Winnie Bueno
A mãe preta e o enfrentamento ao racismo cotidiano
A gente aprende muitas coisas lendo e ouvindo mães negras, mesmo que nós não sejamos mães
Fazia muito tempo que eu queria falar de maternidade negra nessa coluna. Mas o que eu tinha a falar sobre maternidade não era tão genuíno quanto as palavras de uma mãe negra. Então, provoquei Adriana Centeno a escrever para essa coluna. Adriana, que vai se apresentar nas linhas que segue, é uma pessoa preta. Indiscutivelmente. Assim como suas filhas e seu marido. Uma família de pessoas retintas que vivem no Rio Grande do Sul.
Converso e troco muito com Adriana, nem sempre sobre maternidade já que eu não sou uma mãe, mas sobre os atravessamentos e as necessidades de resistência de mulheres negras, sobre o quanto a maternidade adiciona várias camadas e dinâmicas frente ao racismo. Sobre como a rotina de cuidados de uma criança negra é tão mais saudável, para a mãe e para a criança, quando se tem uma forte rede de apoio. Adriana criou uma rede de apoio para mulheres negras mães em Porto Alegre, o grupo Mães Pretas. O grupo já conta com centenas de mães negras que não apenas dividem suas angústias mas que se encontram para fazer atividades culturais e lúdicas com e sem as crianças, que relatam seus percursos no maternar e que, pelo perfil de Instagram @MaesPretas tecem conexões com outros grupos de mães negras ao redor do país e com as próprias mães.
Toda vez que eu vejo alguma atividade do grupo penso que essa é uma ótima forma de fortalecer o reconhecimento social da maternidade negra, reconhecimento este que foi impossibilitado para essas mães pelas dinâmicas da escravização e, obviamente, do racismo. Essa edição da coluna, então, é o convite para Adriana partilhar suas reflexões sobre a maternidade.
*
Minha ancestralidade ensina que quando chegamos a um local, pedimos licença. Licença a quem veio antes, então assim o faço: Licença, sou Adriana, mulher negra, mãe da Lêmba Nyanga, de 5 anos, e da Ba Kimoyo, de 2 anos. A Ba Kimoyo, como seu nome anuncia é nossa grande vida, uma menina esperta e inteligente. Depois de fingir não ver sua curiosidade com o banheiro e com o que lá é feito, ela chegou um dia da escola, baixou a calça e fez o seu coco no baldinho da pracinha.
Fiquei perplexa entre a repulsa e a surpresa, mas simulei naturalidade. Como meu maternar é coletivo, contei a minha irmã o acontecido e escutei: “Ela tá pronta, apresenta o penico e vá em frente”. Me senti fortalecida para levar a decisão à escola que, por sua vez, estranhou a ausência de uma conversa prévia sobre o momento e as condições efetivas da Ba para realizar esse processo. Insisti na decisão e saindo da escola, segui para a Av. Azenha para procurar calcinhas. Ela tinha algumas poucas que serviam para cobrir a fralda, herança da Nyanga, mas precisaria de muitas outras.
O racismo na maternidade preta te atravessa na distração que leva a estratégias urgentes de proteção de algo que, até então, não era um perigo
Na loja pensando em escapes e calculando quantas seriam suficientes, um espiral de sentimentos entrou na minha cabeça com a fúria de quem lembra de algo muito importante. Pensei se a professora se atentaria ao fato das calcinhas serem novas, estarem em bom estado. O racismo na maternidade preta te atravessa assim, na distração que te leva a estratégias urgentes de proteção de algo que, até então, não era um perigo. A Ba é uma das poucas crianças negras em uma escola pública. Uma criança com calcinhas novas aparentaria ser bem cuidada. Coerentemente com o cabelo impecável, o vestido florido e o tênis de luzinha. Tudo milimetricamente pensado para que a criança negra tenha sua identidade respeitada e para que saibam que seu corpo é, sim, zelado por alguém.
Da sua intimidade até o seu externo, reproduzo entendimentos da minha avó de que mulheres negras devem ter boa aparência, boa fragrância. Que o mundo será menos difícil se elas mantiverem esses cuidados ao longo da vida. Justo eu, que zelo tanto pela cura geracional de tentar não reproduzir os racismos que minha avó reproduzia, me pego compreendendo que pouco ou nada do mundo dela para o meu se transformou. Assim, antigas estratégias maternas de defesa, seguem sendo eficientes e necessárias.
Justo eu, que tento não enveredar pelos racismos que minha avó reproduzia, compreendo que pouco ou nada do mundo dela para o meu se transformou
Segurando calcinhas na loja me questiono se reproduzo um sistema racista, se educo minhas filhas para fortalecer sua autoestima ou se simplesmente dou a ela a calcinha porque ela precisa e posso dá-la. Nesse turbilhão, sou interrompida pela moça da loja que questiona se desejo ver mais alguma coisa: “Não quero mais nada, obrigada.” Saio da loja com as calcinhas e todos os dias as dobro na mochila para garantir as trocas nos escapes de racismo institucional e de xixi.
*
Epílogo: poucas semanas depois que Adriana me enviou essa escrita ela compartilhou no perfil @MaesPretas mais uma situação que as mães de crianças negras em idade escolar conhecem muito bem infelizmente: a professora prendeu o cabelo da Ba. Essa história você pode ler, assim como outros importantes relatos sobre a maternidade negra, no perfil do Instagram. A gente aprende muitas coisas lendo e ouvindo mães negras, mesmo que nós não sejamos mães.
Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.