CV: Clayton Nascimento — Gama Revista
Curriculum Vitae

CV: Clayton Nascimento

Ganhador dos prêmios Shell e APCA por peça sobre racismo estrutural no Brasil, o ator, dramaturgo e professor está na novela “Fuzuê”, que estreia nesta semana na Globo

Leonardo Neiva 17 de Agosto de 2023
Bob Sousa

“Que esse prêmio chegue à casa de cada preto pobre da periferia, e ele veja que é possível sonhar.” Com a frase, o ator, dramaturgo e professor Clayton Nascimento, 34, celebrou em março seu primeiro Prêmio Shell, um dos mais importantes do teatro nacional, pela atuação na peça “Macacos” — que também escreveu e dirigiu. Sobre o palco, Nascimento viveu um homem negro que busca na história do Brasil respostas para o racismo que vivencia em seu cotidiano.

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Foi após acompanhar os xingamentos racistas proferidos contra o então goleiro do Santos, Aranha, repetidamente chamado de macaco por torcedores do Grêmio em 2014, que o dramaturgo se lançou numa intensa pesquisa sobre as origens históricas do termo e do racismo estrutural no Brasil, enquanto cursava educomunicação na Universidade de São Paulo.

Outro episódio que deixou marcas profundas foram as acusações racistas, seguidas de agressão e roubo, que sofreu em plena avenida Paulista no ano de 2018. “A coisa era tão estrutural que as pessoas acreditavam que eu era o ladrão. Diante de todos, fui espancado e roubado”, conta Nascimento em entrevista a Gama. O caso e as descobertas que fez durante sete anos de pesquisa tiveram grande influência no texto da peça “Macacos”, ovacionada por público e crítica pela forma como aborda o racismo estrutural no país e ganhadora também do troféu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) na categoria de interpretação.

Filho de pais piauienses e criado na periferia de São Paulo, Nascimento sequer imaginava na juventude passada nos anos 1990 que era possível viver de dramaturgia no Brasil. Na época, suas principais referências artísticas vinham das telenovelas que assistia ao lado da mãe. “Neusa Borges, Zezé Motta, Glória Pires, Antônio e Camila Pitanga, Adriana Esteves. São atores que me dão vontade de atuar porque interpretam com prazer.”

Hoje ele vive uma rotina intensa de gravações da próxima novela da faixa das 19h na Globo, “Fuzuê”, que estreia na segunda-feira (14). Nela, o ator interpreta um personagem que, coincidência ou não, é também um noveleiro de mão cheia: o costureiro Caíto Figueroa Roitman — que carrega no sobrenome referências a grandes vilãs de “Rainha da Sucata” (1990) e “Vale Tudo” (1988).

Embora soubesse de cor os nomes e histórias de vida de boa parte das grandes atrizes da TV e tenha sido a responsável por introduzi-lo ao teatro, foi com preocupação pelo futuro do filho que Maria do Carmo recebeu a notícia de que Nascimento pretendia seguir carreira como ator e professor. Vítima da covid-19 em 2020, ela não chegou a acompanhar seu maior sucesso nos palcos.

“É muito especial que, três anos após o falecimento da minha mãe, eu esteja vivendo meu primeiro personagem numa novela. E que seja um noveleiro”, diz o ator, que dedica a primeira participação na TV não só à mãe, mas também ao povo brasileiro, “que se diverte com novelas”.

Na entrevista abaixo, Nascimento aponta a presença do racismo e destaca a importância do estudo na formação do ator, assim como a diferença que o apoio dos pais fez em sua carreira. “Tive pais que me apoiaram, que acreditaram em mim, me levaram ao teatro. Tenho certeza de que esse afeto me ajudou a chegar aonde cheguei.”

Foi uma saga de sete anos de estudos na USP para descobrir as origens do xingamento de ‘macaco’

Mariana Ricci
  • G |Você sempre quis ser ator e dramaturgo?

    Clayton Nascimento |

    Eu nem sabia que isso era possível no Brasil. Venho do Jabaquara, na periferia sul de São Paulo. Cresci nos anos 1990 num bairro em que vi muito tiroteio. Vários amigos da minha rua entraram para o tráfico e foram presos. Preocupada com isso, minha mãe foi atrás de uma possibilidade de cuidado. Ela era manicure e, conversando com uma cliente, descobriu o teatro. Cheguei à Casa do Teatro aos oito anos e saí um ator formado aos 23, com 15 anos de bolsa. Ali descobri que gostaria de ser ator, escrever histórias. Fiz 23 anos sabendo quem era Molière, Pirandello, Consuelo de Castro, Plínio Marcos, Carolina Maria de Jesus, nomes da dramaturgia que me fizeram sonhar e colocar esses sonhos no papel. Aí me tornei ator, dramaturgo e diretor.

  • G |Você conta que sua mãe ficou super preocupada quando soube que queria seguir carreira de ator. Ainda é uma jornada complicada, especialmente para atores negros ou que vêm da periferia?

    CN |

    São algumas fases que vivi para poder me chamar artista. Primeiro, a escola. Escolas particulares são caras, e as públicas são extremamente concorridas e seletivas. Depois que entra, tem a manutenção do curso: livros, transporte, alimentação. Aí inicia uma jornada dupla. Trabalha de manhã e sai para o curso à tarde ou à noite. Já cheguei a fazer jornada tripla, trabalhando na madrugada de caixa de balada para ter algum dinheiro. Depois, você se forma e começa a movimentação: para onde vou, que lugares acolhem o meu corpo, minha dramaturgia? Tenho a sensação de que muitos personagens são destinados a alguns tipos de corpos, e outros não. É a fase de provar que você tem qualidade para desenvolver essas interpretações, personagens mais complexos, com nome e sobrenome. Não só a doméstica, o jardineiro, a babá. São personagens que sonham, têm objetivos e história própria. É uma saga conseguir dizer que você é artista no Brasil e sobrevive disso. Não à toa, escolhi ser ator, diretor, dramaturgo e professor. Arte e educação, áreas que precisam de bastante atenção no Brasil e geraram tanta preocupação na minha mãe. Mas ela nunca me negou afeto, acolhimento, andar de mãos dadas comigo nessa caminhada.

  • G |O ambiente do entretenimento e da dramaturgia é impactado pelo racismo? Como você lida com isso?

    CN |

    O racismo está presente nas raízes do nosso país. Por consequência, as escolas de formação cênica não ficam fora disso. Você precisa trabalhar algumas vezes mais para alcançar o respeito e o acolhimento dos professores. Eles não admitem atraso por você estar vindo do trabalho. Quando veem corpos como o meu, muito provavelmente advindos da Lei de Cotas, precisa-se provar muito no cotidiano. Aí você quer trazer um pouco do seu dia a dia para compor sua formação, o que nem sempre é bem-vindo. Se tem vontade de levar um poeta marginal à sala de aula, o interesse é só em estudar os cânones europeus. Nem sempre nossa narrativa periférica é aceita. Desconfio que, para além de colocar corpos pretos em cursos concorridíssimos, é preciso mantê-los na escola, numa bolsa de permanência e num acolhimento efetivo dos professores, com respeito, afeto e qualidade de ensino.

  • G |O que te levou a escrever a peça “Macacos”?

    CN |

    Levei sete anos para compor. Ela começou como uma cena de 15 minutos sobre divas pretas. Fui olhar para mulheres como a diva do jazz Bessie Smith e Elza Soares. Elza foi muito aclamada, mas passou por dificuldades financeiras e foi vista como uma ameaça à família tradicional. Notei um padrão de tratamento aos artistas negros. Quando fazem sua arte, são reverenciados, mas depois voltam a ser refutados pela própria sociedade. Decidi escrever sobre esse padrão. Aí chego em casa, ligo a TV e vejo o goleiro Aranha sendo xingado de macaco pela torcida do Grêmio. Então comecei uma saga de sete anos de estudos na USP para descobrir as origens desse xingamento. Foi uma navegação longa e profunda em que, quanto mais eu estudava, mais percebia que tinha que estudar. O xingamento vem desde quando os franceses tentaram colonizar o Brasil. Com a Corte portuguesa, começou um show de horrores, uma caça aos quilombos. Levaram crianças negras e indígenas aprisionadas à Europa, e o xingamento se repetia lá. Estudei saneamento básico, educação e segurança pública no Brasil. Até que me vi numa sala de 20 alunos na USP, e eu era o único negro. Quantos como eu teriam essa chance? Precisava transformar isso em teatro.

  • G |Você chegou a sofrer também um ataque racista nesse período…

    CN |

    Em 2018, parado num ponto de ônibus da Paulista, um casal branco me acusou de ter roubado o mercadinho deles. Pedi ajuda, mas ninguém me ajudou. A coisa era tão estrutural que as pessoas acreditavam que eu era o ladrão. Diante de todos, fui espancado e roubado, um assalto racista na maior avenida da América Latina. De 2018 a 2022, me dediquei a terminar essa dramaturgia a partir de episódios da história brasileira que não apareciam nos livros didáticos. A obra estreou em julho de 2022.

Bob Sousa

Foi quando olhei para o cotidiano do meu povo que vi potência artística, criativa e fui reconhecido por isso

  • G |Por que acha que a abordagem da peça sobre racismo estrutural teve um impacto e uma resposta tão grande?

    CN |

    Sinceramente não sei. Costumo dizer brincando que gostaria de assistir à peça “Macacos”. Queria ter a navegação emocional, artística e sensível que o público tem. Desconfio que seja uma peça política sem grandes partidarismos, um compromisso e um estudo sério da história brasileira. Vejo uma reação popular a muitas informações que trago no espetáculo. É um caráter pedagógico que a peça produz, que mexe com as pessoas. Falo, por exemplo, que o hino da República tem um trecho negando abertamente 378 anos de escravidão, mas o povo brasileiro não sabe disso. Então ela traz informações sobre nós mesmos que impactam o público.

  • G |E qual a relevância de receber prêmios como o Shell e o APCA já nessa fase da sua carreira?

    CN |

    Nunca pensei em ter um Shell. Quando falava do prêmio, me imaginava com 50 anos no palco entregando o prêmio para outra pessoa. De repente, me vi aos 33 recebendo das mãos da Marisa Orth. Antes, ela falou a lista dos atores já premiados: Raul Cortez, Paulo Autran, Milton Gonçalves, Luís Miranda. E, de repente, eu ali. Fiquei tão nervoso naquela noite. O que me move é saber que aquele cara é preto, que levou arte e educação aos palcos. Que escreveu uma peça sozinho, num quarto de 1,5 m x 1,5 m da USP, tocando num assunto espinhoso como racismo e recebendo acolhimento popular em temporadas lotadas que, há um ano e meio, venho encontrando Brasil afora. A partir da caminhada da obra, comecei a ter muito acolhimento de artistas que estudei e admiro. Isso possibilita desenvolver com mais segurança e tranquilidade a minha arte.

  • G |Agora você vai interpretar um personagem na novela “Fuzuê”, seu primeiro papel na TV. Como está sendo essa experiência?

    CN |

    Está sendo muito bonito, gostoso e interessante. É uma outra linguagem. No “Macacos”, falo bastante do prazer do aprendizado. É o que estou vivendo agora, aprendendo como se joga o jogo da interpretação e da criação para a TV. Ao mesmo tempo, é uma alegria imensa que um corpo como o meu possa estar numa novela tão colorida, brasileira e popular, feita para quem gosta de novela, e interpretando um noveleiro raiz. Caíto Figueroa Roitman, um personagem que tem nome e sobrenome, o sobrenome de duas grandes vilãs da TV brasileira. Diferentemente da minha pesquisa profunda sobre o racismo e a colonização, o Caíto é leve, um sonhador em busca de conquistas. Sobretudo uma pessoa de bem com a vida, à procura dele mesmo com alegria no coração. É muito especial para um ator sair de uma obra com um olhar tão interiorizado para encontrar um Caíto.

  • G |Quais os principais desafios de trabalhar como ator no Brasil hoje?

    CN |

    É um meio muito concorrido que precisa de pessoas que estudem. Li outro dia uma fala da Laura Cardoso a partir de uma frase da Marília Pêra, em que ambas refletiam sobre parte dos atores brasileiros que não gostam de estudar, ler, escrever e emitir opiniões. Então é um meio competitivo, com uma formação que muitas vezes deixa a desejar e um padrão em que apenas alguns corpos podem interpretar certos personagens. Isso cria um funil nas artes dramáticas brasileiras. Não basta entrar, você tem que descobrir se consegue chegar até o final. Vai espremendo, limitando, minando tanto que precisa ter muitas ferramentas dentro da sua mala de artista para conseguir se construir, mostrar seu trabalho com a excelência do estudo.

  • G |Que conselho você daria a um jovem que queira trilhar um caminho parecido com o seu?

    CN |

    Estude, estude, estude. Leia tudo que aparecer nas suas mãos, nem que seja um panfleto de semáforo. Vá ao teatro, veja peças que você julgue boas e ruins. Seja aliado dos seus professores. Escreva. Esteja inteirado da história do seu povo. Levei anos querendo interpretar autores europeus e norte-americanos. Tive a alegria de atuar com a Royal Shakespeare Company quando eles vieram ao Brasil, mas foi quando olhei para o cotidiano do meu povo que vi potência artística, criativa e fui reconhecido por isso. Então conheça sua história, a história da sua família, da sua cidade, da sua nação. Veja beleza e poesia nisso, e não deixe de criar. Tenha a tranquilidade de que o fracasso faz parte da formação artística no Brasil. Estou caminhando sozinho há sete anos. No sétimo ano, a peça deu certo. Então não tenha medo dos percalços. É físico, onde você bota força de ação há uma reação. Portanto, trabalhe e estude. Só no dicionário o talento vem antes do trabalho.

  • G |Daqui para frente, pretende continuar na TV ou fazer mais teatro? Quais são os seus próximos passos profissionais?

    CN |

    A atuação foi minha primeira base de estudos. Estudando interpretação, descobri que também gostaria de dirigir, escrever, preparar atores e dar aulas. Tenho vontade de interpretar muitos papéis ainda, mas estou com três dramaturgias na cabeça e preciso de um tempinho para materializá-las. Em uma delas quero estar em cena, a outra pretendo dirigir. Estou a fim de fazer meu primeiro roteiro de cinema também. Quero beber muita água e dormir bem para aproveitar minha vida, porque tenho muito para criar ainda.

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