A maconha e seus objetos
Com decisão recente que descriminaliza aparelhos para cultivo doméstico, objetos para plantar e consumir maconha não são proibidos no Brasil — mas planta ainda é
No mês de setembro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu a letra: ter objetos para cultivar maconha em casa não configura crime, desde que seja para consumo próprio. Com essa decisão, a instituição trancou parte da ação penal que foi movida contra um homem denunciado por plantio doméstico de maconha e extração de óleo de haxixe — ele ainda responde ao processo pela posse das drogas em si.
A ação se baseava no artigo 34 da Lei de Drogas, de 2006, que prevê prisão de três a dez anos para quem possuir equipamentos comprovadamente utilizados na fabricação de entorpecentes. Na prática, a decisão comprova que esse artigo está diretamente ligado ao crime de tráfico, e não deve ser aplicado para quem produz apenas para uso pessoal.
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Em alguns casos, na falta das drogas no local do crime, as dimensões da aparelhagem poderiam mostrar, ainda assim, que a produção envolvia o consumo de terceiros. “É como se eu quisesse matar alguém com uma facada. A faca faz parte do ato preparatório. Mas a mera compra da faca não é crime, é preciso demonstrar que houve uma conduta considerada atípica”, explica a advogada Mariana German, que atuou na defesa do acusado.
Segundo Mariana, um dos maiores problemas é que não existe no artigo 34 qualquer informação que especifique que ele cabe apenas para os casos de tráfico. Tanto que a alegação da defesa passou pelo juiz, pelo Tribunal de Justiça do Paraná, onde a ação foi julgada, e só foi ser reconhecida ao chegar no STJ.
Ações penais como essa ainda são raras no Brasil, e a decisão parece ser a primeira do tipo no país. “Fizemos uma varredura na jurisprudência nacional. Foi a primeira decisão que encontramos que reconhece que o artigo 34 se volta ao tráfico, e não ao usuário.”
Mas que fique claro: a decisão não tem nada a ver com liberar o cultivo doméstico de maconha por aqui. A questão, aliás, não foi sequer incluída no processo. Até porque possuir os equipamentos para plantar –vasos, pás, sementes, fertilizante, etc. — pode até não ser crime, mas as drogas e as plantas, sim.
Há um grande desconhecimento sobre o autocultivo, o consumo e tudo que circunda o uso pessoal de cannabis
Para a advogada, a falta de critérios objetivos para identificar o limite entre consumo próprio e de terceiros acaba deixando a questão na mão das autoridades, como policiais, delegados, promotores e juízes. Não há na lei uma indicação sobre quantos gramas de maconha configuram consumo próprio, como acontece em outros países. “Aí as regras que vão acabar operando são as do preconceito de raça, social e de local de moradia. Temos um sistema criminal seletivo, racista e classista.”
Ainda assim, Mariana considera que a decisão deve ter um impacto relevante. “Com um cultivo doméstico cada vez maior [com liberações do plantio para uso medicinal], devemos ver também cada vez mais denúncias”, explica. Um elemento importante da decisão, segundo ela, foi o reconhecimento — um tanto redundante, é verdade — de que quem cultiva necessariamente precisa ter os equipamentos para isso.
“Pode até parecer uma obviedade, mas a realidade é que a maioria das autoridades não entende nada de drogas. Há um grande desconhecimento sobre o autocultivo, o consumo e tudo que circunda o uso pessoal. Essa decisão deve servir para impedir que essas pessoas sejam criminalizadas pelo artigo 34.”
Jardim de casa
Diagnosticado desde os seis anos com artrite reumatoide, uma doença inflamatória crônica que afeta as articulações, o psicólogo carioca Hugo Gomes, 45, fez uso de diversas medicações ao longo da infância e adolescência até descobrir a cannabis na idade adulta. Depois que começou a usar regularmente, a necessidade de outros remédios diminuiu consideravelmente, até que passou a usar apenas os derivados da planta. Com o tempo, foi sentindo menos dores — ele chegou a fazer cinco cirurgias e colocar prótese no fêmur, corroído pela doença — e se tornando mais ativo no dia a dia.
Foi junto à associação ABRACannabis que ele aprendeu como cultivar em casa. “Pedi autorização da Anvisa para importar o óleo de cannabis, mas não foi tão eficaz quanto os que as associações daqui estavam fazendo. Precisava de uma erva de mais qualidade e só teria acesso a isso se eu mesmo cultivasse. Também é essencial para mim ter um cultivo da cannabis natural porque fica muito caro para importar com frequência.”
No entanto, durante uma reforma em casa, acabou sendo alvo de uma denúncia anônima. Ele e um funcionário, que o ajudava com a plantação, foram presos. No local, a polícia encontrou materiais para o cultivo, além de folhas da planta e preparados para produzir o óleo. Apesar de explicar o motivo, ele passou uma noite na prisão e só recebeu a liberdade provisória no dia seguinte. “Passei uma vivência terrível. Sou deficiente, e na prisão tive que ficar de pé olhando para a parede por quase 3 horas, enquanto enchiam a salinha com outros prisioneiros”, relembra.
Ele também conseguiu um habeas-corpus para plantar a cannabis legalmente, mas acabou perdendo todas as plantas que tinha. Só graças a doações feitas pela ABRACannabis ele não precisou interromper o tratamento.
“Pelo contato que tive com três juízes, percebi que o jurídico entende muito bem a importância disso. Agora, no país ainda existe muita ignorância, muitos tabus, lugares em que a cannabis ainda é considerada uma droga perigosa, e não uma medicação.”
A cannabis no tribunal
Um dos advogados que ajudaram Hugo a ver sua plantação doméstica liberada, Emílio Figueiredo é visto hoje no país como uma das principais autoridades na liberação do cultivo da cannabis para fins medicinais. Para ele, a prática não só evita que pacientes precisem recorrer ao mundo do crime para conseguir a substância, como garante a qualidade do produto, que é cultivado em condições que buscam replicar as da natureza.
Na contramão de algumas reivindicações do setor, o advogado acredita que não é necessário incluir na lei critérios objetivos, como a quantidade da droga, para diferenciar uso pessoal de tráfico. “Pode ser que uma pessoa consuma mais que outra, e por isso precisa produzir em maior quantidade. O que as autoridades precisam é provar que a cannabis está sendo comercializada e que aquilo deve causar prejuízo à saúde pública.”
O conhecimento dos advogados vem surtindo efeito em magistrados e no Ministério Público, com decisões que desclassificam a acusação de tráfico
A decisão do STJ representa uma evolução do debate sobre o cultivo para o campo da redução de danos, na opinião de Emílio. Isso porque o cultivo doméstico reduziria os danos para a sociedade, por não participar do mercado ilegal, e ao indivíduo, que sabe o que está consumindo, como a planta foi cultivada, armazenada e transportada.
E, segundo ele, até nos tribunais a questão tem avançado. “Nas ações penais, os advogados têm trazido defesas técnicas, com um conhecimento específico da maconha muito grande. A ação desses advogados foi o objeto de pesquisa do meu mestrado, e percebi que esse conhecimento também vem surtindo efeito em magistrados e no Ministério Público, com muitas decisões que desclassificam a acusação de tráfico.”
Tabaco ou maconha
Embora o consumo de maconha ainda seja crime no Brasil, objetos como seda, dichavadores ou piteiras são vendidos legalmente por várias empresas do país — até porque seu uso pode ter outras finalidades, como o consumo do próprio tabaco. O empreendedor Fabrício Penafiel, fundador da Bem Bolado, uma das principais empresas do setor de produtos e acessórios para fumo, diz que não pode comercializar seu produto diretamente para o consumidor de maconha — embora a maior parte dos que compram usem para essa finalidade.
Nas redes sociais, porém, a empresa tem forte atuação ativista a favor da maconha. Uma postagem recente no Instagram, por exemplo, dá dicas de oito leituras relacionadas à cannabis. “Nosso segmento no Brasil não é bem regulamentado”, explica. “Quando não tem lei falando que não pode, não é proibido.” Mas nem por isso a empresa deixa de se precaver.
“Pago advogado por mês, porque a gente beira a apologia, que aí sim é crime”, afirma Fabrício. “Não posso dar nenhum comando do tipo ‘fumar é bom’, tem que ser algo informativo, jornalístico. Estamos sempre andando na beira do precipício.”
Cada vez mais vejo essas pessoas caretaças usando cannabis medicinal
Emílio reforça que o marketing da maior parte das empresas do setor no país é “oficialmente” para quem fuma tabaco e gosta de enrolar cigarro. Para ele, fazer a associação à cannabis seria um ato de coragem, mas também um grande risco. “Você pode defender a legalização, criticar a proibição, mas não incentivar nem fazer apologia. Seria a defesa de um ato criminoso, porque portar ainda é crime.”
Segundo Fabrício, no Brasil o que diferencia usuário de traficante, na visão das autoridades, ainda é a cor da pele e o dinheiro na conta. “Se eu for pego na rua com um dos nossos produtos, nada acontece. Sou só viciado. Se um pobre favelado for encontrado com seda no bolso, vai preso.”
Ainda assim, o avanço da cannabis medicinal por aqui vem trazendo aos poucos mais consciência e conscientização para um público que antes era terminantemente contra a maconha, na opinião do empreendedor. “Cada vez mais vejo essas pessoas caretaças usando cannabis medicinal. Na minha bolha da zona oeste de São Paulo, todo mundo idolatra a cannabis.”
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