Os brasileiros que trabalham com maconha no exterior — Gama Revista
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Uma turma

Exilados da maconha

Da biomédica a “budtender”, conheça histórias de profissionais brasileiros que, frente aos entraves legais no país, foram se dedicar à cannabis no exterior

Betina Santos Neves 02 de Maio de 2021
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Exilados da maconha

Da biomédica a “budtender”, conheça histórias de profissionais brasileiros que, frente aos entraves legais no país, foram se dedicar à cannabis no exterior

Betina Santos Neves 02 de Maio de 2021

Com os ares da regularização soprando com mais força nos últimos anos, a maconha tem formado em ritmo acelerado um robusto mercado com muitas ramificações e áreas de atuação. Segundo o último relatório do The Global Cannabis Report, feito pela agência americana Prohibition Partners, ele deve movimentar US$ 103,9 bilhões em 2024. Nos Estados Unidos, já há cerca de 250 000 pessoas trabalhando no mercado legal da maconha.

No Brasil, independentemente das decisões legais que seguem pendentes, vêm surgindo cada vez mais novas iniciativas. Já é possível trabalhar com maconha em plataformas de conteúdo, cursos e eventos, fabricação e venda de produtos para consumo e atividades que orbitam ao redor da maconha medicinal – área impulsionada pela decisão da Anvisa de 2019 de permitir a venda de remédios à base de cannabis em farmácias. Há algumas empresas incipientes nas indústrias têxtil (com roupas produzidas a partir da fibra do cânhamo) e alimentícia (com, por exemplo, cervejas infusionadas com terpenos, substâncias que conferem aroma às plantas e que podem ser manipuladas no Brasil).

Porém, a regulamentação vigente – que implica na proibição do cultivo -, somada ao estigma e à desinformação a respeito da planta, fazem com que as possibilidades ainda sejam limitadas. Nesse contexto, alguns brasileiros foram buscar oportunidades em países onde o trato com a cannabis já é mais maduro. As histórias misturam paixão pessoal, ativismo, saúde e empreendedorismo, e mostram que, nesse universo, é difícil dissociar uma coisa da outra.

  • Barbara Arranz

    A biomédica se mudou para a Espanha para montar sua empresa de cosméticos canábicos

    A maconha entrou com tudo na vida de Barbara Arranz, de Mogi das Cruzes (SP), quando o filho mais novo dela foi diagnosticado com Síndrome de Asperger. Com alguma pesquisa, ela descobriu que talvez a cannabis pudesse ser útil ao caso do menino, e, com ajuda da Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), conseguiu o óleo fitoterápico. “A melhora dele foi incrível e me despertou o interesse por saber mais”, conta. Bárbara, então estudante de biomedicina, passou a se debruçar sobre o conhecimento científico disponível, ainda escasso na época. Começou a preparar sozinha o óleo para o filho e fez o trabalho de conclusão de curso sobre o uso da maconha em pessoas com Alzheimer.

    Depois de um curso sobre tratamentos com cannabis na Learn Sativa University, na Flórida, ela começou a testar misturas caseiras para cosméticos e distribuir para amigos e conhecidos. “Quando a demanda começou a escapar das minhas mãos, comecei a pesquisar onde poderia viabilizar um negócio. Como já tínhamos o passaporte espanhol na família, decidimos ir para a Europa.”

    Ela, o marido e os três filhos desembarcaram em Madri no começo de 2020. Bárbara estava começando a contatar cultivadores (que estão na Itália e em Portugal, já que na Espanha não é permitido plantar) e fornecedores quando a pandemia veio à tona. Mesmo assim, a Linha Canábica da Bá nasceu e prosperou. Depois de pouco mais de um ano, ela dispõe 22 produtos – os carros-chefes são o óleo de CBD, o creme de massagem, o lubrificante e a linha de skin care. “Só para o óleo medicinal eu tenho 1500 pacientes fixos com entre 3 e 98 anos de idade”, conta.

    Os 25 funcionários que ela tem no Brasil (são mais 30 na Espanha, para atender o mercado de lá) ficam responsáveis por fazer os trâmites legais, já que mesmo para comprar um shampoo à base da planta é necessário ter receita médica e autorização da Anvisa para importar o item. Pela dificuldade do processo, Bárbara deve lançar em breve uma linha exclusiva para o Brasil com produtos infusionados só com terpenos (óleos aromáticos), que já são liberados para uso. No perfil da marca no Instagram, que soma 110 mil seguidores, ela fala dos benefícios da cannabis para a saúde. “Tenho muito cuidado com o conteúdo publicado, porque para mim é muito importante promover a conscientização em relação à maconha. Ainda temos um longo caminho para que ela chegue em quem precisa em grande escala.”

  • Gustavo Souza

    O chef capixaba foi para o Uruguai e virou referência na culinária canábica

    Todo 29 do mês é dia de servir o “nhoque 420”, com molho de quatro queijos infusionado com óleo de cannabis, uma das criações mais pedidas de Gustavo Souza. O chef é mais conhecido como Gustavo Colombeck, “sobrenome” que surgiu quando os amigos brincavam sobre sua habilidade de incluir “um beck em qualquer situação”. No menu também tem o “espaguete space”, massa temperada com “orégano” de flores de maconha desidratadas, e a “nuvem green”, um doce de claras com morango, caramelo e chocolate salpicado com cristais de cannabis. A dose de THC e CBD, as substâncias mais conhecidas da maconha, variam segundo o gosto do freguês.

    Gustavo já estudava gastronomia e trabalhava em restaurantes em Vitória (ES), quando comeu um brownie de maconha em uma festinha e pensou: será que não dá para fazer mais do que isso? Com essa ideia em mente, juntou dinheiro e, no começo de 2017, se mudou para o Uruguai, onde o consumo e a produção individual é legalizado. Foi a princípio trabalhar em um hostel em Montevidéu, onde testava suas receitas. “Depois, comecei a vender alfajores de maconha em feiras de rua e espalhar folhetos anunciando minhas ‘cenas canábicas’, jantares privados que eu oferecia na casa das pessoas”, conta ele.

    A coisa cresceu rápido com a divulgação nas redes sociais e o apoio de influenciadores do meio, como o site Hempadão, e, menos de um ano depois, ele já estava bem conhecido. Foi aí que foi convidado para passar uma temporada na Europa – foram 8 meses em Barcelona cozinhando em eventos privados para clubes canábicos e a marca espanhola Cali Terpenes.

    Gustavo voltou para o Uruguai em 2019. Como não é permitido ter um restaurante de culinária canábica no país, ele alugou um imóvel em Montevidéu e começou a organizar eventos para grupos de até dez pessoas. Depois, mudou o projeto para uma casa a 800 metros da praia no pequeno vilarejo de La Coronilla. Ali, ele cultiva a própria maconha, dá cursos, organiza jantares, faz degustações e hospeda até oito pessoas de uma vez.

    De lá para cá, recebeu mais de 3 700 visitantes, entre franceses, alemães, argentinos, chilenos e brasileiros. Com a pandemia e as fronteiras fechadas, parou temporariamente com a hospedagem, mas segue com os eventos para o público uruguaio. Ironicamente, Gustavo mora há apenas 20 km da fronteira com o Brasil, para onde ele dirige para comprar ingredientes e falar com a editora gaúcha que vai publicar seu primeiro livro, o “Manual da Culinária Canábica”, com 45 receitas, previsto para este ano. “Vejo pouca coisa mudando no Brasil, o que não me dá vontade de voltar. A liberdade de lidar com a planta aqui não tem preço.”

  • Luna Vargas

    A antropóloga e expert em maconha virou “budtender” em Vancouver

    Quando a legalização da maconha no Canadá  foi anunciada em 2018, a antropóloga goiana Luna Vargas não resistiu: decidiu ir ver de perto. Ela vinha de anos de pesquisa sobre a cannabis na ciência e na cultura, que começou no Brasil e aprofundou durante um mestrado na França. Luna passou por vários países – Jamaica, Marrocos, Holanda, Estados Unidos – para entender melhor esse universo. De volta ao Brasil, começou a fazer seus próprios experimentos cultivando maconha em casa e manipulando infusões e óleos para amigos e conhecidos. “Quando soube que o Canadá ia legalizar, eu quis presenciar esse movimento. Fui para ficar alguns meses e acabei me mudando para Vancouver”, conta ela.

    Luna circulou entre a comunidade canábica da cidade, visitou fazendas, conheceu donos de “dispensaries” e, munida do seu já vasto conhecimento sobre a erva, conseguiu emprego em uma loja como “budtender” — atendente que tem a função de recomendar ao cliente qual produto é mais apropriado para a necessidade dele. “O budtenter é algo entre um atendente de loja e um farmacêutico, porque precisa falar de doses e efeitos”, diz. “Na minha experiência, a maioria das pessoas chegam buscando a maconha para lidar com ansiedade, depressão, insônia e dor crônica.”

    Hoje, Luna trabalha em outra loja, a Village Bloomery, com treinamento de budtenders e curadoria de produtos. Paralelamente, ela alimenta um perfil no Instagram com 20 mil seguidores onde compartilha conteúdo sobre política, saúde e cannabis e faz lives com pessoas do meio para o público brasileiro. Diante da demanda que percebeu ali, ela criou em 2020 a Inflore, que oferece um curso de ciência e indústria da cannabis — já foram duas turmas e 40 alunos.“O foco do meu trabalho é a educação. Aqui no Canadá, para aproximar a ciência do mercado, e, no Brasil, para abrir a cabeça das pessoas para as possibilidades da indústria da cannabis.”

  • Jonas Rossatto

    O paranense desenvolve sistemas para empreendimentos da maconha no Uruguai

    Há mais de 10 anos, Jonas Rossatto, de Pato Branco (PR), trabalha com tecnologia para o meio canábico, ora como ativista, ora como empreendedor. “Comecei despretensiosamente criando fóruns na internet quando era adolescente e tinha umas plantinhas em casa. Depois, esse mundo me engoliu”, conta. Alguns dos seus feitos foram ter começado o site Smoke Buddies, dito maior portal de notícias de maconha do país, e o site e aplicativo BudMaps, que elenca médicos que prescrevem cannabis no Brasil e mais lojas, coletivos, advogados e associações relacionados à cannabis de alguma forma.

    O Uruguai, onde vive hoje, não é o primeiro país para o qual ele emigra por causa da maconha. Em 2009, depois que a Suprema Corte argentina passou a considerar inconstitucional a penalização por porte de drogas para uso pessoal, ele se mudou para Buenos Aires, onde achou ser mais seguro plantar cannabis, mesmo ilegalmente. Passou três anos, cultivou mais de 90 plantas, participou das crescentes marchas da maconha no país (“a última que eu fui teve 115 000 pessoas!”) e voltou para o Brasil. Frustrado com o cenário político, ele foi de vez para o Uruguai em 2016, onde toca agora a empresa de tecnologia Cannabis Flow, focada em fornecer sistemas para headshops, farmácias e clubes canábicos. Ele se orgulha de ter resolvido o problema das filas nas farmácias, comuns no Uruguai há alguns anos pela alta demanda por maconha, com o aplicativo Reservar Cannabis.

    Em paralelo, Jonas cuida do clube de assinaturas O Canabista, voltado para o público brasileiro, através do qual o cliente recebe mensamente um pacote com acessórios, manuais explicativos e brindes. Ele ainda gere a empresa Weed Tour, que vende pacotes turísticos por locais relacionados à maconha no Uruguai (que está parada desde o início da pandemia). “Meu principal objetivo agora é fazer o setor evoluir dando suporte tecnológico para empresários e produtores. Acho que um jeito de quebrar o preconceito e fazer as leis andarem é mostrar como a maconha pode formar um mercado potente em setores diversos.”

  • Alice Reis

    No norte da Califórnia, a psicóloga e ativista pôde mergulhar no mundo da cannabis

    Alice Reis começou a usar maconha de forma terapêutica sem saber. A paulistana, que sofria de dores crônicas no corpo – o que mais tarde foi diagnosticado como a doença autoimune espondilite anquilosante –, começou a fumar por curiosidade na adolescência e acabou percebendo que, assim, amenizava as dores. Mais tarde, durante a faculdade de psicologia em São Paulo (SP), Alice começou a estudar psicoterapia com drogas psicodélicas e políticas de redução de danos. “Em 2015, criei com uma amiga o site Girls in Green para falar de cannabis e antiproibicionismo”, conta ela.

    Em 2017, foi para a Califórnia como turista e se encantou com o mundo de possibilidades que se abria com a maconha. Entre idas e vindas para o Brasil, começou a circular pelo meio: foi a copas de cannabis, passou temporadas em fazendas cuidando de plantações e fazendo “trimming” – como é chamado o processo de poda manual das flores – e trabalhou em laboratórios de extração sem solvente (processo que produz o chamado “haxixe ice”).

    Em 2019, foi de vez para cursar agronomia em uma faculdade na região de Humboldt County, uma das maiores na produção de maconha na Califórnia, que acabou trancando quando veio a pandemia. Hoje, ela vive com o marido americano na cidade de Sebastopol, 1h ao norte de San Francisco, cercada de maconha. Além de fazer trabalhos temporários por fazendas da região, ela trabalha com marketing e mídias sociais na marca Papa & Barkley, de óleos, cosméticos e outros produtos canábicos, e continua alimentando o Girls in Green. Em fevereiro 2021, o perfil do site no Instagram, com mais de 110 mil seguidores, foi derrubado pela segunda vez, mas já voltou ao ar.

    “É uma luta contínua para divulgar conteúdo de qualidade. Ainda temos uma escadaria gigantesca rumo a uma política de drogas eficaz e reparadora.”Alice vê com desconfiança os avanços agressivos da indústria da cannabis nos Estados Unidos, mas aproveita a liberdade que tem ali. No jardim de casa, ela cultiva algumas plantas para fazer experimentos com o parceiro. E, quando as dores voltam, ela resolve simplesmente indo à farmácia e comprando um adesivo tipo “Salonpas” de cannabis.