CV: Neca Setubal — Gama Revista
Bob Wolferson

CV: Neca Setubal

Socióloga e filantropa Neca Setubal lança autobiografia, fala do combate às desigualdades e da trajetória dedicada à ação social

Leonardo Neiva 17 de Junho de 2024

Não foi só para apontar caminhos a quem quer empreender no terceiro setor e na filantropia que a socióloga e filantropa Maria Alice Setubal, mais conhecida como Neca, decidiu publicar sua trajetória de 40 anos na área. Ela também queria dar uma resposta definitiva às constantes perguntas que recebe sobre por que, mesmo tendo vindo da elite brasileira, com um pai banqueiro, segue atuando no setor social. Por essas duas principais razões ela lança esta semana, aos 73 anos, “Minha Escolha pela Ação Social” (Tinta da China Brasil, 2024), registro pessoal de uma longa trajetória no debate público e na filantropia.

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“Escrever esse livro é a forma que tive de responder a essa pergunta, o que estou fazendo aqui”, declara em entrevista a Gama. Durante a conversa, Setubal deixa claro o aborrecimento sobre questões voltadas à sua origem, especialmente quando colocam em dúvida sua jornada no terceiro setor. De fato, a escolha pela ação social, ecoando o título da obra, aconteceu cedo, seja na entrada no curso de Ciências Sociais da USP ou no trabalho desde jovem no serviço social.

Ela rapidamente encaminhou a carreira para a educação, criando o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) ainda na década de 1980, ONG que promove qualidade e equidade no ensino público brasileiro, onde permaneceu mais de 30 anos. Além disso, foi professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie e ocupou funções ligadas à área no IBECC (Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura da USP), no Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e no Banco Mundial.

Desde 2006 no comando da Fundação Tide Setubal, que atua em São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, Setubal aposta no fomento e no investimento em causas e ações de desenvolvimento local, ajudando a enfrentar as profundas desigualdades sociais da região e do país. A organização leva o nome da mãe, filantropa de quem puxou o olhar para o social. Do pai, o banqueiro Olavo Setubal — responsável pela expansão do Itaú, já foi prefeito de São Paulo (1975-1979) e ministro das Relações Exteriores (1985-1986) —, afirma ter o ímpeto realizador e o espírito do diálogo e da política. “Tanto meu pai quanto minha mãe nos educaram sobre o valor do trabalho”, diz a única mulher dentre os sete filhos de Olavo.

Setubal também se envolveu com a política, apoiando de perto as candidaturas de 2010 e 2014 à Presidência da atual ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva (Rede Sustentabilidade), de quem é próxima até hoje. “Foi uma campanha muito difícil. A gente foi muito agredida”, lembra em relação ao pleito de 2014, marcado pela morte do então presidenciável Eduardo Campos (PSB), que tinha Marina como vice, e a campanha negativa do PT contra a candidatura — sobre a qual ela diz ter virado a página. Hoje inclusive considera o período crucial para trazer uma visão política para dentro da filantropia.

Em relação ao combate às desigualdades, uma de suas principais pautas na Fundação Tide Setubal, a filantropa enxerga um cenário complexo, que precisa de uma visão ampla e sistêmica difícil de alcançar em meio a uma sociedade política e ideologicamente partida. “Sou essa pessoa da elite econômica, então tem um simbolismo puxar esse tema”, afirma Setubal, que recentemente defendeu a taxação dos super-ricos, em entrevista à Folha. Ainda esse mês, vai receber para um jantar a economista francesa Esther Duflo, vencedora do Nobel de Economia de 2019 e criadora de uma proposta para o tema a nível global.

No bate-papo com Gama, Neca Setubal aborda ainda a importância da equidade racial para o avanço da igualdade social, o impacto de trabalhar diretamente na periferia e a necessidade de preparação e organização para qualquer um que pretenda empreender no terceiro setor sem ver o negócio morrer na praia.

Tive que criar uma forma diferente de atuação na filantropia

  • G |Quando teve a vontade de fazer o livro? Como foi para você revisitar sua trajetória e o que espera que a obra traga para o público?

    Neca Setubal |

    Eu tinha duas perguntas. Minha trajetória é longa, já faz tempo que eu atuo tanto em educação como na área social. Então sou muito demandada, o que me deixa muito feliz. As pessoas dizem que sou alguém que as inspira. E tem muita gente querendo abrir uma ONG sem saber qual caminho seguir. Então esse é um tipo de demanda. Outro é que, desde o dia zero em que comecei a atuar, todo mundo sempre me falou: Neca, você não precisava estar aqui, podia estar viajando, fazendo compras… Sempre me incomodei muito com essa pergunta, embora as pessoas digam isso com a melhor das intenções. Se tal pessoa nasceu de uma família de empresários, logo deveria estar nesta caixinha. Sempre respondi que não fui educada para ficar só viajando ou fazendo compras. Sou a única mulher em meio a seis irmãos e tanto meu pai como a minha mãe nos educaram sobre o valor do trabalho. A construção da minha identidade é muito voltada para o trabalho. Essa questão de fazer alguma coisa para o país sempre esteve dentro da minha educação. Escrever esse livro é uma forma que tive de responder essa pergunta, o que estou fazendo aqui. Hesitei muito em como ia fazer isso. Resolvi eu mesma escrever. Foi um processo incrível. Não sou escritora nem pretendo ser, mas foi muito terapêutico. Fui fazendo muitas correlações que não fiz durante a vida, jogando luz em pessoas que foram importantes. Gostei muito do resultado, mas ainda mais do processo.

  • G |O livro tem o título “Minha Escolha pela Ação Social” e de fato essa foi uma escolha ativa desde o início da sua trajetória. O que te moveu ao longo desse tempo e te trouxe aonde está hoje?

    NS |

    Eu conto logo no primeiro capítulo que estudei numa escola de freiras todo o ensino básico, um colégio só de meninas. E eram freiras muito modernas, que faziam trabalhos sociais. Ali eu tive consciência de que o mundo era dividido de forma maniqueísta, entre ricos e pobres. A partir disso, já me encaminhei para o serviço social. Fazer Ciências Sociais foi ótimo porque me deu uma visão da sociedade superimportante. Depois eu fiz Ciência Política, mestrado e fui para Educação. Quando fui fazer doutorado em psicologia da educação, já estava atuando na área. Foi a forma que eu vi para agir nas questões sociais mais amplas, nas desigualdades, no final dos anos 80, com a Constituinte, quando a educação começa a ter um papel muito relevante na sociedade. Ali eu fui professora alfabetizadora.

  • G |E essa visão sobre o lugar de onde você veio, que você não precisaria atuar na área social, dificultou seu trabalho? É algo que acaba pesando mais para as mulheres?

    NS |

    Acho que tem esse componente sim, de que, por ser mulher, eu não precisaria trabalhar. É ainda uma visão machista, patriarcal. Eu faço parte de uma família de empresários. Participei do conselho da Dexco, uma empresa do Grupo Itaú SA, por três anos, um período muito curto. Fora isso, praticamente nunca atuei nas empresas da família, só nas fundações. Na Itaú Social, hoje Fundação Itaú, onde estou na vice-presidência. Meu olhar sempre foi na atuação social. Eu tinha o meu caminho dentro da família. A atuação na Fundação Itaú sempre foi paralela, meu caminho foi uma busca própria. Criei o Cenpec, uma ONG na área de educação pública, em que atuei por mais de 30 anos. Depois, a Fundação Tide Setubal. Então sempre foi uma atuação própria.

  • G |E quais foram os principais aprendizados ao longo dessas quase duas décadas à frente da Fundação Tide Setubal?

    NS |

    Foram muitos. Eu já vinha de uma trajetória de educação pública e ONG, no Cenpec. Quando criei a Fundação Tide Setubal, mudei de uma organização da sociedade civil para uma da filantropia. Então, pela primeira vez, saio desse lugar da ONG para o outro lado do balcão, como filantropa. Foi um aprendizado grande, em várias dimensões. Primeiro, eu não queria ser confundida nem com uma filantropia de caridade e nem empresarial. Tive que criar uma forma diferente de atuação na filantropia. Muita gente fala que a Fundação Tide Setubal é diferente, e eu acho que é mesmo porque trago 30 anos de experiência de ONG e como conselheira da Fundação Itaú. O aprendizado foi estar numa periferia, apoiando projetos com recurso próprio. Desde o dia um, a gente traz como aprendizado que a periferia é uma potência. Ela tem pessoas com conhecimento, pessoas pensantes que a gente trouxe para trabalhar conosco. A Fundação Tide Setubal nunca teve lá em São Miguel Paulista, periferia onde a gente atua, uma sede própria. A gente sempre foi parceiro, junto com o Brasil Futebol Clube e o Bloco de Carnaval Vamo q Vamo, numa gestão compartilhada. Foi um grande aprendizado estar do outro lado, dentro de uma periferia, sentar com as pessoas dessas instituições, com o padre da matriz de São Miguel, a associação comercial, os maçons. Quando eu estava no Cenpec, viajei esse Brasil todo, para aldeia indígena, mas era sempre indo e voltando para a sede. Na Fundação, a gente vai da periferia para o centro. É um outro olhar, outra rota.

O tempo chegou para a discussão das desigualdades em nível global. Ela está na fala não só aqui no Brasil, mas na global

  • G |Recentemente, você falou a favor da taxação de riquezas no Brasil. Quais caminhos e desafios enxerga para a redução das desigualdades no país?

    NS |

    É um enorme desafio, porque a gente tem que atuar em vários âmbitos. Envolve um olhar muito sistêmico, uma mudança de cultura. E no momento estamos numa sociedade partida, num embate muito forte de concepções. Então isso dificulta muito pensar em reduzir as desigualdades, porque não basta uma política, não é só renda ou só educação. Claro que sem educação também não vai, mas não é só. Com certeza não é a filantropia que vai resolver as desigualdades. Acho que temos sim que passar por uma tributação progressiva, mas também por um conjunto de políticas públicas que vão pela educação, a saúde, a renda e o trabalho. A gente ainda vive num país que está se reconhecendo racista e tendo que enfrentar questões básicas das desigualdades. É diferente de um país como o Canadá, que tem uma fala mais voltada para os direitos. Não temos isso ainda. Dizemos que vamos dar bolsa, conseguir que os melhores vão para Harvard. É uma fala ainda muito meritocrática. Vamos fazer uma escola maravilhosa, mas só uns 300 alunos vão entrar. Os outros milhões vão para onde? Ainda estamos muito arraigados, infelizmente, nessa ilusão de melhorar para poucos. Enquanto a gente não entender que não vai sair desse patamar de país medíocre, que não avança, enquanto não dermos um salto de qualidade para todos… e a gente não tem uma cultura de direitos para todos.

  • G |E que lições tirou da sua passagem pela política na campanha da Marina Silva?

    NS |

    Foi um divisor de águas no meu olhar para o contexto sócio-político do Brasil. Meu encontro com a Marina foi muito potente. Ela fala que nós duas nos encontramos pela educação, que somos contra os nossos destinos. Porque ela deveria ser uma menina que ficaria no seringal e eu uma menina da elite, fazendo compras e viajando. Fui trabalhar na educação, ela foi estudar, e a gente se encontrou. Em 2010, fui convidada para o programa de educação da campanha. Comecei a acompanhar a Marina em algumas viagens e a gente foi se dando super bem, ficamos muito próximas. Em 2014 nem se fala, foi uma campanha muito difícil. A gente foi muito agredida. A Marina especialmente, mas depois dela, fiquei muito no foco também. Conto no livro que, quando acabou a campanha, eu estava numa estafa. Não vou dizer que não foi difícil, mas tenho zero ressentimento. Virei a página. Acho a experiência política superimportante, foi muito transformadora. Hoje em dia não consigo pensar num projeto sem esse olhar. Estou aqui na Fundação e, quando eu vejo, estou analisando a política, mesmo que seja um projeto nosso. Não é política partidária, mas o contexto sócio-político.

  • G |Hoje qual é a sua missão na área social?

    NS |

    Tenho participado de vários conselhos e estou no comitê gestor do Conselhão. Então é, em outras organizações, poder apoiar com a minha experiência, fazendo pontes. Isso é uma parte da minha contribuição. Outra é ver como vai evoluir a questão das desigualdades. Parece que o tempo chegou para essa discussão em nível global. Ela está na fala não só aqui no Brasil, do Haddad e do Lula; mas na global, do FMI, do Banco Mundial, do Macron. Vou dar um jantar para a Esther Duflo, Prêmio Nobel de Economia que está vindo para o Brasil. Estou apostando nessa pauta, que é minha e da Fundação. Sou essa pessoa da elite econômica, então tem um simbolismo puxar esse tema. Outra pauta que acho muito importante é a da equidade racial. É muito forte na Fundação Tide Setubal porque, no desenvolvimento e combate às desigualdades nas periferias, as questões de raça e gênero são fundamentais. Temos nos colocado como uma organização branca que considera a equidade racial uma questão da sociedade brasileira. Vamos ver como isso vai evoluir na discussão das questões tributárias, tanto na sociedade brasileira como em nível de G20. A pauta racial é consistente com a minha trajetória, da educação às desigualdades. É nisso que quero colocar minha energia agora.

  • G |Que conselhos você daria para os profissionais que pretendem seguir carreira no terceiro setor e na filantropia?

    NS |

    Eu sou socióloga e acho super importante conhecer o contexto socioeconômico. Não precisa se aprofundar, mas entender onde você vai atuar. Às vezes, vejo uma coisa muito superficial, muito ingênua. O que é uma fundação, o que é uma ONG, entender o funcionamento da sociedade civil brasileira nas suas diferentes instâncias. Muitas pessoas entram e não entendem nada, me dá um pouco de aflição. Isso é o básico, e o básico é muito importante. Aí vem a pauta, o que te mobiliza, porque é importante ter uma motivação. Depois de estar atuando, também é essencial a institucionalização na hora de criar uma organização, o desenvolvimento organizacional. Porque senão aquilo vai precarizando, vai caindo e é nisso que as organizações morrem. É algo pouco cuidado às vezes, por falta de conhecimento e de ferramentas. Então tem muita paixão, muita ilusão, o que é importantíssimo, mas, se não tiver as ferramentas para concretizar, aquilo vai morrer.

Produto

  • Minha Escolha pela Ação Social: Sobre legados, territórios e democracia
  • Neca Setubal
  • Tinta da China Brasil
  • 184 páginas

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