irritante dos emojis, seria melhor.

Tente me amar pois estou te amando

Luiz Melodia, 1972

“Tente me amar pois estou te amando.” Era pedir demais?

Mas o Brasil insistia em se fazer de difícil, e respondia pro Luiz Melodia usando suas próprias palavras: “Baby, te amo, nem sei se te amo”.

E lá ia ele, ora subindo, ora descendo a ladeira da fama. Em 45 anos de carreira, só uma vez vendeu mais de 100 mil cópias – foi em 1999, com “Acústico ao vivo”.

Um sucesso menor que sua obra imensa.

Ontem à noite, porém, fiquei com a sensação de que o país tá tentando zerar ao menos esse déficit.

A sessão de “Luiz Melodia – No coração do Brasil”, vencedor do festival In-Edit, lotou tão rápida e merecidamente que a organização arranjou uma exibição extra, no pátio da Cinemateca Brasileira.

Desde sua morte por câncer em 2017, ele já mereceu uma biografia, “Meu nome é ébano”, um tributo musical de figuras como Criolo e Mart’nália, “Pérolas negras”, e dois documentários, “Todas as melodias” e agora esse – que logo aparece no Arte 1.

O filme começa com Melodia no palco, se dirigindo à plateia: “Enquanto existir música dentro de cada um, existe liberdade”. Ele sabia bem dessa conexão entre música e liberdade.

Logo em seu primeiro álbum, teve duas canções vetadas pela ditadura, “Feras que virão” e “Feto, poeta do morro” – imagina Sóstenes Cavalcante escutando essa.

(Mutilações à parte, no meu ranking pessoal e intransferível, “Pérola negra” é das estreias mais surpreendentes da música brasileira – aqueles discos que parecem surgir de si mesmos, absolutamente originais –, ao lado de “Chega de saudade”, de João Gilberto, e “Da lama ao caos”, de Chico Science e Nação Zumbi.)

Livre, juntava o que o mercado fonográfico preferia manter separado, como blues, MPB, jazz, baião, rock, samba e outras mumunhas mais. Melodia nunca deixou que lhe dissessem qual o seu lugar – e o Brasil costuma virar a cara quando um “negro magrinho do morro de São Carlos” se dá essa liberdade.

As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios

Ana Cristina Cesar, 1982

No naufrágio permanente chamado Brasil, as mulheres e as crianças são os primeiros passageiros jogados ao mar.

A poeta Ana Cristina Cesar conhecia esse código de conduta peculiar. Daí sua “Cartilha da Cura”, grande poema de apenas uma frase e muitos sentidos.

Tudo começou em 1852, quando o navio da marinha real britânica Birkenhead afundou. Havia menos botes salva-vidas que necessário e, em meio ao caos do convés, um civilizado capitão estabeleceu as prioridades. Desde então, a regra não escrita porém respeitada pelos sete mares é “mulheres e crianças primeiro”.

Aqui é diferente.

Aqui é cada um por si e o deus de Sóstenes Cavalcante, Silas Malafaia e Arthur Lira contra todas – contra todas as mulheres e as crianças. Elas são as primeiras que desistem de afundar navios, porque sabem que se forem a pique ninguém vai nem lançar uma boia em sua direção.

O projeto de lei do estupro, disfarçado no eufemismo burocrático de PL 1904/2024, é um rombo no casco do país.

Não bastasse uma mulher estuprada a cada 8 minutos, três em cada quatro delas menores de 14 anos, ainda aparece essa combinação de fundamentalismo religioso com chantagem política pra castigar a vítima com mais tempo de cadeia que estuprador ou assassino.

(Fanáticos de ocasião, que tal um louvor à legislação do aborto em Israel? Apesar da política ultraconservadora e do massacre em Gaza, os direitos femininos sobre o próprio corpo seguem firmes. Ninguém cogita prender uma mulher que aborta.)

A proposta fez a opinião pública, que às vezes acerta, praticamente esgotar os adjetivos da língua: nefasta, violenta, medieval, insana, estúpida, desastrosa, cruel, misógina, arcaica, cínica e por aí vai.

Seus defensores balbuciam algo sobre a defesa da vida.

Se defendessem a vida, não aplaudiriam as polícias matando 18 pessoas por dia. Quando fetos nascem e crescem, essa gente apoia o aborto à bala.

Existe a felicidade que você tem e a felicidade que você merece

Jericho Brown, 2019

Meu e-mail acha que tenho problemas. Muitos.

Dialético, sabe que “existe a felicidade que você tem e a felicidade que você merece”, como escreve Jericho Brown em “A tradição”. Zeloso, meu correio eletrônico tenta fazer com que a felicidade que eu tenho enfim alcance a felicidade que eu mereço.

Pra tanto, começou tentando fazer de mim um homem rico.

Buscou insistentemente me conectar com um príncipe nigeriano. O nobre, impedido de acessar sua fortuna por burocracias financeiras, só precisava de uma conta bancária no estrangeiro pra resgatar seu dinheiro.

Em troca dos dados da minha conta corrente, oferecia generosamente milhões de dólares pelo meu aborrecimento de receber um Pix. Como dinheiro não traz felicidade, jamais respondi suas mensagens.

Então, meu e-mail passou a se dedicar à cura de mazelas que eu nem sabia sofrer.

Confesso ter me ofendido quando notei que ele não apenas não me tem em alta conta, como espalha por aí que sofro de mau hálito, tô ficando careca e tenho fimose. Entupiu minha caixa de entrada com assuntos embaraçosos: “Chega de bafo, tenha um hálito perfeito”, “Todos os homens podem ter o cabelo que sempre sonharam” e “Quero ser liberto da fimose”.

Apaziguado por minha companheira, deletei essas mensagens.

Mas o correio eletrônico procurou outras sarnas pra me coçar: “Pare de fumar naturalmente”. Pareceu um boa estratégia, deixar um vício potencialmente fatal sem recorrer a medicamentos – lembrei, porém, que não fumo.

Foi quando ele apelou de vez.

Como se eu fosse uma reencarnação de Jó, atacado todas as moléstias físicas e espirituais, enfileirou numa mesma manhã “Sofre com rinite?”, “Fique seguro com o fígado”, “Traição, está desconfiado? Não fique na dúvida”, “Visão recuperada”, “Seus problemas no ouvido acabaram” e “Alívio instantâneo para qualquer dor”.

E ainda teve a pachorra de enviar: “Feche a porta para os spams”.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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