Por um feminismo do coletivo — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Por um feminismo do coletivo

Precisamos olhar para trás e retomar formas de luta feminista que se preocupavam em centralizar e divulgar organizações de mulheres

08 de Março de 2023

Março é o mês em que discutimos e temos uma maior visibilidade das pautas das mulheres, que têm aumentado inclusive para além dos movimentos de mulheres. Essa alta tem mais a ver com a forte cooptação do feminismo por uma agenda neoliberal do que com as pautas e bandeiras históricas das lutas de mulheres. No contexto brasileiro, esse diagnóstico ganha um componente importante que, como é de praxe, fica ocultado nas análises, discursos e eventos que surgem aos borbotões no mês dedicado às mulheres. Que mulheres foram beneficiadas pelas conquistas e direitos que as lutas feministas alcançaram nos últimos tempos? Que bandeiras ainda se mantêm erguidas porque mulheres negras e indígenas não alcançaram direitos que são naturalizados para mulheres brancas? Quais bandeiras foram lateralizadas a partir do momento em que a sociedade ouviu e atendeu as reivindicações de um feminismo branco e de classe média?

A existência de um governo que reestabeleceu o Ministério das Mulheres colocando à frente uma histórica militante do movimento feminista, a ministra Cida Gonçalves — responsável, entre outras políticas, pela concepção do 180, instrumento imprescindível para o combate a violência de gênero –, nos permite avançar em debates que no governo anterior ficaram adormecidos. Adormecidos porque nossos esforços estavam voltados para garantir a permanência dos direitos que já temos e para enfrentar uma lógica misógina, altamente conservadora e nociva para as mulheres brasileiras. Não é que essa lógica tenha desaparecido com o governo Bolsonaro, as notícias recentes não são nada animadoras no que diz respeito ao avanço da misoginia no Brasil. Ainda assim, me parece mais animador um governo que tem uma feminista à frente da pasta voltada a pensar políticas públicas específicas para mulheres do que uma que defenda uma lógica patriarcal e conservadora pautada por ditames morais que historicamente impediram a emancipação feminina.

Passamos a celebrar uma iconografia feminina em detrimento da construção de agendas que promovam a abolição das dinâmicas de opressão

Recentemente escrevi um ensaio com Denise Dora, uma feminista da geração da ministra, analisando parte da trajetória recente do feminismo brasileiro. Foi um exercício extremamente importante para mim porque eu e Denise somos mulheres completamente diferentes, de gerações diferentes, de cor de pele diferente, de trajetórias diferentes, mas que pelos contornos da própria luta feminista compartilham aspirações semelhantes. A possibilidade de observar o feminismo a partir do movimento feminista se torna cada vez algo mais raro. O histórico do feminismo, suas pautas fundantes, características e trajetória, têm sido eclipsadas inclusive em março. Fala-se menos em combate à violência de gênero, salário equitativo, creche e lavanderias públicas, divisão sexual do trabalho, dinâmicas do cuidado, saúde integral da mulher, planejamento familiar e aborto legal e seguro para dar lugar e centralidade a trajetórias individuais de mulheres. Passamos a celebrar muito fortemente uma iconografia feminina, que muitas vezes flerta com uma feminilidade que o próprio movimento feminista historicamente visou combater, em detrimento de construir agendas que efetivamente promovam a emancipação de mulheres e a abolição das dinâmicas de opressão que impedem que mulheres sejam consideradas pessoas na sua completude.

Talvez porque, nessa dinâmica, as agendas feministas tenham alcançado determinado êxito no século 21, especialmente para as mulheres brancas. As ideias feministas de equidade de gênero da chamada segunda onda feminista, que teve seu ápice na segunda metade do século 20, têm a devida atenção social. No que pese os setores da extrema direita conservadora, não há nenhum discurso que atente contra a bandeira de equidade salarial, por exemplo, ou contra a criminalização da violência sexual. Contudo, institucionalmente e estruturalmente a diferença de salário entre homens e mulheres continua sendo um marcador relevante e a violência contra mulheres alcança níveis assustadores. No contexto brasileiro, essa estrutura e os desdobramentos da falha institucional dos discursos feministas atingem especialmente um grupo: o das mulheres negras.

Segundo estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a vitimação de mulheres negras é superior à de mulheres brancas e, dentro do grupo mulheres negras, é ainda maior para as pretas do que para as pardas. Ou seja, as mulheres pretas são as mais vulneráveis à violência de gênero, mas as políticas públicas destinadas ao combate à violência de gênero não são articuladas tendo elas como centro. Essas políticas seguem pensadas, mobilizadas e produzidas por mulheres brancas, o que indica que é preciso modificar a forma com que articulamos a agenda feminista no Brasil. O estudo ainda aponta que, no que diz respeito à violência física severa, as mulheres negras são atingidas de forma muito mais profunda do que as brancas. Outro dado importante é que mulheres negras também estão mais propensas a serem vitimadas em seus próprios lares, o que demonstra que, por mais que nossas vulnerabilidades enquanto mulheres sejam as mesmas, elas se aprofundam para algumas. Esse aprofundamento é resultado da forma com que as opressões se retroalimentam, sendo necessário um olhar específico e especializado para que seja garantida a dignidade e a humanidade das mulheres.

As mulheres pretas são as mais vulneráveis à violência de gênero, mas as políticas públicas não são articuladas com elas no centro

Estou convencida de que precisamos olhar para trás e retomar formas de luta feminista que se preocupavam em centralizar e divulgar organizações de mulheres e, consequentemente, articular respostas coletivas para problemas por nós enfrentados. Foi assim que surgiu o SOS Mulher, por exemplo, uma resposta dos movimentos feministas da década de 80 para acolher mulheres vítimas de violência. Antes isso do que seguir pelo caminho de um feminismo autoproclamatório e mobilizado por egocentrismo, que acaba fomentando rivalidades entre mulheres.

Nós podemos transformar conquistas pontuais em avanços institucionais, isso já foi provado por uma geração inteira de mulheres que nos antecedeu. Talvez o que nos falte seja compreender que direitos nos interessam e de que forma queremos obtê-los.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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