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ConversasAnita Rocha da Silveira: 'Somos obrigadas a controlar tanto nossos corpos que passamos a controlar os de outras mulheres'
Diretora de “Medusa” e “Mate-me, Por Favor” fala sobre conservadorismo, religiões de extrema-direita e as barreiras para a liberdade feminina
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Anita Rocha da Silveira: ‘Somos obrigadas a controlar tanto nossos corpos que passamos a controlar os de outras mulheres’
Diretora de “Medusa” e “Mate-me, Por Favor” fala sobre conservadorismo, religiões de extrema-direita e as barreiras para a liberdade feminina
Em “Medusa” (2021) — filme da cineasta Anita Rocha da Silveira que acaba de passar pelos cinemas brasileiros —, um grupo de jovens devotas sai às noites para espancar outras mulheres. Seus alvos são aquelas que consideram impuras, seja por se prostituir, dançar em boates ou fazer vídeos “provocadores”. Apesar de o longa, disponível no streaming do Telecine, se passar numa realidade alternativa, a ideia surgiu de uma série de notícias sobre adolescentes espancadas por colegas — “Para elas, era importante não só bater, mas cortar o cabelo e a face da garota”, relembra Silveira — mescladas a uma extensa pesquisa que a cineasta realizou em igrejas evangélicas.
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A segunda parte dessa inspiração dá as caras nos sermões feitos pelo pastor da igreja que todas as garotas frequentam, discursos que evidenciam aspectos de uma religiosidade ultraconservadora e de um projeto de dominação ideológica e política. “Tudo que o pastor, personagem do Thiago Fragoso, diz é inspirado em sermões reais. Não queria que nada que ele falasse fosse muito diferente do padrão nas igrejas”, explica a cineasta em entrevista a Gama.
Ainda que estejam inseridas no projeto de poder da instituição, as mulheres na trama não ocupam posições de destaque. Pelo contrário, seus corpos e pensamentos são constantemente controlados, com as mesmas ajudando a fiscalizar umas às outras. Só ao se afastar dessa realidade e da comunidade de colegas devotas de que vive cercada, a protagonista interpretada por Mari Oliveira consegue questionar a violência à sua volta e experimentar um despertar sexual.
A Medusa do título remete, assim como na pintura de Caravaggio, ao berro da mítica personagem de cabelos de cobra, capaz de transformar homens em estátuas com um mero olhar. “Um berro que não é de medo, mas de raiva”, aponta a diretora. “Esse berro representa a libertação de uma dor que pode ser ancestral. Em alguns momentos do filme, pensei num berro de libertação de todas as repressões, da dor que é difícil verbalizar, mas que a pessoa precisa botar para fora.”
Silveira não é alheia a narrativas sobre a autodescoberta feminina. Seu filme anterior, “Mate-me, Por Favor” (2015), trata de uma adolescente que também está dando os primeiros passos na sexualidade, num Rio de Janeiro amedrontado pela ameaça de um serial killer. Sobrinha-neta da lendária psiquiatra Nise da Silveira, ela tem como uma das inspirações o diretor David Lynch, desde que assistiu a “Veludo Azul” (1986) aos nove anos de idade. Não é coincidência que seus dois filmes apresentem elementos de horror, drama e humor, misturados a uma pitada de surrealismo — ambos foram lançados em grandes festivais, como Veneza e Cannes, com boa aceitação da crítica internacional.
Hoje trabalhando em projetos para o cinema e a TV, a diretora ainda pretende lançar um horror mais comercial, gênero que para ela é o que melhor traduz as bizarrices dos últimos anos no país. Na conversa com Gama, ela admite que se livrar do machismo estrutural e dos preconceitos que a sociedade impõe a todos desde muito cedo deve ser uma tarefa diária. Fala também sobre as táticas da extrema-direita atual e por que as religiões conservadoras são tão atraentes para os jovens hoje.
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G |De onde surgiu a ideia para o longa “Medusa”? E qual o paralelo com a Medusa das lendas?
Anita Rocha da Silveira |Em 2015, quando lancei “Mate-me Por Favor”, vi uma notícia de um grupo de jovens que tinham se juntado para bater numa colega considerada promíscua. Para elas, era importante não só bater, mas também cortar o cabelo e a face da garota. Fui encontrando notícias similares ocorridas com garotas de 16 a 20 anos. Essas histórias passavam muito pelas redes sociais, uma foto sensual que a garota tinha postado, o namorado de uma que deu like na foto da outra. Isso me fez lembrar de Medusa. Na origem do mito, por não ser mais pura, Atena tornou Medusa nessa criatura que transforma todos em pedra. E, na época, já era evidente o avanço conservador no Brasil. Tudo isso começou a se encaixar numa vontade não só de falar do machismo estrutural, mas de pensar personagens que cresceram num ambiente ultraconservador. Quem eram essas jovens? O controle seria o tema principal, pois crescer mulher é muito sobre isso. Num universo conservador, somos obrigadas a controlar tanto nossos corpos que passamos a controlar os de outras mulheres.
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G |Em “Medusa”, você cria um universo controlado por uma religião extremamente conservadora. Como essa narrativa, apesar do exagero, espelha nossa realidade?
ARS |Não sei se há um exagero. É mais um universo paralelo, uma alegoria. Óbvio que a estética tira a gente da realidade, e as interpretações têm um tom levemente acima. Mas tudo que o pastor, personagem do Thiago Fragoso, diz é inspirado em sermões reais. Fiz uma pesquisa muito grande do universo de grupos evangélicos que têm um projeto de poder, com um discurso machista e homofóbico, e também de youtubers de extrema-direita. Não queria que nada que o pastor falasse fosse muito diferente do padrão nas igrejas. Tanto que alguns discursos mais exagerados a gente nem colocou no filme, sermões tão pesados que iam achar que eu estava viajando. As pessoas que cresceram na igreja e são familiares com esse universo reconhecem na hora qual a igreja e quem são os pastores. Então existe um exagero, mas tudo é pautado em pesquisa.
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G |O filme retrata uma série de prisões para suas personagens, da religião à própria condição feminina, vista ali como de servidão. Você teve intenção de representar um certo grito de liberdade em relação a essas pressões?
ARS |O longa “Corra!” (2017), que foi uma das minhas inspirações, também é sobre a perda do controle, poder se libertar das amarras e só fazer o que nossos desejos e impulsos mandam. A ideia foi justamente voltar a essa Medusa de que a gente lembra de pinturas como a de Caravaggio, em que ela está berrando. Descobri que movimentos feministas usam a Medusa como símbolo justamente por conta desse berro que ela dá quando está sendo decapitada — um berro que não é de medo, mas de raiva. Esse berro representa a libertação de uma dor que pode ser ancestral. Em alguns momentos do filme, pensei num berro de libertação de todas as repressões, da dor que é difícil verbalizar, mas que a pessoa precisa botar para fora. A partir desse berro coletivo, se abre toda uma possibilidade de recomeçar mais livre, mais leve, num lugar distante. É importante essas personagens escolherem umas às outras, e não a sociedade patriarcal.
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G |Assim como acontece com a protagonista, ampliar os horizontes e entrar em contato com outras realidades é uma forma de libertação?
ARS |Pensei muito na caverna de Platão como uma alegoria disso tudo. Uma coisa que descobri foi que, quando as pessoas migram de uma cidade para outra, a igreja evangélica oferece a elas um apoio que a católica e o próprio Estado não dão. A pessoa está ali sozinha, num lugar onde não conhece ninguém. Na igreja, ela entra em vários grupos de WhatsApp e começa a criar um senso de comunidade. Em muitos deles, prevalecem algumas frases que incluí no filme: “Não confie nas pessoas do mundo. Nós somos do mundo, mas não pertencemos a ele.” Elas são repetidas à exaustão em certos grupos e igrejas. Com o discurso de que aquela é sua nova família e você não deve confiar em mais ninguém, a pessoa passa a desconfiar de tudo que vem de fora e vai se isolando. Quando uma pessoa que cresceu nesse meio é levada a outro lugar, começa a despertar um novo olhar para um mundo onde é possível desejar, um mundo mais gentil. O personagem do enfermeiro, interpretado pelo Felipe Frazão, representa um pouco isso e também um outro exemplo de masculinidade.
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G |O longa tem uma cena ótima em que a personagem ensina seus seguidores a tirar uma selfie que não seja imoral. Como você vê esse contato do conservadorismo com os jovens nas redes?
ARS |Hoje o jovem entra num vídeo no YouTube, vai indo para outro e outro e, quando vê, caiu num canal “red pill”. Muitos pais entregam um tablet para o filho de dez anos e não têm consciência do que ele está assistindo. No mundo dos youtubers, encontrei meninas super simpáticas com milhões de seguidores e tutoriais de beleza bem montados e editados. Muitas soltavam frases como: “se você não fizer isso, nunca vai casar”, num discurso que coloca a mulher sempre submissa ao homem. Nunca tivemos uma juventude tão polarizada quanto a de agora. Nem imagino como vai ser quando esses grupos chegarem à maturidade. Seguimos mais ou menos as mesmas pessoas, mas o Twitter que eu vejo é completamente diferente daquele que minha amiga vê. Um jovem que cresceu num ambiente de direita ou esquerda vai ver coisas na internet completamente direcionadas, achando que aquilo é toda a verdade.
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G |E como fazer essas realidades se conciliarem?
ARS |O “Medusa” partiu de uma vontade de abrir um diálogo. Sinto que as pessoas nem querem entender esse avanço conservador. Não tem a ver comigo, não sou eu… Escuto muito isso de pessoas da minha geração, que usam palavras pejorativas. Essas pessoas cresceram em bolhas, estão inseridas numa outra realidade, não só na igreja, mas na internet. A principal fonte de informação do brasileiro hoje são grupos de WhatsApp. Essa bolha convence as pessoas que invadir o Congresso é algo incrível, um golpe de Estado. Isso me preocupa, pessoas vivendo em seus universos paralelos, achando que os outros estão compactuando com aquilo.
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G |Por que grupos conservadores e religiosos são atrativos para os jovens?
ARS |Para o jovem que cresce nesse mundo, é só isso que ele conhece. Outro dia, vi na TV uma pesquisa que dizia que a geração atual de jovens é a mais solitária. A igreja oferece um senso de grupo. Com as pessoas mais sozinhas, as igrejas são um caminho num mundo onde é cada vez mais difícil criar conexões. Se você não tem ninguém e é convidado a se juntar a um grupo de jovens, onde te oferecem bolo, Coca-Cola e dizem que aquela é sua nova família, vai achar uma coisa linda.
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G |“Mate-me Por Favor” e “Medusa” foram exibidos em grandes festivais e tiveram ótima aceitação lá fora. Embora falem de um contexto brasileiro, considera que os temas de que trata são universais?
ARS |O “Mate-me” é um filme que fala de adolescência, desejo, pulsão de morte. Mas, quando comecei a viajar com o “Medusa” e apresentá-lo em festivais, achava que as pessoas não entenderiam certas coisas. Pelo contrário. O avanço da extrema-direita acontece no mundo todo. Quando passei o filme na Áustria, as pessoas relacionaram o exército de rapazes com os neonazistas. O conservadorismo tem facetas diferentes. Em outros países pode estar ligado ao racismo e xenofobia, enquanto no Brasil vejo uma forte relação com o controle dos corpos. Por isso, tirando uma coisa ou outra que tem uma brasilidade maior, o filme é muito bem compreendido.
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G |Os dois filmes relacionam o contato com a violência à descoberta do desejo sexual feminino. Com essas duas questões, você representa uma chegada da mulher à maturidade?
ARS |O “Mate-me” apresenta uma adolescente de 15 anos lidando com o despertar sexual num ambiente que levanta vários medos. Ela quer andar sozinha à noite na rua porque precisa de liberdade, mas tem medo. É uma menina lidando com a dicotomia de ser jovem e querer ser livre, descobrir seu corpo, apesar dos medos que a sociedade apresenta para todas nós. Já o “Medusa” é mais sobre o controle que se exerce sobre nossos corpos e como se libertar dele.
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G |Para você, é possível, principalmente como mulher, ser livre atualmente? O que isso significa?
ARS |Ser livre é tentar não se guiar pelas opiniões e regras dos outros, e sim por si mesma. Mas é muito difícil se livrar do machismo estrutural, de preconceitos que a sociedade introjeta tanto em mulheres quanto homens. Esse é um trabalho diário, não julgar tanto a si mesma nem aos outros, se aceitar como você é e aceitar aqueles à sua volta como são. E, ao mesmo tempo, poder verbalizar se alguém fizer algo errado, teve falas machistas, racistas ou homofóbicas – algo ainda mais difícil se forem pessoas próximas. É complicado para qualquer um ser livre, porque a sociedade já colocou coisas demais na nossa cabeça desde que a gente era jovem. Se libertar dos preconceitos é um desafio diário.
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G |Como enxerga o destaque do cinema de horror no Brasil nas últimas décadas, quase sempre com um fundo de crítica social?
ARS |O Brasil é tão doido que se tornou um cenário muito propício para o gênero. Quando pensamos em tudo que aconteceu aqui desde 2013, vira uma grande fonte de inspiração. O crescimento do horror está muito ligado ao cenário político, ideológico e social do país porque ele comporta as coisas mais bizarras que acontecem. O que parece mais verossímil para alguém que vem de fora? A realidade do “Medusa” ou histórias como a da “mamadeira de piroca” e do “kit gay”? Vivemos tantas coisas absurdas na sociedade brasileira, difundidas pela desinformação e as fake news, que o horror é só uma resposta a essa doideira toda que é viver no Brasil.
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CAPA Você é livre?
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