Quem fica com o pet depois da separação? — Gama Revista
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Reportagem

Quem vai ficar com o pet?

Em meio a processos de separação, casais que também são pais de pets sofrem para definir novas regras e quem deve cuidar dos bichos após o adeus

Leonardo Neiva 15 de Maio de 2022

Quem vai ficar com o pet?

Leonardo Neiva 15 de Maio de 2022
Getty Images/Peter Finch

Em meio a processos de separação, casais que também são pais de pets sofrem para definir novas regras e quem deve cuidar dos bichos após o adeus

Bruce Wayne mal foi adotado e já se viu em meio a uma disputa entre os novos pais por sua guarda. O ano era 2015 e Bruce — não o herói sombrio e eternamente órfão dos quadrinhos, mas um cão da raça chow-chow, então com pouco mais de um mês de idade — foi escolhido como primeiro animal de estimação do publicitário Arnaldo Rocha, 38, e de seu namorado, ambos de Manaus. Na época, o casal tinha planos de morar junto e adotar um cachorro. Mas a ansiedade era tanta que acabaram acolhendo o cãozinho antes mesmo de ter um apartamento onde colocá-lo. “Durante esse tempo, a gente ficou dividindo: um pouco na minha casa, um pouco na dele”, conta Rocha.

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O imóvel demorou tanto para sair que eles acabaram se separando sem nem ter chegado a morar juntos, após um relacionamento de um ano e meio. Restou o impasse: quem ia ficar com Bruce? De início, o ex-casal optou por uma guarda compartilhada, que parecia a decisão mais justa para ambos. De quinta a domingo, o pet era todo de Rocha, mas, de segunda a quarta, ia viver na casa do ex. Fora isso, despesas veterinárias e de alimentação seriam divididas igualmente entre os dois tutores. “No começo, a gente achou que ia conseguir fazer isso de maneira amigável”, afirma Rocha. Só que o caldo não demorou a entornar. “Em questão de dois ou três meses, a gente entrou em conflito em relação a horários, custos, qual veterinário frequentar, quais remédios comprar, qual ração…”, lembra o publicitário.

Por ser um cachorro de raça, ele diz que Bruce requer produtos e tratamentos especiais, que acabam saindo mais caros do que para um cão comum. A tosa, por exemplo, precisa ser feita religiosamente todo mês na tesoura, e a ração deve ser especial, específica para aquele tipo de pelo. Ao ver que não estavam conseguindo se entender, Rocha foi atrás de uma advogada especializada em direitos dos animais para fazer uma conciliação sem ter que entrar na Justiça. Segundo ele, o acordo levou tempo, até que a outra parte resolveu abrir mão. “Como ele resolveu amigavelmente, fui a um cartório especializado e registrei o documento de guarda do Bruce.”

Arquivo pessoal

Num momento em que, além de esposa, marido, pai e mãe, foi acrescentado à estrutura familiar o papel de pai e mãe de pet, a separação vem ganhando mais uma camada de complexidade envolvendo os bichos da família. Casos como o de Rocha e o chow-chow Bruce Wayne vêm aumentando e chegam com frequência a escritórios de advocacia pelo Brasil. Isso acontece “especialmente nos divórcios e dissoluções de união estável, tendo em vista que os animais passaram a compor diversos núcleos familiares, tornando-se verdadeiros integrantes da família”, explica a advogada Tatiana Morim Kashio, sócia da Morim & Kashio Advogados. Segundo ela, devido aos laços afetivos desenvolvidos ao longo do relacionamento, romper a convivência com o pet no momento da separação se tornou uma tarefa difícil. Isso torna praticamente impossível tratar a questão dos bichos da mesma forma que a divisão de outros bens materiais. Mas como decidir qual das duas partes tem mais direito a ficar com o animal?

O pet no tribunal

A legislação, na realidade, ainda não diz nada específico sobre o destino dos pets após a separação, embora existam hoje projetos de lei sobre o assunto em tramitação no Congresso. Portanto, quando casos assim precisam ser decididos no tribunal, usa-se como base a jurisprudência e as interpretações de juízes em situações semelhantes. Kashio aponta que, primeiro, é importante comprovar que o pet foi adquirido durante a relação — se pertenceu antes a uma das partes, a propriedade deve continuar com essa pessoa.

Caso não haja consenso entre as duas partes, a decisão depende das provas que demonstrem uma maior afinidade com o animal, desde apontar que você é a pessoa responsável por levar o pet em passeios ou ao pet shop até comprovar que seu ambiente doméstico é o mais adequado para os hábitos do bicho. Para isso, vale até recorrer a depoimentos de testemunhas ou a uma perícia.

“A parte que pleiteia a guarda do animal vai ter que provar em juízo que é a pessoa mais próxima e a que costuma passar mais tempo com ele”, aponta Andrea Della Bernardina, advogada especializada em direito de família do escritório Choaib, Paiva e Justo. Claro que, como um ser irracional, o animal não pode passar por um estudo psicossocial para averiguar a relação com os donos, como costuma acontecer em processos de guarda de filhos, diz ainda a profissional.

Vale lembrar que, para a Justiça, os pets não são considerados sujeitos de direito. Portanto, qualquer decisão judicial mira nos direitos de seus proprietários, lembra Kashio. Mas eles devem sim ser protegidos de abandono, negligência e maus-tratos, fatores que, quando presentes, também costumam ser levados em conta nas decisões. É verdade que um pet não se equipara juridicamente a um filho — embora já exista um projeto de lei que busca aproximar as duas situações –, mas, se o casal os tiver, é mais comum que os animais fiquem com quem mantém a guarda dos pequenos. “O interesse desses menores precisa ser preservado”, diz Bernardina. “O que também não tira o direito desse pai e dono de pet estar junto de seus animais, inclusive nos dias de visita em que estiver com os filhos.”

E a tartaruga?

Nenhum dos especialistas consultados por Gama teve conhecimento de casos que envolvessem outros animais que não cães e gatos. “Quando se passou a dar atenção para esse tipo de relação, foi em razão da troca que existe com esse tipo de bicho, algo que você não tem com um peixe ou uma tartaruga”, afirma Bernardina. Segundo ela, pedidos de guarda de outras espécies provavelmente não acontecem com frequência justamente pela menor receptividade ao afeto na comparação com os felinos e caninos.

“Mas o direito de família está em constante evolução”, lembra a advogada. “Se hoje a gente tem essa abertura para reconhecer relações de afeto com gatos e cachorros, não sei se no futuro não vai abrir para outros animais.”

Para a advogada de família Danielle Corrêa, processos envolvendo cães também ainda são mais comuns do que gatos porque os felinos têm tendência a ser mais territorialistas, o que dificultaria estabelecer regimes como o da guarda compartilhada. Mas Bernardina lembra que, no decorrer do processo, esse fator pode ser descartado, já que o que se analisa não é o comportamento do bicho, mas o afeto do humano por ele. “Por isso não tem nenhuma distinção jurídica entre gato e cachorro.”

Guarda compartilhada

A recepcionista Guaciara Avila, 42, de Porto Alegre, divide há mais de cinco anos a guarda da beagle Julie e do vira-lata Kowalsky com o ex, com quem viveu uma união estável. “O relacionamento não deu certo e nenhum de nós queria abrir mão. Então procuramos da melhor forma garantir que os dois ficassem com eles.” Recorreram então a uma advogada e optaram por entrar na Justiça para estabelecer em comum acordo uma guarda compartilhada que tivesse caráter oficial.

O processo levou cerca de um ano para ser resolvido. “Na época, os advogados nos explicaram que os cães eram vistos como objetos. Provavelmente, se não tivéssemos um acordo e decidíssemos partir para o litígio, cada um teria que escolher ficar com um dos cães e vida que segue. Mas a gente não queria deixar de ter convívio com nenhum deles.” Segundo Avila, o processo foi o primeiro de separação no Rio Grande do Sul em que os pets foram tratados por um viés afetivo, e não meramente legal. “Fico muito feliz porque ajudamos outros casais a não precisarem ficar longe de seus pets depois que separam.”

Arquivo pessoal

Nas regras do contrato, eles também combinaram de comprar a mesma marca de ração e dividir todos os custos veterinários — como no caso de uma cirurgia recente de Julie. No início, os pets trocavam de casa a cada uma semana, mas os donos foram percebendo que o período era curto para a adaptação dos bichos. Assim, o combinado passou a ser a cada 15 dias. “Se eu estou com os cães, fico responsável por levar até ele. Se estão com ele, é ele quem traz até mim. E tem funcionado assim.” Avila garante inclusive que todo o pouco contato que tem com o ex atualmente se resume a resolver as necessidades dos pets.

Os bichos foram até pivôs do novo casamento da recepcionista, em 2017. Embora Kowalsky seja em geral mais receptivo — “para qualquer um ele balança o rabo” –, Julie, talvez devido à origem como cão de caça, tem um comportamento mais protetor. “Eu brincava que, se tivesse aprovação da Julie, a gente ia dar certo”, conta Avila. Logo que ele entrou na casa, porém, a beagle expressou seu consentimento ao se aninhar no colo do atual marido da gaúcha. E os dois seguem juntos até hoje. “É difícil tu abrir mão de alguém que tu ama”, conta a gaúcha. “Eu não tenho filho, só enteado, então meu instinto materno foi tocado pela primeira vez pelos cachorros. Eu não me vejo sem eles.”

Pensão alimentícia e carga emocional

Apesar do exemplo de Avila, casos de guarda alternada decididos no tribunal ainda são relativamente raros, como diz a advogada Danielle Corrêa. “Normalmente isso acontece quando há um consenso. No litígio, é mais complicado decidir dessa forma.” O mais comum, segundo ela, é que uma das partes acabe responsável pelo bicho enquanto a outra presta auxílio com custos veterinários e de alimentação. Também é raro que juízes concedam o pagamento de pensão para manter o pet, afirma a advogada.

Para Bernardina, o pedido de pensão alimentícia é polêmico e não costuma ser aprovado no tribunal por uma questão de uso do termo correto. “Um pedido de auxílio financeiro tem sido melhor recebido. Não existe nada na legislação dispondo sobre pensão alimentícia para o animal, mas, quando você compra um bicho, passa a ser responsável por ele. Se o casal se separa, continua obrigado a mantê-lo”, declara a advogada. Atualmente, um pedido do tipo está sendo analisado pela primeira vez no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, caso aprovado, pode criar uma nova jurisprudência. Trata-se de um requerimento de pensão alimentícia para quatro cães comprados ao longo da vida conjugal de um casal, que agora está se divorciando.

Para Bernardina, é função do advogado tentar minimizar ao máximo os conflitos no momento da separação, buscando uma solução amigável em vez do litígio. Muitas vezes, ela aponta, até casos que começam no tribunal terminam com um acordo, já que esses processos podem levar anos para se resolver.

“As pessoas consideram o pet como um filho, então o litígio vem com a mesma carga emocional que já é inserida no próprio divórcio, com o peso da separação e do distanciamento do pet”, conta Danielle Corrêa. Ela lembra também que o juiz não sabe a dinâmica doméstica e nem as preferências do animal. Portanto, quem está apto a tomar as melhores decisões são os próprios donos, que têm mais experiência com essa relação. “Se chegam num consenso, isso faz bem não só para eles, mas para o próprio animal. O pet tem mais afinidade com quem toma conta dele, é o pet quem escolhe.”

O Batman de Manaus

Se nem todo herói usa capa, Rocha faz questão até hoje de que Bruce Wayne, que ganhou o Rocha como segundo sobrenome, passeie pelas ruas de Manaus vestindo sua peça estilizada do Batman ou uma bandana inspirada no personagem dos quadrinhos. Desde que adotou o vigilante de Gotham na versão canina, Rocha também virou pai de outros oito pets: seis cachorros e duas gatas. O publicitário começou a trabalhar em 2016 como voluntário da causa animal e afirma ter libertado 630 animais em situação de maus-tratos ou abandono na capital do Amazonas. “Todos os bichos que peguei depois dele foram em situação de rua. São os que ficaram, porque nem todos têm a sorte de conseguir um lar.”

Em maio, ele deve formalizar a criação do Instituto Bubu, nome carinhoso pelo qual costuma chamar o chow-chow Bruce. “Teve que ser com o apelido, porque se fosse pelo nome de registro, ia dar uns probleminhas”, brinca. A adoção de Bruce, segundo ele, mudou sua vida e o inspirou a atuar na causa. “A questão da guarda aumentou ainda mais o amor que tenho por ele, e acabou sobrando para os outros animais.”

Aparentemente fofinho, Bruce é também genioso e geralmente demonstra afeto apenas no seio familiar — “outras pessoas precisam deixar ele cheirar, se aproximar antes”. Um cão bastante caseiro, segundo o próprio dono, Bruce dorme no ar-condicionado e vive à base de água filtrada e ração super premium. No dia da entrevista, estava completando sete anos de idade, data que comemorou com um bolo feito especialmente para ele. Apesar de, num primeiro momento, ter cortado totalmente o contato, o ex-namorado de Rocha foi voltando a visitar o chow-chow com o tempo, e hoje o vê de forma esporádica. “Já aconteceu até de eu precisar viajar e o Bruce ter ficado na casa dele”, conta.