Coluna da Maria Ribeiro: Irmãos — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Irmãos

Na prévia do show de Caetano e Bethânia, o que mais me comoveu foi a relação: essa possibilidade de poder ser testemunha do caminho de alguém que é quase você, mas não é você

22 de Março de 2024

Quando a gente se encontra, é como se os verbos só existissem no presente. Também não tem “eu”, nem “tu”, e muito menos “eles”. Só existe uma coisa: nós dois e uma gramática única e absolutamente particular, como se em algum lugar fossemos indivisíveis. Nossa dupla é quase uma condição natural, mesmo quando sujeita às consequências do tempo. Que não para, já dizia Cazuza. O pacote da vida vem com letras miúdas desde o dia um.

Já estivemos muito perto, muito longe, muito tristes, muito juntos, muito sós, muito pouco, mas nunca indiferentes. Assinamos, à nossa revelia, documentos de “pra sempre” – mesmo quando não queríamos. E não quisemos algumas vezes. Mas acho que isso foi antes.

Me irritava profundamente seu jeito de sumir quando estava namorando (e talvez ainda me irrite). Sua mania de viajar e morar em outros países também já me doeu fundo. E sua devoção à vida acadêmica, bom, nunca vi alguém gostar tanto de livro e de silêncio. Talvez eu sentisse saudades, ou ciúmes, ou inveja — esses sentimentos de raiva que disfarço para não machucarem tanto. Como se adiantasse…
O fato é que essa semana você fez 59 anos e eu me dei conta de que te amo de um jeito que me faz chorar toda vez que me lembro de tudo o que você me deu. As músicas, os filmes, a companhia, o amparo, o estímulo, o colo, o mar, os cães, as crônicas, o violão.

Fui ver Caetano e Bethania e só lembrava da gente. Acho que quando eu amo — e desconfio que não seja só eu — amo, não só o objeto do meu amor, mas, principalmente, amo quem eu sou naquela combinação. Amo a dupla, o espelho, o casal.

Viva Caetano e Bethânia, você e eu, e todos os irmãos que têm a sorte de nascerem irmãos, mesmo já sendo

Você me salvou, Otávio. Primeiro porque atendeu aquela ligação no meio do Carnaval, quando fui deixada, dormindo, no apartamento do pai. Acordei passando mal e sem saber que estava sozinha. Hoje, olhando pra trás, acho que ali, aos nove, dez anos, tive minha primeira crise de pânico.

Depois viramos adultos; casamos e separamos (e casamos e separamos de novo, haha). E fizemos análise. E decidimos, meio que sem decidir, que nossa base de afeto ficaria no passado. Mas, quando fui mãe, foi você a quem chamei pra ser o técnico do meu filho. Pra mim, ser padrinho é meio isso, apontar caminhos.
Ser irmão eu não sei o que é. Temos onze anos de diferença, somos completamente diferentes, não fazemos planos de passarmos férias juntos, mas acho que somos meio Caetano e Bethânia.

Na prévia do show que eles farão juntos, e que vi na plateia do programa do Marcos Mion, o que mais me comoveu foi a relação: essa possibilidade de poder ser testemunha do caminho de alguém que é quase você, mas não é você.

Em um determinado momento, quando no telão do auditório do estúdio apareceu um vídeo antigo de Caetano cantando com Nicinha, os dois se entreolharam e me pareceram estar com a mesmíssima emoção. Imagine que privilégio!

A música era “Alguém Cantando”. “A voz de alguém nessa imensidão”, meu irmão, é a sua — a única com quem partilho, há 48 anos, casas, despedidas e discos de vinil.

Viva Caetano e Bethânia, você e eu, e todos os irmãos que têm a sorte de nascerem irmãos, mesmo já sendo.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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