Marilene Felinto
Que março seja mês das mulheres não é em vão aqui
Reafirmar e celebrar nossa condição de mulher, mesmo como “ilusão de ser”, entre drama e silêncio, a exemplo da fotografia artística de Ana Quintella
Que março seja mês das mulheres não é em vão aqui… nós que precisamos de novo (até quando?) reafirmar e celebrar nossa condição de mulher, mesmo como “ilusão de ser”, entre drama e silêncio, a exemplo da fotografia artística de Ana Quintella.
Ana Quintella, fotógrafa carioca que conheço de longa data, faz um trabalho artístico que só descobri por acaso e recentemente em seu estúdio, no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. E nem era mês de março.
Tão surpreendente o ensaio fotográfico que mudou meu modo de olhar para ela, eu que estava no estúdio por outro motivo, e ligeiramente incomodada por uma lembrança ruim que eu tinha da Gávea.
O que Ana tinha feito, e vi nas imagens penduradas nas paredes da Casa Arlette (como se chama o local do estúdio, também espaço de eventos de arte), parecia pintura em tela, umas coloridas, outras em preto e branco, mas era fotografia. O modelo era o mesmo sempre – um corpo de mulher, da própria fotógrafa, seminua em algumas imagens.
Eram autorretratos em poses variadas, que Ana tirou com a máquina em modo automático e servindo-se de uma técnica que tinha a ver com a luz, o tempo da luz, algo assim. Ela se fechara entre quatro paredes e se autofotografara.
Entre os efeitos do processo, um corpo que mais se insinua do que se revela. Em algumas imagens, um tecido fino, uma gaza levíssima em movimento flutuante, acompanha o corpo que se contorce, se curva, se abre e se fecha em posições diversas, quase uma dança (um flou, um véu, uma névoa?). Um bailado.
Ana me explicou rapidamente ali no que consistia o recurso técnico da iluminação, do tempo, da impressão, mas eu não prestei muita atenção. O trabalho se explicava por si, em imagens como “Evanescência” I e II. Ou nas que se intitulam “Ilusão de Ser” I, II, III e IV.
Evanescência II, 2021, fotografia impressa com pigmento mineral sobre papel de algodão. Tiragem 6 + PA. 100 cm x 100 cm Ana Quintella @fotosanaquintella
Hoje, neste ainda mês de março em que escrevo, só não fui perguntar a ela sobre detalhes da técnica porque não interessa aqui, de fato. (E, pior que tudo, quando escrevo, prefiro não perguntar nada a ninguém. Me dou direito ao erro, o que às vezes vira puro acerto, ou invenção inútil).
Por exemplo: não seria aquele corpo velado (literalmente semiencoberto pelo véu do tecido) resultado da “mancha” que virou arte? Pois eu tinha lido no dicionário que a palavra “véu”, em fotografia, é uma mancha causada por incidência indevida de luz no filme. Assim, inventei meu título para o ensaio: “Devidamente indevida”. Embora já tivessem dado a ele o nome perfeito de “vestígios e ausências”. Assim é a insinuação de um corpo em “Autorretrato Branco”, vestígio puro, bruma.
Escrever sobre as mortas é perigo de chorar. Escrever chorando borra a visão, toda turva
O que interessa no ensaio de Quintella – para além do resultado magnífico, entre o drama e o silêncio – é primeiro a inversão que a fotógrafa faz do lugar de observadora para a posição de observada, de modelo antimodelo, essa transgressão. Devidamente indevida.
A foto cuja legenda é “Água Viva – homenagem a Clarice Lispector”, pode inclusive arder na pele, toda translúcida – transluzente – a gaza esverdeada. Imagem linda. E como se trata também de Lispector, quem sabe o trecho a seguir, da escritora, não definiria a imagem de Ana Quintella.
Água Viva (homenagem à Clarice Lispector), 2022, fotografia impressa com pigmento mineral sobre tela. 100 cm x 70 cm Ana Quintella @fotosanaquintella
Assim diz Clarice em “Água Viva”: “Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. (…) Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta”.
O que Ana fez, ao trocar sua posição original de fotógrafa pelo indevido lugar de fotografada, foi criar o não-análogo de si mesma, ao inverso do que faz a fotografia. Ao se trancar entre quatro paredes e dizer “deixa-me conduzir”, afirma-se dona de si mesma, e trabalha com a “harmonia secreta da desarmonia”, como também diz a escritora de “Água Viva”: “quero não o que está feito, mas o que tortuosamente ainda se faz”.
Nas “ilusões de ser” de Ana Quintella, cabe qualquer mulher… E o abismo de classe que me separa da fotógrafa foi assim transposto por um momento de arte no estúdio. Passei a olhá-la de outro modo, surpresa com suas fotos artísticas.
Não contei a ela sobre meu desconforto com a Gávea. Naquele bairro, faz anos (naquele estranho Rio de Janeiro), eu tinha estado uma única outra vez, por poucos dias, com um homem americano dos EUA, um caso meu, eu querendo namoro sério, mas o cara, não – encontro frustrante, eu tão ansiosa que, fosse homem, teria brochado, como se diz… (e, na verdade, sempre calculei que não deve ser coisa fácil levantar um pênis, afinal).
Não contei à fotógrafa essa lembrança de fracasso meu na Gávea (e dane-se quem não me quis). Nem disse como a sua fotografia “Mulher com bambu” me lembrou daquele falo de homem americano.
Mulher com Bambú, 2005, fotografia impressa com pigmento mineral sobre papel de algodão. Tiragem de 6 + PA 70cm x 50 cm Ana Quintella @fotosanaquintella
Não sei por que acabei por relacionar a fotografia de Ana Quintella com o mês das mulheres, este março que termina. Desde o início, pretendia escrever sobre isso, e sobre mulheres que se foram para sempre, mas seguem vivas. E começaria com: “Inês é morta, mas nós, não. Marielle Franco segue viva”.
Mas escrever sobre as mortas é perigo de chorar. Escrever chorando borra a visão, toda turva. Então, mudei para as naturezas vivas de Ana Quintella – inclusive as vacas que descansam à sombra umas das outras, num pasto próximo a um campo lavrado em “Champagne”, vacas supostamente fêmeas olhando para longe, ou para perto, quase em pose, para uma câmera, devidamente, de mulher.
Champagne, 2013, fotografia impressa com pigmento mineral sobre papel de algodão. Tiragem 6 + PA 180 cm x 120 cm Ana Quintella @fotosanaquintella
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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