Lei de Cotas: quais os próximos passos para a inclusão? — Gama Revista

Lei de Cotas: quais os próximos passos para a inclusão?

Responsável por um maior acesso de pessoas de baixa renda, negros e indígenas ao ensino superior, lei de 2012 precisa ser ampliada para contemplar cenário atual

Amauri Arrais 18 de Outubro de 2022

Considerada por muitos especialistas como a mais bem sucedida política pública de enfrentamento ao racismo e de promoção da igualdade já adotada pelo Estado brasileiro, a Lei de Cotas completa dez anos neste ano como um instrumento de acesso que mudou a face das universidades públicas no país, mas também com o desafio de ser revisada e atualizada para abarcar uma nova realidade.

A Lei 12.771, de 2012, garante que metade das vagas de universidades e institutos federais seja reservada para ex-alunos da rede pública. Deste total, 50% devem ser destinadas a estudantes de baixa renda e uma fatia proporcional à população de cada Estado a pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. O texto também determina que a política passe por uma revisão em dez anos, prazo completado em agosto, embora o debate venha sendo adiado pelo Congresso Nacional.

Mas o que significa revisar a lei? Ela pode ser modificada? Universidades que atualmente adotam o sistema de cotas para ingresso podem deixar de oferecer? Especialistas ouvidos pela Gama não acreditam que a política afirmativa, que nesse período foi aprovada por boa parte da população, possa ser revogada, mas também apontam a necessidade de ajustes.

“É um passo importante, mas ainda pequeno diante de todos os direitos que foram violados ao longo da história do povo negro no Brasil e da imensa dívida que o Estado e a sociedade brasileira têm”, diz a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz, do Ministério Público Estadual da Bahia, que lançou neste ano, pela Coleção Feminismos Plurais, “Cotas Raciais” (Ed. Jandaíra, 2022).

Origem da lei

Embora a promulgação da legislação tenha uma década, ela lembra que a mobilização por maior democratização nas universidades públicas tem 20 anos, com adoção pela Uneb (Universidade Estadual da Bahia) de cotas raciais em seus quadros ainda em 2002, implementadas pela primeira reitora negra da instituição, Ivete Alves do Sacramento. “É dos movimentos negros, muito mais do que de partidos políticos ou do judiciário, a luta por mais igualdade no nosso país.”

É dos movimentos negros, muito mais do que de partidos políticos ou do judiciário, a luta por mais igualdade no nosso país

Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira federal a implantar a reserva de vagas para negros. Até 2012, pelo menos 70 universidades estaduais e federais já haviam adotado alguma ação afirmativa. Coube à Lei de Cotas transformar a experiência que havia se espalhado pelo país em uma política com um padrão único.

O que mudou nas universidades?

A implementação foi gradual: institutos e universidades federais tiveram de 2012 a 2016 para chegar aos 50% de vagas reservadas para ações afirmativas. Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), Adriano Senkevics estudou quais foram as mudanças nos perfis dos alunos das universidades nesse período.

Junto com a também pesquisadora Ursula Mello, ele cruzou os dados do Censo da Educação e do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e descobriu que a proporção de pretos, pardos e indígenas egressos do ensino público nas instituições federais de ensino superior teve um salto no período de implantação da lei.

Em 2012, antes de a lei entrar em vigor, 55% dos estudantes das instituições federais eram ex-alunos do ensino médio público. Quatro anos depois, esse número já era de 64%. O estudo mostra ainda que o grupo mais beneficiado pela política foram os pretos, pardos e indígenas da rede pública, que cresceram dez pontos percentuais no período, de 28% para 38%.

“É muito interessante perceber que esses efeitos foram muito positivos sobretudo nas instituições de ensino superior com patamares mais baixos de inclusão social”, diz Senkevics. “Estamos falando das instituições mais prestigiadas dos seus respectivos estados, como a Universidade Federal do Ceará, por exemplo, de Santa Catarina, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais. Quando a Lei de Cotas veio, elas foram drasticamente transformadas.”

Outro dado observado no estudo é que cursos historicamente menos inclusivos, como medicina e direito, foram os que mais avançaram depois das cotas, embora a desigualdade ainda persista. O mesmo não aconteceu com cursos com concorrência menor de acesso, como pedagogia e serviço social.

Com as cotas, você gera mais incentivos, porque aquela pessoa que não arriscaria um curso que ela não teria chance de passar começa a arriscar

“Com as cotas, você gera mais incentivos, porque aquela pessoa que não arriscaria um curso que ela não teria chance de passar começa a arriscar, há uma certa substituição de escolha”, explica o pesquisador. “Isso é muito visível, por exemplo, na Federal de São Paulo (Unifesp), conhecida pela sua Escola Paulista de Medicina, cuja presença de pessoas negras e indígenas mudou radicalmente depois da lei.”

Resistência aos cotistas

É claro que essa não foi uma transformação sem conflitos. Aluna de uma das primeiras levas de estudantes cotistas negros na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a psicológa e professora universitária Caroline Damazio da Silva conta só ter enxergado a possibilidade de fazer uma faculdade ao ser apresentada, por um primo, a um cursinho pré-vestibular popular comandado por professores da instituição, em 2008.

Uma vez aprovada, no entanto, ela afirma ter pensado em abandonar a universidade no terceiro semestre por não se ver no corpo docente nem entre os colegas. “As cotas eram um assunto proibido porque as pessoas eram muito contrárias naquele momento. Éramos só quatro na turma, os únicos negros, e não éramos os convidados a fazer parte dos grupos de pesquisa, nem os que se relacionavam bem com os professores.”

O que pode mudar

A evasão, que não atingiu a psicóloga, é uma das preocupações de educadores e pesquisadores. Embora os números de cotistas que abandonam a universidade sejam semelhantes aos dos demais alunos, segundo Adriano Senkevics, há cursos especialmente difíceis para eles, seja pelos custos altos com materiais, alimentação e transporte ou pelos horários incompatíveis para quem, muitas vezes, precisa conciliar trabalho e estudos.

Parte de um grupo que pressionou a universidade para a inclusão de uma disciplina obrigatória sobre relações raciais, a psicóloga Caroline Damazio vê outra razão para a não permanência dos cotistas. “É preciso investir na formação dos professores. Ainda hoje, vejo uma psicologia muito branca, elitista, o que causa um adoecimento mental nos estudantes que não se veem ali e faz com que abandonem seus cursos.”

Outra preocupação são as fraudes. Em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que as cotas raciais eram legais, estabeleceu dois critérios: a autodeclaração do candidato ou a declaração feita por terceiros. O número de pessoas que passaram a se declarar pretas ou pardas para acessar vagas fez com que algumas instituições criassem comissões de heteroidentificação – o que não está previsto na lei.

“A autodeclaração é um direito importante, mas não pode ser absoluto porque pode não ser condizente com a realidade de muitos candidatos, como temos visto, inclusive de candidatos a cargos políticos”, diz a promotora Livia Sant’Anna Vaz, que defende a validação da autodeclaração pelas comissões.

A população de negros e indígenas cresceu e a lei ficou ultrapassada. Propomos que seja incorporada na revisão o uso da Pnad

Adriano Senkevics vê ainda uma defasagem dos dados que servem de referência para o número de vagas reservadas aos cotistas, já que o último censo demográfico ocorreu em 2010. “A população de negros e indígenas cresceu nos últimos dez anos e a lei ficou ultrapassada em seu perfil racial. Então, propomos que seja incorporada na revisão o uso da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que é atualizada todo ano.”

Outra distorção apontada pelo pesquisador da USP diz respeito ao acesso de ex-alunos de colégios militares, instituições geridas pelas Forças Armadas, e não pela rede pública de ensino, que têm a maioria das vagas reservadas para filhos de militares. “Por outro lado, você tem instituições de ensino superior militares como o IME (Instituto Militar de Engenharia) e o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) que ficaram de fora da lei e só muito tempo depois aprovaram um programa institucional de cotas, com um número menor de vagas – um privilégio que pouco se discute.”

Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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