Coluna do Marcelo Knobel: Estude comigo — Gama Revista
COLUNA

Marcelo Knobel

Estude comigo

O tão desejado engajamento pode ocorrer de maneira inusitada, inclusive com uma sessão de estudo realmente concentrado no qual a tela exibe um canal do YouTube

11 de Outubro de 2023

Não é de hoje que a Coreia do Sul tem exercido uma forte influência na cultura pop internacional. Um novo fenômeno tem se alastrado com muita velocidade, principalmente a partir da pandemia. Trata-se do “gongbang”, em que estudantes youtubers transmitem sessões de estudo solitário que podem durar até 12 horas.

O termo é a combinação das palavras gongbu e bangsong, cuja tradução seria “transmissão de estudo”. Os vídeos têm diversos formatos, com alguns mostrando apenas a folha de papel e a mão, ou também o rosto do estudante ou a tela do computador. Quase todos incluem as pausas típicas da técnica pomodoro, que alterna períodos de estudo e descanso muito bem cronometrados.

Os estudantes leem, tomam notas e fazem exercícios, às vezes em silêncio, quando se ouve apenas o som do lápis riscando a folha, da borracha, de páginas sendo viradas e algum som vindo do outro lado da porta. Outras vezes há um som de fundo para o estudo, como algum ruído branco ou uma música. Se você fizer uma pesquisa rápida no YouTube com os termos “estude comigo” (study with me) ou gongbang, encontrará milhares de canais pelo mundo, alguns com milhões de inscritos.

Aparentemente os primeiros canais surgiram na Coreia do Sul em 2018, ninguém sabe o porquê. Lá os estudantes costumam ficar muitas horas estudando, talvez alguns quisessem simplesmente mostrar aos pais que estavam estudando ou ainda usar o canal como uma ferramenta de automotivação, pois alguém poderia estar olhando. O fato é que a moda pegou, e milhões de estudantes ao redor do mundo seguem esses canais. Há até spin-offs dessa tendência, como a popular menininha do Lofi, do canal Lofi Girl, que tem mais de 10 milhões de inscritos. Para quem não sabe, trata-se de um vídeo simples em loop de um desenho animado de uma menina (em estilo anime) estudando ao som de uma trilha sonora. O canal (que recentemente foi tirado do ar em meio a uma polêmica de direitos autorais) tem números impressionantes: em torno de 800 milhões de visualizações que totalizam mais de 21 mil horas.

Temos que estar mais atentos à geração que nasceu digital e usa as ferramentas de modos que para nós parecem, no mínimo, curiosos

Para os pais e educadores, fica um alerta. Temos que estar mais atentos às demandas e necessidades de uma geração que nasceu digital e usa as ferramentas disponíveis de modos que para nós (que presenciamos espantados o surgimento da internet) parecem, no mínimo, curiosos. O tão desejado engajamento com o estudo pode ocorrer de maneira inusitada, inclusive com uma sessão de estudo realmente concentrado no qual a tela exibe um canal do YouTube.

Para algumas gerações mais antigas, esse fenômeno pode ser incompreensível. Por que alguém ficaria horas conectado em um conteúdo que parece incrivelmente chato? Aparentemente os usuários se sentem parte de uma comunidade, que atua como um grupo de estudo virtual. Sejam motivados pela sensação de companheirismo ou pela rivalidade, os estudantes sentem que estudam melhor, e se tornam usuários. De fato, esse parece ser o equivalente atual (e possível) aos grupos de estudo. Quando era estudante de Física, os professores passavam listas infinitas de exercícios, e nos reuníamos entre amigos para resolvê-las, muitas vezes varando a madrugada. Às vezes alguém vinha com alguma ideia genial, algum truque matemático para resolver um problema, naqueles tempos pré-internet. Mas acho que o mais importante mesmo era ter mais gente próxima para compartilhar o desafio, para nos apoiar mutuamente e resistirmos à tentação do travesseiro fofinho que estava ali chamando.

Marcelo Knobel Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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