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SemanaEstamos perdendo o bonde da maconha?
Com regulamentação altamente restritiva, Brasil corre o risco de ficar na contramão de um mercado que deve movimentar centenas de bilhões de dólares no mundo
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Com regulamentação altamente restritiva, Brasil corre o risco de ficar na contramão de um mercado que deve movimentar centenas de bilhões de dólares no mundo
Que o mercado da maconha vem se fortalecendo no mundo nos últimos anos, alavancado por uma série de liberações e regulamentações e por um novo olhar sobre o potencial da substância, não chega a ser novidade para ninguém. O que assusta são os números. De acordo com o relatório The Global Cannabis Report, elaborado pela firma de inteligência de mercado The Prohibition Partners, o mercado legalizado de cannabis deve movimentar um total de US$ 103,9 bilhões (R$ 593,27 bilhões) até 2024. Desse total, US$ 62,7 bilhões (R$ 358 bilhões) deverão vir do uso medicinal da planta.
Nos EUA, onde a droga é liberada em alguns estados, o governador de Nova York acaba de assinar, no final de março, a legalização do uso recreativo da maconha. Já no Brasil, o setor deu um passo importante em 2019 com a liberação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) da venda de produtos à base de cannabis em farmácias. No entanto, os preços ainda são altos, o cultivo e a manipulação da substância no país seguem proibidos, e a compra dos fármacos só pode ser feita com a apresentação de uma prescrição médica.
A questão medicinal já tem sido bastante discutida, mas as pessoas ainda não entendem bem como a cannabis pode trazer dinheiro para o país
Embora o uso da maconha hoje se estenda para diversos setores em países que tiveram uma liberação menos restrita, como recreativo, têxtil, alimentar e automotivo, o destaque continua sendo sua utilização terapêutica. Em meio à pandemia, esse uso medicinal teve avanços importantes, principalmente para o tratamentos de distúrbios como insônia, ansiedade e depressão, cujos índices saltaram com o lockdown.
Indicada para o tratamento de males como epilepsia, Alzheimer, Parkinson, autismo, dores crônicas, entre outros, especialistas na área defendem que a regulamentação brasileira altamente restritiva da planta, que impede seu cultivo, tornando os valores inviáveis em muitos casos, pode colocar o Brasil na contramão desse mercado global. Com a possibilidade de liberação do cultivo nacional da planta atualmente em discussão no Congresso, o tema ainda enfrenta grande resistência em nossa sociedade, o que vem causando insegurança em empreendedores e investidores interessados no setor e inibindo o desenvolvimento interno de um mercado que tem ganhado cada vez mais força no resto do mundo.
O poder da demanda
Para Camila Teixeira, CEO da Indeov, que auxilia empresas internacionais a entrar no mercado de cannabis medicinal brasileiro, a regulamentação da Anvisa chegou com atraso e não resolveu as principais demandas do setor. Por isso, a droga estaria passando por uma “legalização silenciosa” no país, com mais de 100 habeas corpus concedidos até o momento ao cultivo com fins medicinais e a recente liberação de uma farmácia de manipulação pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para manipular e vender produtos à base da planta.
Por esses fatores, a profissional enxerga o mercado se desenvolvendo no Brasil mais devido à demanda do que propriamente à regulamentação existente. “Vejo uma expansão considerável no setor, com mais e mais empresas entrando no país, indústrias farmacêuticas em preparo para atuar no setor, serviços auxiliares sendo criados, como empresas de inteligência de mercado, clínicas médicas, fundos de investimentos especializados em cannabis, agências de marketing, empresas voltadas para pesquisa e desenvolvimento de produtos à base da planta, empresas de educação voltadas para médicos e profissionais da saúde, as primeiras pós-graduações na área, além de um aumento significativo da demanda por importação.”
Se estivéssemos produzindo [cannabis] aqui, teríamos três fatores relevantes: geração de empregos, redução de custos e um ganho logístico enorme
No mundo, a maconha tem ganhado ainda mais aceitação desde que a ONU a reclassificou oficialmente para uma lista que inclui substâncias com propriedades medicinais, diz Camila. Apesar dos avanços em outras áreas, ela enxerga a regulamentação do setor mais voltada a fins farmacêuticos, com investimentos em pesquisa cada vez maiores e mais e mais garantias de um controle rigoroso sobre os produtos.
De acordo com Matheus Patelli, diretor-geral no Brasil da HempMeds, empresa internacional de fármacos à base de cannabis, a possibilidade de produzir em solo nacional seria essencial dentro desse contexto. Atualmente, com a necessidade de importar todos os medicamentos, a demora para abastecer o mercado e as dificuldades de fiscalização acabam encarecendo o processo e dificultando a chegada desses produtos às mãos dos pacientes. “Se estivéssemos produzindo aqui, teríamos três fatores relevantes: geração de empregos, redução de custos e um ganho logístico enorme.”
Fuga de mentes
O empreendedor João Paulo Costa conta que o tratamento com cannabis mudou sua vida. Diagnosticado com epilepsia, começou a usar o produto aos 28 anos. A planta reduziu praticamente a zero as convulsões, que tinha com frequência, e permitiu que levasse uma vida normal, livre dos efeitos da doença.
O caso também abriu seus olhos para esse mercado emergente. Embora tenha começado a investir na área aqui no Brasil lá em 2014, logo percebeu que o maior potencial estava no exterior. Por isso, hoje seus dois principais empreendimentos, o Who Is Happy, rede social que une consumidores e comerciantes de produtos à base da planta, e o Ganja Talks, de conteúdo multimídia voltado ao tema da cannabis, funcionam no exterior — o primeiro no estado de Delaware, EUA, e o segundo em Vancouver, Canadá, onde João vive hoje com a família.
As restrições impostas pela legislação brasileira, além de fazerem com que empreendedores busquem melhores oportunidades fora das nossas fronteiras, também afastam investidores
Para ele, as restrições impostas pela legislação brasileira, além de fazerem com que empreendedores busquem melhores oportunidades fora das nossas fronteiras, também afastam investidores.
“O olhar do investidor não avalia se é Brasil ou não, mas atua pela lógica do menor risco”, afirma o empreendedor. “No país, existe o risco de alguém chegar e derrubar todo o pouco que já foi construído. Não vale a pena investir muito sem ter segurança. Os investidores vão acabar saindo em busca de outros lugares, de firmar parcerias com produtores de outras regiões.”
Um mercado restrito e inseguro
Até o momento, o desenvolvimento do mercado brasileiro não aconteceu dentro da rota desenhada pela regulamentação em solo nacional. É o que aponta Tarso Araújo, diretor-executivo da BRCann (Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides). Segundo ele, mais de um ano depois da regulamentação, apenas um tipo de produto à base de canabidiol — substância extraída da maconha que foi liberada pela Anvisa — está sendo comercializado em farmácias brasileiras. E seu preço ainda é bem alto.
Isso acontece porque a lei exige que os produtos alcancem grau farmacêutico e demonstrem uma estabilidade de 12 meses, um processo lento que só costuma ser acessível para empresas com alta capacidade de investimento.
“Por aqui, o mercado tem crescido às custas dos produtos importados”, explica Araújo, que dirigiu o documentário “Ilegal” (2014), que conta histórias de pacientes que lutam pelo direito de usar legalmente a cannabis medicinal. “O importado acaba saindo bem mais barato e com uma variedade de produtos à base de canabidiol muito maior. Afinal, cada paciente funciona melhor com um determinado tipo de produto.”
O especialista destaca a proibição do cultivo e o caráter provisório da legislação atual — ela é válida por apenas cinco anos — como os maiores impeditivos para o crescimento do mercado da cannabis medicinal no país. Como exemplo, cita o caso da Colômbia, que estabeleceu regras claras para a produção da planta na aplicação medicinal.
“Ainda com seu processo regulatório em curso, a Colômbia atraiu milhões de dólares em investimentos internacionais. Em pouco tempo, deve estar posicionada para se tornar a maior produtora global de um mercado que deve passar a valer bilhões dentro dos próximos cinco anos.”
Já no Brasil, além das muitas restrições, a insegurança quanto à continuidade da regulação teria afastado investidores estrangeiros e brasileiros. Na maior parte dos casos, preferem depositar seu dinheiro na grama de vizinhos, atualmente bem mais verde.
Um passo para a frente, um para trás
Apesar do descompasso em relação ao que vem acontecendo em países com legislações menos rígidas, o Brasil tem avançado no consumo de medicamentos à base de cannabis. Segundo dados da Anvisa, o número de autorizações concedidas pela agência para pacientes que precisam desses remédios saltou 121%, de 8.522 em 2019 para 18.850 em 2020.
A médica Carolina Nocetti, fundadora da InterCan (Academia Internacional de Cannabis), centro de educação dedicado à cannabis para fins terapêuticos, conta que a procura por cursos e aulas dedicados ao tema tem aumentado constantemente desde o ano passado.
A profissional, especializada em cannabis medicinal, além de auxiliar pacientes no pedido de autorização para a Anvisa, também tem oferecido consultorias para o autocuidado daqueles que usam o medicamento — e até mesmo a orientação dos médicos responsáveis pelo tratamento. Nos últimos anos, também tem prestado frequentes consultorias sobre o tema na Câmara dos Deputados, tanto para a comissão que discute o projeto de lei sobre o assunto como para a bancada ruralista, que tem apresentado interesse no potencial econômico do setor.
Mas mesmo os pequenos avanços não negam os retrocessos. Carolina lembra como, no final de fevereiro, uma ação da Anvisa pediu a suspensão de uma liminar que permitia que a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), que atende pacientes em João Pessoa (PB), cultivasse a cannabis. A alegação era de que a entidade produzia maconha em escala industrial, favorecendo sua propagação indevida.
Segundo a médica, embora a agência tenha voltado atrás, a Abrace, que fica na Paraíba, foi impedida de cultivar a planta durante cinco dias, prejudicando o tratamento de milhares de pacientes. Além disso, a pausa no cultivo também afetou os dados de uma pesquisa em curso sobre o uso de cannabis em médicos na linha de frente do combate à Covid-19, em que Carolina estava envolvida.
“Foram meses de trabalho estragados por causa disso. Essa intervenção acabou destruindo vários dados, estou muito chateada até agora com essa história.”
O verde da persuasão
Para além de discussões políticas e ideológicas, a cannabis é também uma questão de conscientização e aceitação social. Tarso Araújo, da BRCann, lembra que, se hoje o tema é permeado pelo preconceito, isso decorre de campanhas feitas ao longo do século 20 que exageraram os efeitos da droga, colocando-a como fonte de impulsos assassinos ou criminosos. O intuito, diz ele, era “fazer a maconha parecer mais perigosa do que realmente é”.
Portanto, segundo o especialista, o momento é de construir debates qualificados com a sociedade, mostrando que o uso medicinal da cannabis será rigorosamente controlado e que deverá ter efeitos positivos sobre a saúde brasileira — ajudando inclusive a desafogar o combalido sistema público de centenas de milhares de casos de epilepsia que podem ser tratados com o uso da droga.
É momento é de construir debates qualificados com a sociedade, mostrando que o uso medicinal da cannabis deverá ter efeitos positivos sobre a saúde brasileira
O fato de grandes veículos de comunicação, como o jornal Folha de S.Paulo e a revista Veja darem espaço exclusivo para o tema é um feito a se aplaudir, diz Carolina. Segundo ela, o tema só vai avançar por meio de comunicadores que fomentem debates sérios, de alto nível junto à sociedade. “A normalização depende mais dos comunicadores que dos ativistas.”
Para Tarso, a questão financeira deve ser primordial na construção desse debate. “O mercado brasileiro tem um potencial gigantesco. Hoje, menos de 3% dos pacientes com epilepsia usam cannabis, porque o acesso ainda é baixíssimo. Imagine o impacto tanto para a saúde quanto para o mercado de transformar esse número em 90%.”
O empreendedor João Paulo Costa, que deve anunciar em breve a entrada de um novo investidor na plataforma Who Is Happy, defende o potencial de mercado do país, mas diz que ele só deve se concretizar se houver uma mudança de mentalidade.
“Precisamos colocar em pauta o potencial econômico desse mercado, o quanto poderíamos investir em educação, saúde, construção civil a partir dele”, afirma João. “A questão medicinal já tem sido bastante discutida, mas as pessoas ainda não entendem bem como a cannabis pode trazer dinheiro para o país.”