Coluna da Winnie Bueno: O medo dos ventos uivantes — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

O medo dos ventos uivantes

É o que faz as portas e janelas baterem, abre os cômodos fechados e arrepia a espinha ante a iminência de que algo muito perigoso vai acontecer

21 de Junho de 2023

Uma vez, quando eu era bem pequena, perguntei para minha mãe se ela tinha algum medo. Na minha cabeça era muito difícil imaginar que a minha mãe pudesse ter medos, porque afinal de contas era ela que me ensinava a enfrentar os meus. Perguntei, esperando que ela afirmasse “tenho medo de nada não”, mas para minha surpresa ela disse: “Tenho medo do vento que assobia”.

Se você nunca ouviu um vento que assobia talvez não compreenda o medo de minha mãe. Se você já o ouviu, certamente compreende que ele é bastante plausível. Inclusive aparece com alguma frequência nos filmes de terror: ele anuncia o terror. É o vento que faz as portas e janelas baterem, que abre os cômodos fechados e arrepia a espinha ante a iminência de que algo muito perigoso vai acontecer. O medo do vento que assobia que minha mãe tem é composto por tudo isso. Mas diferentemente do que acontece nos filmes de horror, não é um palhaço assustador ou um espírito indomável que acompanha o que mamãe tem medo. Ele tem a ver com o tempo, o tempo meteorológico, especialmente, com as fortes e implacáveis chuvas.

Minha mãe passou parte da vida rezando para que o vento e a chuva não levassem sua casa, seus pertences, suas memórias

Minha mãe, assim como outras mulheres de sua geração e da anterior (minha avó também tem pavor do vento que assobia), teme os fortes ventos porque passou parte significativa de sua vida rezando baixinho para que, cada vez que a chuva se fazia forte, ele não levasse sua casa, seus pertences, suas memórias. É um receio que se estabelece desde muito antes delas pois infelizmente as mulheres negras precisam enfrentar as consequências de desigualdades múltiplas e de opressões interseccionais que influenciam em suas experiências coletivas e individuais.

A chuva forte e recorrente, assim como outros fenômenos ambientais, são resultados das mudanças climáticas e do racismo ambiental. Essas mudanças afetam as pessoas de forma desigual em qualquer lugar do país, é não é diferente no Rio Grande do Sul, onde a minha família reside. Os impactos das fortes chuvas que atingiram o estado na última semana são, indiscutivelmente, mais aprofundados em territórios periféricos e de maioria negra. Isso não é obra do acaso. As consequências devastadoras da chuva constante afetam particularmente as comunidades negras, aprofundando os seus impactos na vida de mulheres negras.

Ouso afirmar que o leitor desta coluna compreende que as mudanças climáticas estão contribuindo para que cada vez mais tragédias extremas ocorram, produzindo resultados cruéis para as comunidades e territórios racializados. Cada vez mais nos deparamos com enchentes, deslizamentos de terra, temporais incessantes, frequentes, intensos. Eventos como estes exacerbam as desigualdades sociais a partir do clima. São tragédias anunciadas e ignoradas pelos governos justamente pelo fato de que os poderosos sabem quem são as pessoas mais afetadas. Aquelas que perderão suas casas, que ficarão doentes, que irão perder suas vidas, não pelo vento que assobia, mas pelo descaso, pela falta de investimento, pela lógica necropolítica que é marca dos sistemas de poder.

É esse descaso e essa falta de comprometimento com políticas públicas e investimentos em saneamento básico, infraestrutura, habitação digna que ocasiona em destruição. Cada vez que a chuva alcança níveis torrenciais, maiores são os números de pessoas desabrigadas, de casas destroçadas, de danos nas parcas estruturas existentes e na interrupção de serviços essenciais, como o fornecimento de energia elétrica.

Para além das perdas materiais, imensuráveis perdas mentais se acumulam

Nas áreas de maior concentração de pessoas de baixa renda, a luz faltou e por mais de três dias não voltou. As casas ficaram alagdas e as pessoas viram seus pertences, adquiridos ao custo de muito trabalho, estragarem sem nada que pudessem fazer para recuperá-los. As lágrimas se misturam à água da chuva. Quando as respostas governamentais aparecem, já é tarde demais e são insuficientes os discursos e as ações. Para além das perdas materiais, imensuráveis perdas mentais se acumulam. Não raro, mulheres negras são ainda mais sobrecarregadas em situações de enchentes. O cenário implica em articular os esforços possíveis para a proteção dos filhos e dos idosos da comunidade, mediante a escassez de recursos e a insuficiência de abrigos seguros.

Ficam os traumas, as incertezas constantes e o medo dos ventos uivantes.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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