Maria Ribeiro
Uma crônica-declaração
Minha amiga Martha Nowill está lançando seu diário e eu estou feliz como se fosse comigo
Quando a gente se conheceu, ela já era poeta. Quer dizer, ela era atriz, nós duas estávamos no mesmo filme, mas ela tinha um livro de poesia. Além disso, ela tinha um nécessaire enorme, e eu ficava impressionada com o fato de os cremes, os remédios e as maquiagens coexistirem de forma tão organizada.
Então quer dizer que pode? Ler Baudelaire e passar mal com vestidos? Gostar de aparecer (uma coisa “frívola”), e pensar na morte (uma coisa “profunda”)? Achar que nada faz sentido, e, dois minutos depois, planejar uma festa só pra usar um sapato?
Calma, Maria. Respira. Olha em volta. Pensa no nécessaire da Martha. Pode tudo. É só fazer análise. Ter bolsas com compartimentos. Envelhecer com humor. E, principalmente, saber escolher quem vai estar nas fotos com você (dica: pessoas que escrevem e entendem de cosméticos costumam oferecer benefícios duplos).
Quase tudo na vida é acaso, mas o que fazer com ele depende da gente. E dá medo
Essa é uma crônica-declaração. Minha amiga Martha Nowill está lançando seu diário e eu estou feliz como se fosse comigo. E como é bom poder comemorar o êxito de quem mora perto. De quem está ali, ao alcance do telefone (e da padaria da rua Maranhão — importante deixar isso claro).
Porque nem sempre a gente consegue. Somos bichos competitivos, invejosos, selvagens, precários, acomodados. E volta e meia esquecemos de mandar flores justamente para quem divide a mesa com a gente. Como se o lugar da cabeceira, para quem é próximo, fosse uma posição garantida. Spoiler: não é.
Outro dia eu li uma frase aparentemente lugar-comum que me bateu como se fosse uma viagem de trem (top five de lugares do tipo que jogam luz no meu cérebro). A frase — bem de post do Instagram — dizia que nossos amigos não são nossos amigos, e, sim, nossos amores.
Martha está colocando no mundo a história da sua gravidez. Uma gravidez — de gêmeos, e em plena pandemia — que eu tive a sorte de ver de camarote. Porque eu precisei mudar de cidade pra fazer uma peça. Porque não havia hotéis funcionando em São Paulo. E porque ela me ofereceu um quarto e uma barriga. Ainda não li o livro, que saiu nesta semana pela Companhia das Letras – mas conheço bem seus talentos e seus nécessaires.
Quase tudo na vida é acaso, mas o que fazer com ele depende da gente. E dá medo. Na hora de decidir ter filhos, de lutar por uma escolha, de expor um processo que é pra ser bonito, mas — that’s life — nem sempre é.
“Coisas importantes também serão esquecidas”.
Será?
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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