Mata Doce
Romance épico, delicado e poderoso de Luciany Aparecida entrelaça passado e presente em um vilarejo rural na Bahia
Este é o primeiro romance que a autora baiana Luciany Aparecida assina com seu próprio nome. Antes, ela publicou novelas com a “assinatura estética” Ruth Ducaso, uma escritora ficcional; além de poesia, como Margô Paraíso; e ilustrações como Antônio Peixôtro.
Por meio de uma prosa lírica, ela narra em “Mata Doce” (Alfaguara 2023) o drama de Maria Teresa, que vive com suas mães em um velho casarão cheio de lembranças de antepassados. A trama se forma com personagens como Lai, ex-prostituta e sua madrinha; os gêmeos Cícero e Antônio, filhos do dono da venda; Toni de Maximiliana, vaqueiro matador de gado, filho da sacerdotisa Mãe Maximiliana dos Santos; e Zezito, único filho homem de Luzia, e com quem Maria Teresa planeja se casar. Na véspera do casamento, porém, uma tragédia muda sua vida para sempre.
Ambientado em um pequeno vilarejo rural no interior da Bahia, o livro será lançado no dia 27, durante a Flica, a Feira Literária de Cachoeira, onde Luciany Aparecida participa de uma mesa que destaca a relevância de mulheres negras e indígenas na construção da história e que terá ainda a participação de Auritha Tabajara e Marilene Felinto, colunista da Gama.
Maria Teresa parou em frente ao boi vivo e arrancou sua careta. O animal perdeu seu sentido controlado de direção, mas não tinha mais como escapar. A mulher achava justo que a morte se apresentasse de frente. Quando ela encarava o boi, o sangue da vida ainda corria quente por baixo da sua carcaça.
Ambos entendiam a hora chegada. A vontade da mulher era dar vazão à sua mágoa. A vontade do animal, agora preso para o abate, um dia havia sido escapar. Mas a careta de couro que puseram nele, para o encaminhar com obediência até o abatedouro, o havia distraído dos seus sentidos de fera. Naquele ponto ela e ele tinham desejos, se entreolharam. Mas ela, dominante, tomou a direção do movimento e, com as costas do machado, acertou a primeira pancada na altura exata da cabeça que tombaria à sua dor. O boi tremeu. Outra porrada e a definitiva queda. Ele caiu sobre uma cama verde de folhas de bananeira, que havia sido feita para aquela cerimônia.
Em Mata Doce, matar boi era tradição de homem. Mas naquele alvorecer, Maria Teresa estreava uma nova tradição.
— A menina chegou.
— Maria Teresa?
— Sim, a filha das mulheres do lajedo.
— Deixa passar.
— Deixa?
— Deixa.
O orvalho daquela manhã umedecia o leito verde que recebia o peso do boi, aplainava em ondulosas curvas o ar que descansava sobre a queda. Maria Teresa respirou fundo. Pela primeira vez após o acontecido, a mulher conseguiu exalar o ar sem que a ponta das recordações a asfixiasse. O boi estava no chão. Toni de Maximiliana dos Santos, vaqueiro oficial daquele curral, disse:
— Agora é sangrar.
Maria Teresa enfiou a faca e puxou o corte da garganta até a papada. O sangue escorreu seu curso. A folha de bananeira fresca e orvalhada foi canteiro prestimoso para aquele infinito se esvair.
Nessas primeiras horas do retorno do giro do sol o brilho é de não tem jeito, a vida insiste. Aquela mulher enxergava os sombreados das curvas do tempo e por isso ela buscava se proteger das horas do meio do dia de sol a pino. Horário que o branco das injustiças faz mulher de visão perder o tino e correr desvairada. Mas Maria Teresa não correu, não. Maria Teresa ficou para matar bois.
— Quem tá no curral hoje?
— É Filinha.
— Quem?
— Maria Teresa, filha das mulheres do lajedo.
— O quê?
O vaqueiro nem pôde seguir com a resposta, o coronel Gerônimo Amâncio viu a menina sair do curral com um avental branco e a faca toda ensanguentada.
— Bom dia. Não sabia que a menina estava matando boi na minha propriedade.
— Estou.
— Com ordem de quem?
— Olhe a matança que eu fiz e depois volte pra implorar que eu siga meu serviço.
Maria Teresa, que agora era Filinha Mata-Boi, respondeu ao fazendeiro e seguiu caminho para o lajedo. No curral o boi já não era nem lembrança. As partes da carne, os cortes do couro tinham a precisão de uma máquina. Lai já havia recolhido os fatos e junto com Venâncio faziam a limpeza das partes na beira do rio.
— Quem aprontou essa pilhéria? — gritou o coronel Amâncio do meio do curral, duvidando que aquela menina, cria das mulheres das ruínas do lajedo, pudesse dar conta de nada.
— Foi Filinha, Maria Teresa, filha das mulheres do lajedo, seu Amâncio — repetiu Toni.
Amâncio arregalava o olho. Maria Teresa ria. Seguia no caminho de volta ao casarão com a faca exposta. O sangue finalmente secando. Ela rindo do desejado assombro que, sabia, começava a provocar. Seria a matadora de boi oficial daquelas terras.
Aquela disposição inquietou Gerônimo Amâncio, homem alvo, herdeiro de terras e medroso de futuro. O que seus ancestrais sempre lhe ensinaram foi que água se represa, terra se incendeia, árvore é para o corte, flor se arranca e gente se derruba na unha. Com fé no merecimento próprio, Gerônimo seguia a cartilha de sua linhagem familiar.
A presença inesperada daquela mulher no seu curral tocou na sua vaidade, que vinha magoada havia anos pelo desaparecimento do seu único filho homem. Filhas mulheres o coronel não contava como crias. Seu pesar se refletia naquela Mata-Boi, pois havia sido a mãe dela, a professora Mariinha, que um dia o chamou na estrada e lhe disse que havia visto, em sonho, que o menino dele morreria. E morreu. Tinha oito anos e foi levado pelas águas. A represa pocou e a água enxotou sua cria. Não teve jeito. O povo de Mata Doce foi lamentar a desaparição da pobre criatura.
A professora Mariinha pouco sonhava, naquela vez ela parou o carro do coronel e lhe deu esse alerta porque recebeu essa incumbência de seus Orixás. Com o passar dos acontecimentos da vida a professora compreendeu que essa intuição havia sido intriga do tempo.
Debaixo do que restava do roseiral, ela esperava o retorno da filha. O dia já estava de tudo amanhecido. O roseiral poderia até sonhar em reflorescer.
Um brilho apontou lá na subida do lajedo. Era ela. Sua menina.
— Maria Teresa! — Mariinha gritou e Tuninha surgiu na porta.
— Filinha! — Tuninha também chamava pela filha.
— Uh! — A menina respondeu ao longe.
As mães choraram. Era a primeira vez, após o dia daquele forte acontecimento, que a menina falava. Mariinha viu a faca na mão da filha.
— Ela matou Gerônimo Amâncio! — a mãe expressou alto o desejo.
Tuninha botou a mão na cabeça. As duas se deram as mãos e ficaram no peitoril do casarão esperando a chegada da filha. A menina se aproximou. Usava um avental branco de corpo inteiro. A vestimenta estava grudada de sangue seco. No contraste do vermelho no branco a imagem da filha não lhes era estranha. Mas agora uma faca se acendia por entre as manchas do sangue. Maria Teresa sorria. Chegou. Subiu no peitoril e se virou para o lajedo. Parou. Descansou e após uma pausa disse:
— Agora sou Filinha Mata-Boi.
- Mata Doce
- Luciany Aparecida
- Companhia das Letras
- 304 páginas
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Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)