Trinta Segundos Sem Pensar no Medo
De leitor para leitor, Pedro Pacífico, mais conhecido como o influencer Bookster, estreia na escrita com volume de memórias literárias
Um dos nomes mais conhecidos entre os influencers literários, Pedro Pacífico — ou melhor, o Bookster — ainda causa surpresa em muita gente ao revelar que, no ambiente doméstico, ninguém além dele tinha o hábito de ler livros. “Quando conto como a leitura era ausente em casa, meus pais sentem um incômodo, como se tivessem feito algo errado”, conta o leitor, advogado e viajante nas horas vagas — como Pedro se apresenta em seu perfil no Instagram, onde reúne mais de 440 mil seguidores. Embora não ache que têm culpa de nada, até porque ele acabou encontrando seu caminho para a leitura de qualquer forma, considera que ter pais que leem é a forma mais garantida de criar filhos também leitores.
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A lembrança é apenas uma das muitas revelações que Pedro faz ao longo de “Trinta Segundos Sem Pensar no Medo” (Intrínseca, 2023), sua estreia do outro lado dessa equação literária, no papel de escritor. Ao longo do volume, ele vai embaralhando reflexões e memórias pessoais, a grande maioria delas focadas no impacto dos livros para a construção de sua identidade. E aproveita para demonstrar como o hábito de ler livros pode ser uma forma eficaz de lidar com problemas como a ansiedade ou a dependência da internet.
Entre essas lembranças, revela ainda que a maior inspiração para que Pedro se tornasse o Bookster veio das avós que, na infância, ele acreditava serem “as maiores leitoras do mundo”. Permeado por referências que vão de George Orwell a Gabriel García Márquez, o autor vai desfiando curiosidades sobre sua vida, numa existência em que a leitura foi crucial para lidar com as pressões internas e externas relacionadas à sua trajetória profissional e até à descoberta da sexualidade. A jornada de um leitor que passa agora às mãos de incontáveis outros Brasil afora.
Você já se perguntou quais são suas primeiras lembranças com livros? Tente voltar no tempo o máximo que puder, até recordar dos seus primeiros contatos com um livro ainda na infância. Pode ser uma memória afetiva de uma estante, de uma biblioteca, ou de alguém contando uma história para você.
Minha primeira lembrança relacionada a leituras já é como leitor. Sei que não podemos confiar tanto nas nossas memórias, já que elas se ajustam conforme nossa conveniência e criatividade, mas o que me vem à cabeça sou eu aos seis anos, sentado em uma miniescrivaninha colorida, diante de um livro. Recordo ainda hoje da dificuldade para conseguir montar os sons das sílabas, então imagino que estivesse aprendendo a ler. Era um livro de capa vermelha, com poucas páginas. Cada uma delas tinha frases breves na parte inferior, quase escondidas pelas ilustrações de insetos. Sim, era um livro sobre insetos (não sei se sobre outros animais também, não me lembro). Gosto muito de animais desde criança. Eu andava pelo quintal de casa e pela rua com pequenos potes de plástico, catando os insetos que encontrava. Cheguei a fazer uma expedição a um terreno baldio com meu pai, à procura de animais mais assustadores. Apesar da preparação e do entusiasmo, voltamos de mãos vazias. Tinha uma prateleira no quarto repleta deles. Talvez por isso justamente o livro de insetos tenha marcado minha memória. Em uma das páginas, me lembro bem, havia formigas andando em fila — talvez em uma cozinha —, indo atrás de algo açucarado. Até cheguei a procurar o livro na internet para guardar de recordação, mas não encontrei. Talvez nossa memória seja realmente mais inventiva do que a gente imagina.
A lembrança de algumas pessoas com os primeiros livros pode estar relacionada à mãe ou ao pai lendo uma história. Não recordo se meus pais liam com frequência para mim, mas uma memória muito viva é a do meu pai contando histórias que ele mesmo inventava antes de eu dormir. E ele sempre dava um jeito de me colocar, junto com meus amigos, como personagem principal dessas aventuras, e eu sempre era o herói que salvava alguém ou derrotava o inimigo. Para os pais, os filhos têm superpoderes, da mesma forma que muitos filhos enxergam os pais como heróis. O tempo, no entanto, desconstrói a imagem que temos deles, como quando os vemos chorar pela primeira vez, em algum acesso de raiva ou angustiados por não saberem como lidar com um problema. Mas, àquela época, meu pai ainda vestia a capa de herói infalível e tinha o respaldo para contar qualquer história.
Àquela época, meu pai ainda vestia a capa de herói infalível e tinha o respaldo para contar qualquer história
Assim como não me lembro de ouvir meus pais lendo histórias para mim, tampouco me recordo de vê-los sempre com livros nas mãos. Não nasci em uma família com essa paixão — ou, talvez, com esse hábito. Sou o filho mais novo de três. Assim como meus pais, minhas duas irmãs não costumavam ler. É comum que alguém que saiba da minha paixão pelos livros imagine que vim de uma família de leitores ávidos. Quando conto como a leitura era ausente em casa, meus pais sentem um incômodo, como se tivessem feito algo errado. Não os culpo, até porque isso não me impediu de me tornar um leitor, ainda que eu tenha sentido falta de referências quando precisava buscar o que ler. Mas é inegável que pais leitores têm muito mais chance de criar filhos leitores.
Então fica a pergunta: de onde veio o meu gosto por livros? Será que é algo que nasce com a gente e faz parte da nossa personalidade? Ou será que acabei sendo influenciado na escola, por professores que assumem a difícil tarefa de convencer crianças de que ler pode ser divertido?
Ao ir atrás de mais memórias relacionadas a livros, outras pessoas acabam se destacando: minhas duas avós. Elas eram verdadeiras devoradoras de livros. O fato de, em diferentes momentos, elas estarem com livros nas mãos, ou de sempre haver uma pequena pilha em suas mesinhas de cabeceira, fez com que eu as considerasse as maiores leitoras do mundo! Assim como crianças tendem a heroicizar — que palavra linda! — os pais, os avós ganham uma aura mística, de grandes sábios. Pessoas que viveram tantos anos e que sabem um pouco de tudo. Aos meus olhos infantis, minhas avós tinham lido quase tudo, o que despertava minha admiração e curiosidade.
Para uma criança que lia livros bem fininhos, recheados de ilustrações, um livro só de letras com mais de cem páginas era um calhamaço inalcançável, e lembro de perguntar para minhas avós qual era a história por dentro daquelas páginas cada vez que as via com um livro diferente nas mãos. A resposta que elas me davam nem sempre me agradava: “É coisa de adulto.”
Nunca vou me esquecer de um livro que vi minha avó paterna lendo em uma viagem que fizemos para um dos destinos mais diferentes que já visitei: Alasca.
De onde veio o meu gosto por livros? Será que é algo que nasce com a gente e faz parte da nossa personalidade?
Durante a viagem, minha avó ficou agarrada a um determinado livro. Já no primeiro dia, comecei a tentar identificar aquela obra. A capa era branca e as letras do título, alaranjadas e finas, com a imagem de um senhor de terno e cabelo branco de costas. Fiz um grande esforço para ler o título de longe, mas não consegui. Lembro que estávamos tomando café, quando me aproximei, sentei ao lado da minha avó e me debrucei na mesa para ver a capa inteira.
Tomei um susto! O nome do livro não fazia sentido para mim. Como minha avó podia estar lendo aquilo em público? E logo outra curiosidade tomou conta dos meus pensamentos: o que um escritor poderia querer contar em… Memórias de minhas putas tristes?
A minha cara de espanto chamou a atenção da minha avó, que olhou para a capa do livro e então entendeu o motivo da minha reação. De início, ela não falou nada, só deu uma risada. Depois me explicou que tinha acabado de começar a leitura, mas que o título não era o que eu estava imaginando. “Adoro os livros desse autor, Gabriel García Márquez. Você ainda vai ouvir falar muito dele. São livros belííííssimos” — ela normalmente fala com essa empolgação, mexendo no cabelo ondulado com uma das mãos e fazendo gestos com o outro braço, cheio de pulseiras.
Minha avó estava certa: ainda ouviria muito aquele nome. O que ela não imaginou é que eu não só ouviria, mas também falaria com frequência sobre o autor. Mais de uma década depois, Gabriel García Márquez, ou Gabo para os íntimos como eu, passaria a ser um dos meus escritores favoritos, além do nome do meu gato vira-lata resgatado das ruas. Inclusive, quando é para dar bronca naquele mini-humano de pelos cinza, faço questão de chamá-lo pelo nome completo: “Gabriel García Márquez, chega de aprontar!”
Gabo, o escritor, nasceu em 6 de março de 1927, escreveu mais de trinta livros — entre eles Cem anos de solidão, Amor nos tempos de cólera, Do amor e outros demônios —, foi vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1982 e nos deixou em 17 de abril de 2014. Um mestre em contar histórias, o que percebi pela forma como seus livros me prendiam, mesmo sem trazer cenários de suspense, assassinatos ou mistérios. Gabo afirmava ter sido bastante influenciado pelos avós, que lhe contavam histórias durante a infância. Da mesma forma que meu pai fazia comigo, os avós de Gabo criavam histórias com base em suas memórias — outra forma de conectar pessoas por meio de narrativas. Segundo Gabo, muito da sua forma de escrever foi inspirada nessas lembranças com seus avós, e, assim como ele, tive a alegria de guardar belííííssimas memórias dos meus avós.
Da mesma forma que meu pai fazia comigo, os avós de Gabo criavam histórias com base em suas memórias
A imagem que eu tinha das minhas avós serem as maiores leitoras do mundo começou a se desfazer quando, no início do ensino médio, perguntei para a minha avó materna o que ela achava de A revolução dos bichos. Era um dos primeiros livros “adultos” que eu lia e estava um pouco receoso. Eu tinha certeza de que minha avó conheceria. Lembro de estar deitado em seu colo depois de um almoço de domingo. Ela, com seu inseparável amigo cigarro em uma das mãos, enquanto acariciava meus cachos com a outra, um gesto afetuoso que acontecia sempre que nos encontrávamos. Foi uma surpresa quando ela respondeu que nunca havia lido. Até interrompi o cafuné e me sentei ao seu lado para conferir se estava falando a verdade. Ainda que hoje eu saiba que minhas avós não são as maiores leitoras do mundo, como imaginava na época, fico muito feliz que elas tenham cultivado o hábito da leitura e transmitido essa paixão para mim. Hoje são elas que me pedem indicações de boas leituras e amo ser o maior leitor do mundo para elas.
- Trinta Segundos Sem Pensar no Medo
- Pedro Pacífico (Bookster)
- Intrínseca
- 192 páginas
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