Acadêmicos da Cannabis: maconha na universidade — Gama Revista
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Acadêmicos da Cannabis

Enquanto estados norte-americanos liberam o uso recreativo e medicinal da maconha, os olhos de cientistas e estudantes brilham com a novas possibilidades de pesquisar a planta

Willian Vieira 29 de Março de 2020

Não faltam empregos no vicejante mercado norte-americano. Entre as vagas da empresa de recrutamento Hunter+Esquire há ofertas para engenheiro, chefe de marketing, diretor financeiro e CEO – com um detalhe: todas são para trabalhar com maconha. Na Vangst, maior plataforma de empregos do setor, posições para químicos especializados, diretores de extração de compostos e gerentes de cultivo pululam. Os salários chegam a US$ 250 mil por ano (mais de R$ 1 milhão) para candidatos com “alta qualificação”, o que significa ter experiência – e, de preferência, um diploma universitário.

Com 55 mil novas vagas abertas apenas em 2018 e previsões de que a indústria canábica movimente US$ 63 bilhões até 2025 só nos Estados Unidos, a profissionalização do setor tem ganhado o ensino superior. “Existe uma demanda clara por mais educação científica na área”, afirma Leah Sera, diretora do novo e concorrido “master em ciências médicas canábicas”, da Universidade de Maryland, que já preencheu todas as 150 vagas para a primeira turma no ano passado. “Nosso programa veio para ocupar essa lacuna educacional.”

A professora de botânica Carlyn S. Buckler, responsável pelo novo curso da Universidade Cornell, também está animada. “Pelos e-mails que recebi dos alunos – e as inscrições abriram faz poucos dias –, todas as 200 vagas serão ocupadas”, disse meses atrás. Criado no departamento de ciências das plantas, ele servirá não só aos alunos de biologia mas também aos de veterinária, administração, psicologia. “Vamos explorar a história, a farmacologia, as políticas públicas e os desafios legais.” O objetivo, afirma, é “equipar a nova geração para ter sucesso na indústria”.

Corrida ao ouro verde

Os tempos são outros para a indústria canábica. Bem além das lojas especializadas, com seus brownies e óleos de canabidiol (CBD), disponíveis no Canadá e em dezenas de estados norte-americanos – são mais de 3,2 mil estabelecimentos desse tipo nos Estados Unidos (só na Califórnia, o número saltou de 96 para 427 em cerca de um ano, segundo o Cannabiz Media – além de cenários promissores na Europa e no Uruguai, país pioneiro na legalização da erva na América, que legalizou o consumo, estatizou a produção e oferece a venda em farmácias.

Fato é que um universo de oportunidades surgiu para dar conta da demanda. De trimmers (cortadores de folhas) e budtenders (atendentes de lojas que vendem maconha medicinal e recreativa) a bioquímicos com formação específica e arquitetos e engenheiros especializados, o mercado reage a essa corrida ao ouro se profissionalizando.

Médicos, químicos, administradores, advogados – todos precisam dominar a complexidade de um mercado novo, com regulações em marcha. “Os candidatos mais qualificados são especialistas que entendem das outras facetas da indústria”, diz Buckler. “Independentemente de você querer ser pesquisador, produtor, investidor ou dono de negócio, é importante ter um conhecimento básico de todo o processo, da semente às vendas.”

Aula de maconha

Há cursos sendo pensados ou funcionando em ao menos oito instituições, como Harvard, Universidade de Denver e de Ohio. Alguns são curtos e específicos, outros técnicos e há até graduações completas, como a de química de plantas medicinais, que começou com apenas 22 alunos interessados em 2017 na NMU (Northern Michigan University), a primeira com diploma reconhecido no país, e hoje tem até 440 alunos por semestre.

Química 420 é o nome de uma das disciplinas obrigatórias. A referência ao horário universal dos maconheiros de plantão (4h20)+ é apenas um atrativo a mais. O currículo foca na análise quantitativa de compostos bioquímicos em laboratórios de ponta, como identificação de alcaloides e descrição de terpenos.

“Não é uma graduação fácil”, disse Alex Roth ao The Washington Post – ele trocou o curso de meio ambiente pelo de química canábica por sugestão da mãe. E não se arrepende. Espera ter salário garantido e participar de um momento histórico. “Quero estar na vanguarda da indústria e fazer parte da normalização da maconha.”

O entusiasmo é compartilhado por seu professor e diretor do programa, Brandon Canfield: “É uma época excitante”. E promissora para os interessados em Cannabis – o curso oferece aulas de marketing, contabilidade e administração para que os alunos abram os próprios negócios. “Mas o ânimo é ainda maior entre os professores”, diz Canfield. “Estou muito feliz em fazer parte disso.”

Fuma, mas não traga

Hoje, 33 estados e o Distrito de Columbia permitem o uso médico da maconha nos Estados Unidos, sendo que 11 deles, além de Washington D.C., liberam o recreativo. Outros debatem a liberação – então a necessidade de pesquisas e educação formal só cresce. Mesmo assim, as leis estaduais se confrontam com regulações federais. A maconha é uma droga proibida no âmbito federal, classificada como “schedule 1”: legalmente, é vista como menos útil, em termos médicos, que a cocaína, o que cria dificuldades para financiar estudos com dinheiro público.

Por isso, só nos últimos anos o boom do mercado chegou às universidades. “É justamente porque decidimos levar o tempo necessário para criá-los que temos programas tão bem-sucedidos”, afirma Buckler. “Cannabis é a indústria que cresce mais rápido no país, mas é também a mais complicada.”

Em outros cantos do mundo, o boom educacional começa a dar sinais. Na Espanha, onde o plantio e o consumo, desde que ligados a cooperativas canábicas (ou “clubes sociales de Cannabis”), são legalizados, o Observatório Espanhol de Cannabis Medicinal ofereceu um curso no ano passado. No Uruguai, cursos têm pipocado.

Já em outros países do mundo a guerra às drogas continua implacável. Mesmo nos EUA, a maconha segue ilícita em âmbito federal

Em 2016, o primeiro curso de medicina canábica foi organizado pelo Sindicato Médico do Uruguai. E mesmo a Colômbia, que legalizou apenas o canabidiol, já tem programas de ensino – a Universidade Nacional da Colômbia abriu o curso de cultivo e aproveitamento medicinal e cosmético da Cannabis.

Esse boom dos acadêmicos da Cannabis não é pouca coisa. Enquanto americanos, europeus e mesmo brasileiros já podem estudar os efeitos medicinais da maconha na universidade, em outros países do mundo a guerra às drogas continua implacável. Em 2018, um homem foi condenado à forca na Malásia por vender óleo de CBD para pacientes.

Um britânico passará 15 anos de prisão na Indonésia por usar o óleo para tratar sua artrite – um cientista que fosse pego com cinco pés de maconha no país poderia ser condenado à morte. Até que o consenso científico sobre a utilidade da planta alcance o resto do mundo, há ainda um nebuloso caminho pela frente.

Enquanto isso, no Brasil

O Brasil continua a ver a maconha com desconfiança. A nova Lei de Drogas, de 2006, excluiu a prisão para quem for pego usando a erva, mas não descriminalizou porte ou uso (o que, num país marcado pelo racismo institucional, acaba punindo mais pobres e negros). Há propostas tramitando no Congresso sem previsão de avanço. A possível descriminalização do porte deverá ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal ainda este ano.

Já o CBD teve sua importação autorizada pela Anvisa em 2015 para casos de doença grave e com receita médica – mas a burocracia é grande e o custo alto. Apenas uma ONG produz o óleo legalmente no país, mediante decisão provisória da Justiça. Pessoas de baixa renda não têm acesso. A substância, encontrada na Cannabis sativa, pode mitigar quadros de epilepsia infantil como nenhuma outra droga no mercado. Familiares têm lutado por mudanças. E a agência estuda liberar o cultivo medicinal, mas não há previsão de quando.

Mesmo assim, o país dá seus passos rumo à educação sobre a Cannabis. Com cada vez mais profissionais de saúde interessados no tema, um curso foi organizado em agosto passado pela Academia Internacional de Cannabis, em São Paulo. O tradicional Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, da Unifesp, por exemplo, abriu um curso gratuito para pesquisadores.

Outras universidades deram um passo além e aprovaram disciplinas fixas em suas grades curriculares – caso da Universidade Federal da Paraíba, que autorizou este ano uma disciplina sobre maconha medicinal para três cursos: medicina, biomedicina e farmácia. Na Universidade Federal de Santa Catarina, a disciplina de endocanabiologia está no currículo de medicina veterinária pelo segundo semestre. Aos poucos, até os pets têm sido beneficiados pela Cannabis.

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