Como os animais sonham? — Gama Revista
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Reportagem

Com o que sonham os animais?

Série de pesquisas recentes aponta que, assim como os humanos, animais também podem ser capazes de sonhar

Leonardo Neiva 31 de Julho de 2022

Com o que sonham os animais?

Leonardo Neiva 31 de Julho de 2022
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Série de pesquisas recentes aponta que, assim como os humanos, animais também podem ser capazes de sonhar

Elas podem até não ser inteiramente comprovadas pela ciência, mas todo pai de pet tem várias certezas sobre seu bichinho. Uma das mais polêmicas é a de que ele é capaz de sonhar. Basta o cãozinho começar a mexer as patas como se estivesse correndo — só que na horizontal — que qualquer um já imagina que o animal está perseguindo alguma bolinha ou correndo atrás do dono no mundo dos sonhos. No caso específico dos gatos, quando os bigodes passam a tremer freneticamente, pensamos que o felino está observando um inseto, mesmo de olhos bem fechados.

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Mas será que esse é um daqueles casos em que, como seres humanos, projetamos nossas próprias experiências e vivências, em outros animais que têm suas próprias peculiaridades? Ou é um exemplo de que, às vezes, as coisas são exatamente o que parecem?

“É provável que movimentos menores ou mais vagarosos que seu pet faz não indiquem que ele está sonhando, mas que ações típicas de uma corrida frenética ou de saltos sim”, afirma a professora de psiquiatria de Harvard Deirdre Barrett, autora dos livros “Committee of Sleep” (Comitê do Sono) e “Pandemic Dreams” (Sonhos Pandêmicos), ambos ainda sem tradução para o português. Segundo ela, movimentos oculares quando as pálpebras estão fechadas, assim como no sono humano, também podem indicar que o bichinho está sonhando.

No livro “When Animals Dream” (Quando os Animais Sonham, ainda não publicado no Brasil), o filósofo David Peña-Guzmán, pesquisador de história dos estudos sobre animais na Universidade do Estado de San Francisco, diz que a dúvida sobre os sonhos de outros animais desperta o interesse humano pelo menos desde que Darwin publicou seu “A Origem das Espécies”, lá em 1859. “Os proponentes da teoria da evolução, em alta na época, começaram a divulgar a ideia de que os animais compartilham muitas das habilidades mentais antes consideradas exclusivamente humanas, incluindo a capacidade de sonhar.”

O assunto teria continuado a ocupar lugar de destaque entre estudos e debates científicos até a virada para o século 21, quando, segundo Guzmán, “as ciências de vida adotaram uma nova atitude — mais distante e fria — que levou as novas gerações de cientistas a se distanciarem de seus antecessores e acusá-los de projetar habilidades humanas em animais.”

Ainda que não tenha havido nenhum posicionamento oficial da ciência nesse sentido, o pesquisador afirma a Gama que essa mudança integrou um movimento para estabelecer uma espécie de hierarquia no mundo animal. Uma tendência na qual os humanos, é claro, ocupariam a posição mais alta. “Mesmo cientistas que se afastam dessa forma antropocêntrica de pensar o mundo só o fazem com muitas limitações”, conta Guzmán. “Há aqueles que acreditam que somente os grandes macacos são capazes da complexidade mental do sonho. Outros dizem que apenas os mamíferos conseguem sonhar.”

No início da década de 1990, no entanto, cientistas do mundo todo começaram a colocar em questão essa caverna de limitações sobre os estudos dos animais na qual a ciência parecia ter se entrincheirado. A partir desse período, as pesquisas sobre as emoções animais entraram em rápida ascensão — o primatólogo Frans de Waal, que deu entrevista a Gama, é hoje um dos principais expoentes dessa tendência. Nos últimos anos, a possibilidade de nossos colegas de espécies distintas viajarem a outros universos durante o sono também vem ganhando destaque em pesquisas. Foi o que abriu caminho para que, em 2019, um polvo fêmea chamad Heidi atraísse a atenção do mundo.

Um polvo sonha com um caranguejo

Na época, Heidi passou a ocupar uma posição bastante rara para um polvo: a de um animal doméstico. A experiência foi documentada numa série de TV americana, “Octopus: Making Contact” (Polvo: Fazendo Contato), que acompanhou o cotidiano de Heidi e sua relação com a família do biólogo marinho David Scheel, com quem passou a viver. Um trecho específico do programa, no entanto, recebeu grande destaque e virou um verdadeiro hit nas redes sociais.

Ao notar que Heidi começa a se movimentar e mudar de cor durante o sono, Scheel sugere que estamos acompanhando o polvo sonhando em tempo real. E, mais do que isso, decide recriar de forma hipotética seus sonhos submarinos.

Quando sua coloração toda branca começa a se pintalgar de amarelo, o biólogo diz que ela pode ter avistado um caranguejo em seu sonho. Então, Heidi subitamente adquire uma cor amarronzada por todo o corpo. “Polvos fazem isso quando deixam o fundo do mar”, ele explica no vídeo. Nesse ponto, o cientista supõe que ela subiu para capturar e subjugar o caranguejo. Em seguida, quando seu corpo ganha uma teia intricada de cores e padrões, metamorfose típica de quando o animal quer se camuflar, Scheel afirma que ela pode estar tentando passar despercebida enquanto come sua presa. “Ser capaz de ver todos esses padrões de cores surgindo dessa forma uns após os outros… Você normalmente não vê isso quando os animais estão dormindo, o que é realmente fascinante”

Em entrevista a Gama, Scheel revela que, além das rápidas mudanças de cor e textura da pele, também foi possível identificar um rápido movimento dos olhos de Heidi, o que apontaria um padrão de sono ativo. “As pessoas se contorcem e movem os olhos rapidamente de maneira similar durante o sono REM”, declara. O REM, aliás, é um momento do sono geralmente caracterizado por uma maior quantidade de sonhos em seres humanos.

Se os bichos pudessem falar…

Devido às suas condições únicas, os polvos costumam estar no foco das pesquisas atuais envolvendo o sono e os sonhos dos animais. Foi justamente por causa das mudanças na pele, bem específicas e identificáveis, que Scheel pôde inclusive brincar de reconstituir aquilo com que Heidi sonhava. “Quando humanos têm sonhos em movimento — com uma partida de tênis, por exemplo –, nossos rápidos movimentos oculares acompanham a movimentação do sonho. Se os padrões corporais dos polvos seguem as mesmas circunstâncias, isso nos revelaria algo sobre o conteúdo de seus sonhos. Nenhuma outra espécie possui essa característica fantástica na pele”, diz o biólogo.

Em comparação com os humanos, os sonhos dos animais apresentam uma barreira um tanto óbvia para estudos e pesquisas. Nenhum deles pode abrir a boca para nos contar o que ou como costuma sonhar. Ainda assim, o cientista afirma que é possível estabelecer uma relação forte com os sonhos humanos. “Os humanos dormem e os animais também. O sono humano tem duas fases, assim como o dos animais. E a atividade neural de humanos e animais durante o sono repete alguns dos mesmos padrões que existem quando eles estão acordados”, lista o biólogo.

Em seu livro, o pesquisador David Peña-Guzmán reúne uma série de evidências científicas do passado para afirmar que os animais certamente sonham. Entre elas, há o caso da chimpanzé Washoe, primeiro animal do mundo a aprender a se comunicar com a linguagem de sinais. Durante o período REM do sono, a símia chegou a formular de forma nítida em ASL, a língua de sinais americana, os movimentos que se traduzem na palavra “café”.

De acordo com Guzmán, existem três tipos de evidências que provam a capacidade dos animais de sonhar. O primeiro já foi apresentado aqui na reportagem: a observação de como eles movimentam seus corpos durante o sono REM. “De repente, começam a apresentar diferentes tipos de comportamento, como falar, andar, correr ou até lutar contra inimigos imaginários.” A principal dificuldade de analisar essas evidências, explica o pesquisador, é que normalmente esses movimentos são apenas parciais e pouco conclusivos.

Outra categoria é a análise de como o cérebro dos animais se comporta nesses momentos. “No livro, falo sobre o pássaro mandarim, que repete o mesmo padrão neural de quando está praticando seu canto, só que durante o sono.” E a última, segundo Guzmán, se refere a como os bichos se comportam após uma intervenção cirúrgica no cérebro. Aqui ele evoca um experimento da década de 1950 que retirou uma parte do cérebro de gatos responsável pela paralisia do corpo durante o sono — um experimento que hoje não poderia ser realizado por questões éticas. Com isso, os movimentos dos animais se tornaram muito mais lógicos e organizados no período de sono REM.

O sono do melhor amigo do homem

A médica veterinária Cecília Carreiro, que é pesquisadora do comportamento animal na Universidade Eötvös Loránd, na Hungria, foi recentemente uma das autoras de um estudo sobre como o apego dos cachorros a seus donos afeta a qualidade do sono dos animais. No experimento, os cientistas levaram cães para dormir com seus donos em lugares desconhecidos para eles. Aqueles que tinham um vínculo de apego mais forte passaram mais tempo em sono profundo — ou seja, um descanso tranquilo e relaxado.

Para Carreiro, o estudo dos cães tem vantagens até mesmo sobre pesquisas focadas em parentes mais próximos dos humanos, como gorilas e chimpanzés. Isso porque, diferentemente dos símios, os cachorros têm vivido ao nosso lado há dezenas de milhares de anos. “Para isso, eles tiveram que aprender a nos ‘ler’ e criar vínculos sociais e emocionais conosco”, afirma. “Os cães têm uma disposição natural de colaborar conosco e, mesmo sem treinamento, são os animais mais fáceis para se estudar de forma não invasiva.”

A pesquisadora aponta que uma diferença entre o sono humano e o dos cães é que, enquanto nem sempre acordamos após a fase REM do sono — o que nos impede de lembrar a maioria das coisas que sonhamos durante a noite –, os cachorros costumam despertar com frequência depois de experimentar um estado de sono mais profundo. Com base na ideia de que os sonhos são também mecanismos que nos ajudam a fixar e aprender melhor o que vivemos durante o dia, ao revivê-lo à noite, Carreiro relata uma experiência que testou esse mesmo padrão em cães. No estudo, os pesquisadores tentaram ensinar algo novo aos cães e os deixaram dormir, medindo seus parâmetros REM. Depois que os animais acordaram, mensuraram o quanto ele foram capazes de reter desse novo aprendizado. “Os resultados mostram que novos comandos positivos estão ligados a padrões de REM semelhantes a sonhos em humanos e associados à melhor aprendizagem desses comandos nos cães.”

Do que são feitos os sonhos dos bichos?

A partir dessa correlação com os hábitos que os animais mantêm quando acordados, é possível inferir até mesmo aquilo com o que eles estão sonhando, diz Guzmán. “Durante o sono, por exemplo, alguns ratos conseguem lembrar o caminho que fizeram num labirinto quando acordados”, aponta. Nesse caso, pesquisadores conseguem até apontar o lugar exato no qual esses roedores acreditam estar dentro do labirinto em seus sonhos. “É o tipo de coisa que você esperaria ver num romance de ficção científica ou fantasia.”

Quanto a outros animais, que são objetos menos constantes de estudo, o filósofo e pesquisador reconhece que há muitas barreiras e que talvez nunca tenhamos acesso àquilo que eles costumam sonhar. “E talvez nem devêssemos saber o que sonham, de uma perspectiva filosófica. Afinal, esse acesso não é essencial para que possamos reconhecer a importância do fato de que sim, eles sonham.”

Partindo da ideia de que sonhos humanos refletem aquilo que mais nos preocupa quando estamos acordados, dá para supor que o mesmo acontece com outros animais, de acordo com a professora de Harvard Deirdre Barrett. Embora não exista uma tecnologia que nos permita espiar aquilo que vemos durante o sono, a pesquisadora aponta que existem vários grupos no mundo estudando o tema. Um exemplo está na Universidade de Quioto, no Japão, onde pesquisadores começaram a mapear como nossa visão responde a determinadas imagens. O objetivo é deduzir, através de sinais cerebrais emitidos durante o sono REM, qual o conteúdo do que sonhamos. “Teoricamente, poderemos aplicar no futuro essa técnica para ver de forma crua o que animais sonham.”

Uma das poucas coisas que dá para apontar com certeza em relação ao conteúdo de alguns sonhos é que eles não são nada agradáveis. Fatores como aumento na frequência cardíaca ou o desajuste do ciclo do sono — que pode fazer com que, assim como a gente, o animal acorde num estado de pânico — são indicadores de que os bichos também têm pesadelos. “Quando elefantes testemunham alguma cena violenta, como sua mãe sendo morta por humanos, os animais mais jovens podem perder a habilidade de dormir. Porque, assim que caem no sono, são imediatamente acordados pelas memórias traumáticas que parecem vir na forma de pesadelos”, conta Guzmán. Ele reforça, porém, que há um limite ético quando se fala em estudar os pesadelos no mundo animal. “Você precisa literalmente traumatizar o bicho para gerar esse tipo de sonho.”

Em sua pesquisa, o filósofo vai ainda mais longe e afirma que a existência de sonhos é uma prova de que os animais também possuem uma consciência. “Sonhar é gerar um mundo vivido de uma perspectiva particular, o que supõe a consciência individual de que algo está acontecendo. Portanto, sonhar é estar consciente de algo, do mundo dos sonhos.” Para ele, a conclusão deveria levantar questionamentos éticos sobre a relação entre homens e animais, e quão mal temos tratado nossos colegas neste mundo. “Não que os animais precisem sonhar ou ter uma consciência para serem importantes do ponto de vista moral. Mas, a partir do momento em que a capacidade de sonhar indica uma consciência, dá para dizer que os bichos são seres que devem ser tratados de um ponto de vista moral.”