Trecho de Livro: A Viagem Inútil: trans/escrita, de Camila Sosa Villada — Gama Revista

Trecho de livro

A Viagem Inútil: trans/escrita

Obra traz um olhar da autora argentina Camila Sosa Villada sobre si mesma, suas origens e os paralelos entre sua existência como escritora e travesti

Leonardo Neiva 07 de Junho de 2024

“Primeiro eu soube escrever e depois aprendi a ficar triste”, diz a atriz e escritora argentina Camila Sosa Villada em “A Viagem Inútil” (Fósforo, 2024). Em frases como essa, a autora de “O Parque das Irmãs Magníficas” (Tusquets, 2021) e “Sou uma Tola por Te Querer” (2022) une a poética que caracteriza sua escrita a um estilo autobiográfico, no qual a história pessoal e a de sua formação artística se mesclam e se confundem constantemente, até se tornarem uma coisa só.

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A obra resgata memórias marcantes da infância de Villada em Córdoba, numa reflexão sobre temas como literatura, escrita, família, pobreza e, no fim, a relação entre todas essas coisas. Lembranças como o fato de o pai ter sido seu principal incentivador na leitura e escrita, ao menos no início. Um interesse que acabou por unir a dupla num breve período para, mais tarde, se tornar um dos motivos que contribuíram para a violência e o afastamento entre eles. “Para um pai não deve ter nada mais horrível do que um filho escritor. Esse ofício inútil e inexplicável que um filho escolhe para si como destino”, diz Villada na obra.

Com a leitura de autores como Marguerite Duras, Wislawa Szymborska e Carson McCullers como guia, ela também vai perfilando neste livro curto, mas potente, paralelos entre o ofício de escritora e a própria existência travesti. “A travesti é a irmã da escrita nessa viagem de renúncia”, aponta, reforçando o caráter solitário que geralmente marca as duas coisas. Em outro momento, compara o preconceito que existe em torno de ambos. Os dois estão conectados até no termo “trans/escrita” que aparece no subtítulo da obra.

Por fim, “A Viagem Inútil”, com tradução de Silvia Massimini Felix, traz um olhar raro de uma das principais vozes da literatura contemporânea sobre si mesma, suas origens e como os pais podem ser tanto os principais responsáveis por quem você se torna quanto os primeiros a rechaçá-lo.


Uma lembrança muito antiga. A primeira coisa que escrevo na vida é meu nome de homem. Aprendo uma pequena parte de mim. Estou sentada no colo do meu pai, na minha frente tem uma caixa de lápis de cor, um caderno de capa alaranjada, e meu pai pega na minha mão e me ensina a usar o lápis. Também fez isso com talheres e copos. Ele me ensina a segurar as coisas do jeito certo. Assim que aprendo a escrever as vogais e faço os primeiros rabiscos nas folhas, ele dobra a aposta e me ensina a escrever meu nome: meu primeiro nome, Cristian Omar Sosa Villada. E em seguida todo o alfabeto e depois os números, de um a dez. Tem um método preciso, letra por letra, cursiva e de fôrma. Nossa comunicação é o que confirma, depois de tanta separação e distância, que algo nos uniu nesse momento e nos deixou felizes: o ato de me ensinar a escrever.

Esse período de aprendizagem com meu pai é o que me garante que “nem sempre houve guerra entre vocês”. Houve amor. Ríamos juntos.

Me ensinar a escrever é o gesto de amor que meu pai me oferece.

Quando eu antecipava uma resposta ou o surpreendia com meus avanços na escrita, ele dava pulos de alegria. Nesse instante tenho quatro anos para sempre, sentada no colo dele, inclinada sobre as linhas do caderno, descobrindo o início da escrita.

A primeira coisa que escrevo na vida é meu nome de homem. Aprendo uma pequena parte de mim

Ele me prepara para viver.

Acha semelhanças entre sua linguagem e a minha para me explicar melhor as coisas. A letra “a” se parece com tal objeto. A letra “b”, com outro. Essa letra que parece tão difícil quase não é usada. Mas é parecida com isso. Lembro que o 2 parece um patinho. O 1 é um palito. O 4, uma cadeira de ponta-cabeça.
Tenho muitos cadernos onde escrevo tudo o que meu pai me ensina. Sempre que ele volta do trabalho ou quando escapa da sua outra família e vem nos visitar, me dedica esse gesto de amor. Eu aprendo rápido.

É também um gesto que deixa minha mãe de fora do nosso vínculo. Por uma única vez, temos um espaço que não precisa de intermediários. Isso nunca mais vai acontecer entre nós.

A escrita nasce desse momento. O desejo de escrever constata que sou fértil, que sou uma fêmea viável para incubação, ele põe seus ovos e eu os carrego dentro de mim como uma mãe.

Agora surge a oportunidade de escrever esse momento, o da origem da minha escrita. É a imagem de um pai com sua cria, cuidando dela, protegendo-a do analfabetismo, de não saber ler — o que deve ser uma das coisas mais tristes do mundo. Quando vou para o jardim de infância, as professoras não precisam me ensinar a ler e escrever, chego na escola com um privilégio: meu pai se encarregou de me ensinar antes.

Começamos com esse gesto de amor e terminamos muito afastados um do outro. No fim, sou tudo o que meu pai nunca quis para um filho

Começamos com esse gesto de amor e terminamos muito afastados um do outro. No fim, sou tudo o que meu pai nunca quis para um filho. Tendo aprendido a ler e escrever, essa lembrança é apagada sob as ruínas deixadas pela violência, pelo alcoolismo, pela indiferença e pela solidão que experimento desde o nascimento até sair de casa, aos dezoito anos. Percebo que esse conhecimento do nosso afeto, na minha infância, é uma revanche para a nossa história. Saber que estivemos tão próximos, ocupados com algo tão bonito como aprender a escrever meu nome num papel, me causa uma felicidade que não consigo aguentar. Como dizia Borges, sempre exageramos as felicidades perdidas.

Agora que a escrita me oferece seu espaço para falar disso, digo que foi um presente, que meus pais me deram a escrita. Outros pais dão ao filho uma bola, um animal, uma TV no quarto, mas o meu me presenteou com a possibilidade de escrever.

Não sei se alguma vez ele imaginou que, com isso, pudesse acabar tendo um filho escritor. Não sei quanta ingenuidade havia no ensinamento dele. Também digo que para um pai não deve ter nada mais horrível do que um filho escritor. Esse ofício inútil e inexplicável que um filho escolhe para si como destino, bem debaixo do nariz dos pais, jogando na cara deles o hábito da solidão, do distanciamento. Não, não é só decepção o que um pai experimenta quando vê que seu filho não se torna uma versão melhorada de si mesmo, é todo o preconceito em torno do escritor, que afinal é o mesmo preconceito que existe em relação à travesti.

É todo o preconceito em torno do escritor, que afinal é o mesmo preconceito que existe em relação à travesti

Produto

  • A Viagem Inútil: trans/escrita
  • Camila Sosa Villada (trad. Silvia Massimini Felix)
  • Fósforo
  • 72 páginas

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