Trecho de Livro: Destransição, Baby, de Torrey Peters — Gama Revista

Trecho de livro

Destransição, Baby

Com narrativa que parte de uma polêmica cirurgia de “destransição”, livro da autora trans Torrey Peters navega por questões de gênero, sexo e relacionamentos fora do padrão

Leonardo Neiva 17 de Dezembro de 2021

Como primeira mulher transgênero a concorrer ao prestigiado Women’s Prize em ficção, dá para dizer que a americana Torrey Peters já fez história na literatura. A simples indicação, no entanto, empalidece se comparada à ousadia dos temas que a autora vai desfiando ao longo de “Destransição, Baby” (Tordesilhas, 2021), seu surpreendente romance de estreia.

Para entender como Torrey navega de forma corajosa por alguns dos maiores tabus ao se tratar de gênero e identidade, basta saber que a narrativa, como já prevê o título, parte de uma cirurgia de “destransição”. Quem se submete a ela é a personagem Amy, que se transforma em Ames. Com a intenção de tornar mais fácil sua vida, vivendo como um homem, ela acaba implodindo o relacionamento até então feliz que mantinha com Reese, uma mulher trans.

Assim, passamos a acompanhar tanto a odisseia autodestrutiva de Reese, que afoga as mágoas enquanto dorme com uma série de homens casados, quanto a jornada de Ames para reconstituir os laços com a ex, sua única família. Com capítulos que vão empurrando o leitor em direção a uma gravidez que deve embaralhar ainda mais as regras do jogo, “Destransição, Baby” é uma obra provocativa, por vezes desbocada, mas sem perder a ternura com que observa seus personagens e questões como gênero, sexo e relacionamentos fora do padrão.

Com uma adaptação para a TV já engatilhada, a trama coloca Torrey no mapa literário por meio de uma narrativa que, como a própria autora já declarou, tem “liberdade para imaginar pessoas trans como banais, tediosas e falhas”.


Reese tinha vinte e seis anos na primeira vez que um homem bateu nela – como um homem às vezes bate numa mulher: não necessariamente para feri-la, mas para mostrar-lhe algo. O golpe, um gancho de mão aberta, a pegou justo quando ela abria a boca para insultá-lo. Ela não viu a mão chegar. Sua cabeça saltou para trás. Sua visão tremulou. A surpresa virou dor, e a intensidade da força a surpreendeu.

— Sério? — ela perguntou baixinho.

Ele tensionou os músculos de novo, como se para mostrar que sim, sério. Se ela tivesse que repetir aquela cena toda de novo, ela teria cuspido nele. Mas seu corpo, que não gostava de dor, a traiu, e, sem pensar, ela se encolheu e soltou:

— Desculpa.

Satisfeito, ele relaxou os ombros.

O gosto de cobre gotejava fino de um corte no lábio e escorria entre os dentes. Ela examinou a linha do ferimento com a língua, mãos pendendo imóveis nas laterais do corpo, quieta como um animal petrificado frente a um predador.

Ela sabia que, quanto mais ele a rebaixava, mais ela o havia prendido. Assim, provocar sua raiva se tornava um prazer melífluo e perigoso

Em algum lugar longe de seu corpo traiçoeiro, uma parte furtiva da mente calculava sua vantagem. Ela já via a dúvida se reunindo no rosto dele, o arrependimento e a preocupação de que talvez houvesse batido com força demais. Friamente distanciada, via como aquilo se desenrolaria: ela o faria sofrer por isso. Arrancaria as lascas da sua autoimagem de homem calmo, estoico e seguro, de alguém que está sempre no controle da própria vontade, incapaz de ser provocado. Ela o faria sentir culpa, ela o faria duvidar, ela insinuaria abuso. Quando a parte animal de seu corpo se acalmasse, quando a dor se transformasse em memória, ela imaginou que cutucaria a própria ferida, de maneira quase voluptuosa, seu troféu de uma vitória sinistra. Ele se chamava Stanley, um homem rico de quase quarenta anos que não gostava de cachorros. Não gostar de cachorros era uma das coisas que Reese decidira ser importante no caráter dele. Quando ela falou o nome à sua amiga Iris, ela disse que não existia um único Stanley que prestasse. Que aquele nome era uma maldição que pais lançam em um filho para garantir que o garoto se torne um merda quando crescer. Reese sabia que seu Stanley era um merda. Reese o desejava, mas não diria que gostava dele. Ela gostava dos seus ciúmes, do seu comportamento controlador, de como ele a mandava se vestir. Ela gostava de se ver pelos olhos dele: vulnerável, frágil, tendendo às qualidades mais exasperantemente femininas – ele debochava dela por ser obcecada pela própria aparência, por sua volatilidade, sua qualidade sonhadora e suas visões altamente subjetivas e associativas sobre como o mundo funciona. Ela gostava de como ele a chamava de puta e depois lhe comprava presentes caros. Acaricie a perna dele, peça um vestido, seja xingada de piranha patricinha, vá comprar o vestido. Ela gostava de como ele havia se apaixonado por ela e do quanto ele se ressentia pela própria paixão. Ela sabia que, quanto mais ele a rebaixava, mais ela o havia prendido. Assim, provocar sua raiva se tornava um prazer melífluo e perigoso. As amigas dela o odiavam.

Apenas Iris, a festeira de cabelo loiro maravilhoso, que, com frequência, passava dois ou três dias sumida trepando e fumando cristal, realmente entendia por que Reese continuava indo mais e mais fundo com Stanley.
— Eu quero enlouquecer os homens — Iris disse com sua malícia costumeira. — Eu quero que eles sofram. Eu quero que um homem me ame tanto que ele me mate. Eu quero morrer porque sou amada demais pra ele tolerar minha existência.

Reese não queria morrer. Comparada a Iris, Reese sentia que estava só atuando num tipo de psicodrama – Fisher-Price: Meu Primeiro Homem Abusivo. Enquanto isso, Iris tinha tempo para homens abusivos. Iris tinha olhos de boneca e um riso bem praticado de Marilyn Monroe. Ela havia estudado Letras na Brown University antes de transicionar, mas, desde então, se recusava a ler qualquer livro e, em vez disso, apresentava vagas ambições nas quais poderia seguir sendo um objeto: ser descoberta e virar uma estrela de cinema, tornar-se a personificação de uma música da Lana Del Rey. Na ressaca de metanfetamina, ela evocava outras imagens, batizadas com o terror da falta de serotonina e com uma insistência quase orgulhosa em descrever suas ações na voz passiva: ser cafetinada; ter a buceta penhorada; ser detida por dias num semicativeiro deliroide entre homens sem rosto que me viciassem, que me possuíssem, que me fodessem até eu não conseguir mais andar, cujas vidas dependessem do meu corpo.

Iris apresentava vagas ambições nas quais poderia seguir sendo um objeto: ser descoberta e virar uma estrela de cinema, tornar-se a personificação de uma música da Lana Del Rey

A forma sonhadora como Iris falava do que deveria ser horrível deixava Reese com inveja. Antes de Stanley, os jogos sexuais de Reese haviam apenas flertado com a ideia de posse e, sozinha com seu massageador Hitachi, imagens das histórias de Iris faziam participações especiais em suas fantasias. Mãos na garganta. Tapas na cara. O poder de recusa abandonando seu corpo. Mas, para Iris, Reese dizia pouco além de “uau”. Um dia, Reese lhe perguntou se ela precisava de ajuda para se afastar desses homens. Como resposta, Iris abriu um sorriso e disse: “Não é assim”. E, pela primeira vez na vida, Reese, a mulher trans que não tinha ido para a faculdade, muito menos para a Brown, se deixou envergonhar por seus pudores, segurando seu rosário, comportada, imaginando o sensacionalismo de um episódio de Law & Order: SVU sobre tráfico sexual em vez de o que fosse que Iris tirava, emocionalmente ou de outra forma, dos homens com quem sumia. Seu tom era o mesmo tom de preocupação desinformada que as pessoas cis mais velhas usavam com Reese quando descobriam que ela era transexual: “Ai, puxa, sua vida realmente não deve estar indo bem”. A resposta sempre as surpreendia: “Fui eu quem escolhi. Eu quero isso. Isso faz com que eu me sinta bem”. O que quer que Iris tirasse, ela o tirava porque havia algo ali que ela queria, e, se ela o compartilhou com Reese, foi por ter sentido que, espreitando em algum lugar impronunciado, Reese desejava algo semelhante. O mínimo que Reese poderia fazer era ser honesta, não fingir que não entendia o caos que separava o que se pode desejar e o que se pode dizer.

Considere por um momento as próprias feridas de Reese: ela conheceu Stanley em um site com a palavra “travas” no nome. Durante aquele período de sua vida, Reese só namorava homens que conhecia em sites de fetiche. Ela desdenhava das garotas trans que desdenhavam de travequeiros. É idiota eliminar cada um dos homens que chegou à conclusão de que ele deseja seu corpo. É uma marca de inexperiência pudica pensar que ser fetichizada e objetificada não é a coisa mais tesuda que acontece no quarto.

As práticas de namoro de Reese prescreviam que os únicos travequeiros a se evitar eram as mulheres criptotrans, aquelas que querem ser mulheres mas se reprimem tanto que não conseguem aguentar a ideia, e que então vivem suas fantasias por meio de você. Você consegue sentir quando está com uma criptotrans. Ela precisa evacuar você, sua condição de pessoa, usar você e fantasiar que ela está sendo fodida mesmo enquanto te fode. Você é só um corpo por meio do qual ela vive de forma indireta. É a coisa mais alienante no mundo. Como se você fosse uma peça de roupa. É como ser psiquicamente transformada numa luva. Reese fugia ao menor sinal de uma criptotrans. Ela só queria que elas se transformassem em mulheres e deixassem de ser homens esquisitos.

Em questões do coração, Reese tinha uma única diretriz absoluta: você não escolhe com quem fode, escolhe entre os que querem foder você

Mas qualquer outro travequeiro? Por que se incomodar com garotos no OkCupid que não sabem nada da vida, que se assustam com o menor tiro, se dar o trabalho de convencê-los de como é sexy uma garota com pinto, quando há milhares de homens por aí que já sabem disso e entre os quais você pode só escolher? Quer uma estrela de cinema? Dá pra achar uma (apesar de que vai ser uma celebridade meio B se você estiver disposta a satisfazer a curiosidade de um cara sobre como seria dar a bunda para uma garota trans; caso contrário, vai ser uma celebridade meio C). Quer um herdeiro da indústria de tecnologia que vai mostrar a você o iate? Ótimo! Os que têm barco a motor são os melhores, porque homens com veleiros que vão fazer com que você puxe umas cordas e se imagine como uma Jackie O descolada é levar a autoilusão aspiracional longe demais. Quer uma foto ambulante do Bruce Weber com um tanquinho tão bem definido que parece estar sempre iluminado lateralmente? Aqui estão alguns modelos masculinos, guarde um para mais tarde. A única coisa que não vai arrumar é um sujeito decente que leve você para casa no jantar de Dia de Ação de Graças, mas também é impossível arrumar isso num site que não seja de fetiches, então pelo menos aproveite o sexo de qualidade.

Quantas garotas Reese conhecia que, para provarem a si mesmas que poderiam ser iguais a qualquer outra mulher, acabavam peneirando milhares de homens em sites de relacionamentos hétero, buscando um único que não fosse horrível – uma tarefa que até as mulheres cis acham um pavor? E quantas vezes Reese havia ouvido falar dessas garotas que desperdiçavam horas, dias, semanas, meses, tentando encontrar um dos homens não horríveis, um dos que estariam dispostos a experimentar com uma mulher trans, só para enfim acabar no quarto dele, de pé, exposta, usando apenas uma merda de lingerie de renda como armadura, enquanto ele avaliava as proporções de quadris magros para ombros largos que ele nunca tinha visto, e aí murmurava nervoso que aquilo não era para ele?

De jeito nenhum. Essa merda é muito mais traumática do que se deparar com um travequeiro. Vá para um site de fetiches para homens que já sabem que querem uma garota trans e selecione um dos decentes dentre os muitos que imploram por você. Em questões do coração, Reese tinha uma única diretriz absoluta: você não escolhe com quem fode, escolhe entre os que querem foder você.

Produto

  • Destransição, Baby
  • Torrey Peters
  • Tordesilhas
  • 320 páginas

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