Quando as Espécies se Encontram
Em novo livro, a célebre bióloga e filósofa americana Donna Haraway explora as interações dos humanos com os outros seres que habitam a Terra
Em “Quando as Espécies se Encontram” (Ubu, 2022), a bióloga, filósofa e antropóloga norte-americana Donna Haraway traça um panorama a um mesmo tempo ambicioso e relevante de como dividimos e habitamos o mundo com todas as outras espécies e organismos que existem nele. Um mundo, aliás, em constante mudança e cada vez mais mediado pela tecnologia, tema que a autora também já abordou em obras como “Manifesto Ciborgue” – publicado no Brasil dentro do livro “Antropologia do Ciborgue” (Autêntica, 2009).
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Considerada uma das principais pensadoras da atualidade, a autora, que também é pesquisadora feminista e anticapitalista, empilha na obra temas como biotecnologia, domesticação, engenharia genética, mercadorização de animais, indústria alimentícia e privilégios de raça e classe, entre muitos outros. Segundo o que a própria autora diz no texto de apresentação, o livro “trata ainda mais dos jogos de cama de gato nos quais aqueles que devem estar no mundo são constituídos em intra- e interação. Os parceiros não precedem o encontro; espécies de todos os tipos, vivas ou não, resultam de uma dança de encontros que molda sujeitos e objetos.”
Também autora de “O Manifesto das Espécies Companheiras” (Bazar do Tempo, 2021), onde analisa o laço que liga há milênios os seres humanos a seus cães de estimação, aqui Haraway vai desde as interações mais cotidianas até as extraordinárias, de encontros positivos a negativos, para explorar as diversas facetas de como dividimos — ou nos recusamos a dividir — esta Terra. Assim, ao folhear as páginas, o leitor casual corre o risco de topar não só com os conhecidos humanos, cães ou gatos, mas também ratos de laboratório, porquinhos-da-índia, moscas tsé-tsé, galos, galinhas, um jumento e até o vombate-de-nariz-peludo-do-norte, um dos grandes mamíferos mais raros do mundo.
A tirinha dominical Bizarro, de Dan Piraro, publicada em 1999 captou perfeitamente as regras de conduta. Ao dar boas-vindas aos participantes, o cachorrinho palestrante principal da Associação Americana de Cães de Colo [lapdogs] aponta para o slide iluminado de um computador de colo [laptop] aberto, entoando solenemente: “Senhoras e Senhores… Eis o inimigo!”. O trocadilho que simultaneamente une e separa cães de colo e computadores de colo é maravilhoso e abre um mundo de investigação. Uma verdadeira pessoa cachorreira pode primeiro perguntar o quão espaçosos os colos humanos conseguem de fato ser para segurar ao mesmo tempo cães de tamanho considerável e computadores. Tais perguntas tendem a surgir no fim da tarde em um escritório doméstico se um ser humano ainda está no computador, negligenciando a importante obrigação de sair para dar uma volta com a fera-não-mais-no-chão que o importuna de modo eficaz. No entanto, questões filosoficamente mais graves, se não mais urgentes em sentido prático, também se escondem na tirinha Bizarro.
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As versões modernistas tanto do humanismo como do pós-humanismo têm raízes axiais em uma série daquilo que Bruno Latour chama de Grandes Divisões, aquilo que conta como natureza e o que conta como sociedade, como não humano e como humano. Paridos nas Grandes Divisões, os principais Outros do Homem, incluindo seus “pós”, estão bem documentados em registros ontológicos de crias, tanto nas culturas ocidentais passadas como nas presentes: deuses, máquinas, animais, monstros, criaturas rastejantes, mulheres, servos e escravos e não cidadãos em geral. Fora da inspeção de segurança da razão iluminada, fora dos dispositivos de reprodução da imagem sagrada do mesmo, esses “outros” têm uma capacidade notável de provocar pânico nos centros de poder e na certeza de si. Os terrores são expressos geralmente em hiperfilias e hiperfobias, e não há exemplos mais ricos do que os pânicos despertados pela Grande Divisão entre animais (lapdogs) máquinas (laptops) no início do século XXI da Era Cristã.
…quão espaçosos os colos humanos conseguem de fato ser para segurar ao mesmo tempo cães de tamanho considerável e computadores
Tecnofilias e tecnofobias rivalizam com organofilias e organofobias, e tomar partido não é algo que se deixe ao acaso. Se uma pessoa ama a natureza orgânica e exprime amor pela tecnologia, torna-se suspeita. Se alguém acha que os ciborgues são tipos promissores de monstros, então é uma aliada pouco confiável na luta contra a destruição de todas as coisas orgânicas. Pessoalmente, fizeram-me entender isso em um encontro profissional em 2001, uma conferência maravilhosa chamada “Taking Nature Seriously” [Levar a natureza a sério], na qual fui uma das palestrantes principais. Fui submetida a uma fantasia de meu próprio estupro público nominal em um panfleto distribuído por um pequeno grupo de ativistas que se autoidentificavam como anarquistas e partidários da ecologia profunda, porque, ao que parecia, meu compromisso com os híbridos de misturas orgânico-tecnológicas figurados em ciborgues me tornava pior do que um pesquisador da Monsanto, o qual pelo menos não reivindica nenhuma aliança com o ecofeminismo. Sou obrigada a lembrar até mesmo daqueles pesquisadores na Monsanto que podem muito bem levar a sério o feminismo ambiental antirracista e imaginar como alianças poderiam ser construídas com eles. Eu também estava na presença dos muitos partidários da ecologia profunda e anarquistas que não querem ter nada a ver com a ação ou a análise da posição incuriosa e presunçosa de meus confrontadores. Além de me lembrar que sou uma mulher — algo que a classe e o privilégio de cor ligados ao status profissional podem silenciar por longos períodos de tempo –, o cenário do estupro me lembrou à força por que procuro minhas irmãs e irmãos nas formas fúngicas não arbóreas, lateralmente comunicantes, do grupo de parentes queer que colocam lapdogs e laptops nos mesmos colos confortáveis.
Em um dos painéis da conferência, ouvi um triste homem na plateia dizer que o estupro podia ser um instrumento legítimo contra quem estupra a Terra; ele parecia considerar essa uma posição ecofeminista, para horror dos homens e mulheres com essa convicção política na sala. Todo mundo que ouvi durante a sessão achou o sujeito um pouco perigoso e definitivamente uma vergonha política, mas principalmente louco no sentido coloquial, se não no sentido clínico. Entretanto, a qualidade do pânico quase psicótico de seus comentários ameaçadores merece alguma atenção devido à maneira como o extremo revela a face oculta do normal. Em particular, esse pretenso-estuprador-em-defesa-da-mãe-terra parece moldado pela fantasia culturalmente normal da excepcionalidade humana. Trata-se da premissa de que apenas a humanidade não é uma teia espacial e temporal de dependências interespécies. Assim, ser humano é estar do lado oposto em relação a todos os demais na Grande Divisão e, por conseguinte, ter medo — e estar inflamadamente enamorado — das sombras que caminham à noite. O homem ameaçador na conferência foi bem marinado na fantasia ocidental institucionalizada, há muito dominante, de que tudo aquilo que é totalmente humano passou pela queda do Éden, está separado da mãe, no domínio do artificial, desenraizado, alienado e, portanto, livre. Para esse homem, sair dos compromissos profundos de sua cultura com a excepcionalidade humana exige um arrebatamento de mão única para o outro lado da divisão. Retornar à mãe é retornar à natureza e se posicionar contra Homem-o-Destruidor por meio da defesa do estupro de mulheres cientistas na Monsanto, se disponíveis, ou de uma conferencista feminista ambientalista traidora, caso alguma esteja no local.
…ouvi um triste homem na plateia dizer que o estupro podia ser um instrumento legítimo contra quem estupra a Terra; ele parecia considerar essa uma posição ecofeminista
Freud é nosso grande teórico do pânico na psique ocidental, e por causa do compromisso de Derrida de rastrear “toda a reinstituição antropomórfica da superioridade da ordem humana sobre a ordem animal, da lei sobre os viventes”, ele é meu guia para a abordagem de Freud a essa questão. Freud descreveu três grandes feridas históricas do narcisismo primário do sujeito humano autocentrado, que tenta afastar o pânico pela fantasia da excepcionalidade humana. A primeira é a ferida copernicana que removeu a própria Terra, o mundo natal do homem, do centro do cosmos e de fato abriu o caminho para que aquele cosmos rebentasse em um universo de tempos e espaços inumanos e não teleológicos. A ciência fez esse corte descentralizador. A segunda ferida é a darwiniana, que colocou o Homo sapiens firmemente no mundo das outras criaturas, todas tentando ganhar a vida terrenamente e, desse modo, evoluindo umas em relação às outras, sem as garantias de placas de sinalização que culminem no Homem. A ciência também infligiu esse corte cruel. A terceira ferida é a freudiana, que postulou um inconsciente que desfez a primazia dos processos conscientes, incluindo a razão que confortava o Homem com sua excelência única, mais uma vez com consequências temerárias para a teleologia. A ciência parece segurar essa lâmina tal e qual. Quero acrescentar uma quarta ferida, a informática ou ciborguiana, que envolve a carne orgânica e a tecnológica, assim fundindo também a Grande Divisão.
Será de se admirar que, em mandatos eleitorais alternados, o Conselho de Educação do Kansas queira isso fora dos livros didáticos de ciências, mesmo que quase toda a ciência moderna tenha de desaparecer, para que se realize uma sutura de feridas abertas em prol da coerência de um ser fantástico, mas bem-dotado? É notório que, na última década, os eleitores do Kansas elegeram para o conselho estadual opositores do ensino da evolução darwiniana, em uma eleição, e depois os substituíram, no mandato seguinte, pelo que a imprensa chama de moderados. O Kansas não é uma exceção; em 2006, representava mais da metade do público nos Estados Unidos. Freud sabia que o darwinismo não é moderado e que também é uma coisa boa. Passar sem teleologia e sem excepcionalidade humana é, em minha opinião, essencial para colocar laptops e lapdogs em um só colo. Mais precisamente, tais feridas na certeza de si são necessárias, ainda que não sejam suficientes, para que, em qualquer um dos domínios, não se pronuncie mais tão facilmente a sentença: “Senhoras e senhores, eis o inimigo!”. Em vez disso, quero que a minha gente, aquela reunida por figuras de relacionalidade mortal, volte àquele velho button político do final dos anos 1980, “Ciborgues pela sobrevivência terrena”, unido ao meu mais novo adesivo de para-choque da revista The Bark, “O cão é meu copiloto”. Ambas as criaturas cavalgam o mundo nas costas do peixe de Darwin.
…quero que a minha gente (…) volte àquele velho button político do final dos anos 1980, “Ciborgues pela sobrevivência terrena”, unido ao meu mais novo adesivo de para-choque (…) “O cão é meu copiloto”
O ciborgue e o cachorro se reúnem nos encontros profissionais que se seguem a essas apresentações. Há alguns anos, Faye Ginsburg, uma eminente antropóloga e cineasta, filha de Benson Ginsburg, estudioso pioneiro de comportamento canino, me enviou uma tirinha de Warren Miller publicada em 29 de março de 1993 na New Yorker. Faye passou a infância com os lobos que o pai estudava em seu laboratório na Universidade de Chicago e com os animais no Jackson Memorial Laboratory em Bar Harbor, Maine, onde J. P. Scott e J. L. Fuller também realizaram suas famosas investigações sobre genética canina e comportamento social a partir do final dos anos 1940. Na tirinha, um membro de uma alcateia selvagem apresenta uma visitante coespecífica usando mochila de comunicação eletrônica, equipada com uma antena para enviar e receber dados, e diz as seguintes palavras: “Nós a encontramos vagando na beira da floresta. Foi criada por cientistas”. Estudante de mídia indígena na era digital, Faye Ginsburg foi facilmente atraída pela união da etnografia e da tecnologia de comunicação na tirinha de Miller. Veterana da integração na vida social dos lobos por meio de rituais polidos de apresentação desde sua infância, foi triplamente saudada. Ela também está no meu grupo de parentes na teoria feminista, por isso não é surpresa que eu me encontre naquela loba com mochila de telecomunicação. Essa figura reúne sua gente por meio de redes de amizade, histórias animal-humanas, estudos científicos e tecnológicos, política, antropologia, estudos de comportamento animal, com o senso de humor da New Yorker.
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Essa loba encontrada na beira da floresta e criada por cientistas figura quem me considero ser no mundo — isto é, um organismo moldado por uma biologia pós-Segunda Guerra Mundial saturada de ciência da informação e tecnologias, uma bióloga educada nesses discursos e uma praticante das humanidades e ciências sociais etnográficas. Todas essas três formações temáticas são cruciais para as questões deste livro sobre a mundanidade e o toque através da diferença. A loba encontrada se reúne com outros lobos, mas ela não pode tomar como certa sua acolhida. Ela deve ser apresentada, e sua estranha mochila de comunicação deve ser explicada. Ela traz a ciência e a tecnologia para o campo aberto na floresta. A alcateia é educadamente abordada, não invadida, e os lobos decidirão seu destino. A alcateia não é uma das floridas fantasias naturais sobre lobos selvagens, mas um grupo sagaz, cosmopolita e curioso de canídeos livres. O lobo mentor e patrono da visitante é generoso, disposto a perdoar algum grau de ignorância, mas cabe à visitante aprender sobre seus novos conhecidos. Se tudo correr bem, eles se tornarão comensais, espécies companheiras e outros significativos uns para os outros, coespecíficos. A loba-cientista enviará dados de volta, assim como trará dados para os lobos na floresta. Esses encontros moldarão naturezasculturas para todos eles.
Essa loba encontrada na beira da floresta e criada por cientistas figura quem me considero ser no mundo
Há muito em jogo em tais encontros, e os resultados não são garantidos. Não há aqui nenhuma salvaguarda teleológica, nenhum final feliz ou infeliz assegurado, seja social, ecológica ou cientificamente. Há apenas a chance de se darem bem juntos, com alguma graça. As Grandes Divisões animal/humano, natureza / cultura, orgânico/técnico e selvagem/doméstico se achatam em diferenças mundanas — daquele tipo que tem consequências e exige respeito e resposta — em vez de se erguerem em fins sublimes e últimos.
- Quando as Espécies se Encontram
- Donna Haraway
- Ubu
- 416 páginas
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