Marta Supernova, Thiago Guimarães e outros: o que inspira amar com liberdade — Gama Revista
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Depoimento

O que inspira amar com liberdade

Seis pessoas da comunidade LGBTQIA+ selecionam publicações e produções que as ajudaram a viver o amor por si e pelos outros

Ana Mosquera 12 de Junho de 2022

O que inspira amar com liberdade

Seis pessoas da comunidade LGBTQIA+ selecionam publicações e produções que as ajudaram a viver o amor por si e pelos outros

Ana Mosquera 12 de Junho de 2022

“Consideramos justa toda forma de amor”, canta Lulu Santos desde 1992. Dois anos mais tarde, inspirada em crônicas de jornal, a consultora de criatividade e dona do bloco do apego Cristina Naumovs começaria a namorar sua melhor amiga. Nos anos 2000, Madonna e um site para o público lésbico abririam os olhos de dois jovens prestes a descobrir sua sexualidade. Nunca é tarde para repensar as formas de amar e, em plena pandemia, uma série, um livro e um filme transformariam o olhar de três pessoas da comunidade LGBTQIA+ para sempre.

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Mais do que celebrar o amor, reconhecer quem se quer amar significa atravessar outras barreiras para esse grupo. Nesta edição, Gama traz seis depoimentos de quem abraçou sua identidade de gênero uma (ou mais vezes) ao longo da vida e passou a amar com mais liberdade, com a inspiração em filmes, séries, sites, livros, colunas e álbuns inteiros.

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    “Me encantava aquele jeito de se colocar no mundo”

    Cristina Naumovs, consultora de criatividade e dona do bloco do apego

    “Era década de 90, eu estava bem no auge da adolescência e minha mãe assinava o Estadão. Toda quinta-feira eu corria logo cedo pra ler a coluna do Caio Fernando Abreu, a Antena. Nessas colunas ele escrevia sobre várias coisas, desde política a crítica de música. Desde então, a música já me fascinava, ela se misturava e fazia parte dos assuntos do mundo, até dos textos mais literários. Tudo era escrito de um jeito lindo, impressionante. Mas aquele cara me fascinava não só pelo que escrevia, nem como o fazia, mas por quem ele era. Me encantava aquele jeito de se colocar no mundo, de existir: ele era um gay que existia como gay, inteirinho – e isso pra mim era uma grande novidade. A cada semana, durante alguns anos, eu ia descobrindo essa possibilidade de ser que eu não conhecia. A representatividade tem isso, né? É sobre possibilidade. É apresentar a possibilidade de se identificar, de se entender a partir da possibilidade de existência do outro. Sei que acompanhar os escritos do Caio toda semana me ajudou a me conhecer. Ele escreveu essa coluna até 1994, o ano em que eu me apaixonei pela minha melhor amiga.”

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    “Me enxerguei possível numa história linda”

    Luanda Vieira, jornalista e influenciadora

    ‘O ano em que morri em Nova York’ (Planeta, 2017), de Milly Lacombe, me ajudou de tantas formas. A primeira é que quando eu li, nesse mesmo período no ano passado, estava vivenciando o auge da minha crise de ansiedade, afastada do trabalho e com medo de perder oportunidades profissionais. Esta leitura, em especial, além de me manter no presente e diminuir os incômodos físicos do transtorno, resgatou em mim uma sensação de orgulho que só quem sente falta de representação nos meios de comunicação sabe: me enxerguei possível numa história linda. Ler sobre os altos e baixos do casal, e todas as descobertas da personagem principal, me fez olhar com muito mais paixão para o relacionamento que estava construindo com a Stephanie (e que naquele momento estava em transformação, já que, depois de seis anos, resolvemos casar e morar juntas). Lembro que eu pensava quão sortuda eu era por ter o apoio de uma mulher num momento tão delicado da minha vida e num país que ainda tem muito que avançar sobre a homoafetividade. Acredito que quanto mais olhamos com carinho para nós, como casal, conseguimos passar adiante que amar, seja lá quem for, vale a pena.”

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    “Me ajudou a entender que eu tinha uma tarefa histórica de sair do armário com várias outras pessoas trans”

    Chica Santos Andrade, diretora de cinema

    “A série que me marcou foi ‘Veneno’ (2020), uma produção espanhola, que está na HBO Max. Eu assisti a essa série umas três vezes e ela foi fundamental no meu processo de afirmação de gênero. Me empurrou para fora do armário mesmo, porque é muito sensível, e me fez trabalhar muito minha autoestima, me aceitar, lidar melhor com a minha identidade de gênero. E acho que me ajudou muito a amar com mais liberdade as pessoas, o meu companheiro, outros parceiros. Foi uma série que me ajudou muito mais até do que assumir relações com outras pessoas. Me ajudou principalmente a entender que eu tinha uma tarefa histórica de sair do armário com várias outras pessoas trans que estão saindo agora e que se esconderam durante muito tempo, como eu, por medo. O impacto foi gigante.”

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    “Eu não sentia que precisava ser nada além do que eu era”

    Marta Supernova, artista plástica e DJ

    “Uma produção que marcou a minha vida LGBTQIA+ foi o site Parada Lésbica. Frequentei por volta de 2006 a 2009, quando eu tinha uns 12, 13 anos. Era um site que tinha desde bate-papo a indicações de artigos, textos ficcionais, fóruns, conteúdos eróticos e filmes. Eu já era apaixonada por cinema e lá eu achava todos os filmes de sapatão possíveis. Eles marcaram meu imaginário, abriram meus olhos para lésbicas diferentes das que apareciam na grande mídia, lésbicas de vários países e realidades. Considero que o site foi um importante formador para mim. Era uma central de sapatonices, de dissidências e a partir dele pude achar pessoas que pensavam sobre a vida de butches [alcunha de alguém do sexo feminino que tem maneirismos masculinos] na Índia, de feministas da Rússia e de pessoas trans na Nigéria. Como boa nerd, isso tudo fez parte do meu dia a dia, o que considero um acidente precoce e muito fortuito, afinal eu tinha apenas 12 anos. Cresci muito confortável com minha sexualidade e me divertia com ela. Eu não sentia que precisava ser nada além do que eu era. Com o passar dos anos e da minha branda timidez, essa certeza que eu guardava no peito e no hd do laptop me permitiu ser quem sou e tento ser hoje, sempre curiosa para a próxima Marta que irá surgir.”

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    “Nossa sexualidade não existe numa caixinha separada de nós mesmos nem do mundo”

    Thiago Guimarães, criador de conteúdo

    “Quando assisti a ‘Moonlight’ (2016) pela primeira vez, eu já era adulto, já sabia que era gay há muito tempo e quatro anos já tinham se passado desde o lançamento do longa. Cheguei bem atrasado ao hype, mas o impacto foi grande. O que mais me marcou na obra de Barry Jenkins foi a atenção aos detalhes e a delicadeza em retratar uma ‘vivência LGBTQIA+’ complexa, se é que dá pra usar esse termo. É difícil encaixar a história de Chiron numa narrativa pré-moldada ou numa identidade social monolítica. Questões de raça e gênero se interseccionam no filme, mas perpassam muitas outras formas de existir e revelam para a audiência que a nossa sexualidade não existe numa caixinha separada de nós mesmos nem do mundo que nos cerca. O que entendemos como felicidade, descoberta, aceitação e identidade é parte do nosso processo caótico de sobrevivência. Foi muito importante entender isso aos 30 e poucos anos de idade por meio da arte.”

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    “É um álbum sobre uma nostalgia que eu ainda não tinha vivido e que nunca mais consegui largar depois”

    Breno da Matta, fotógrafo

    “O ano era 2005, eu tinha 12 anos. Aquele turbilhão de dúvidas e sentimentos começava a pipocar na minha cabeça. Na época, eu estudava em colégio de freiras e tinha pouquíssimos amigos. Não conseguia entender o porquê, mas todo dia alguém apontava o dedo para me chamar de ‘viadinho’. Foi no final de tarde de uma quinta-feira, enquanto eu assistia ao Disk MTV com a minha irmã, que uma notícia me chamou atenção. Sarah Oliveira anunciava um grande comeback da rainha do pop, Madonna. Eu sabia quem Madonna era, mas não a conhecia. Ela não dizia nada pra mim. Madonna anunciava o novo álbum ‘Confessions on a Dance Floor’ (2005) e o primeiro single “Hung up” estrearia logo depois do intervalo. Aquele clipe virou referência de tudo o que é estético pra mim. Esse álbum virou trilha sonora da minha vida desde então. Não é um álbum que fala sobre a comunidade LGBTQIA+. É um álbum sobre uma nostalgia que eu ainda não tinha vivido, mas que me apresentou a um mundo que eu ainda não tinha desejado participar, e que nunca mais consegui largar depois. Foi a partir daquele álbum que fui apresentado à Madonna e isso me abriu um mundo de informações. De todas as referências que ela pode apresentar, a que eu mais gostei foi sua versão disco. Todas as histórias que esse álbum me proporcionou, todas as noites dançando com amigos, todos os amores de que ele foi trilha. Esse é, de longe, meu álbum favorito da Madonna e, com certeza, um dos álbuns que define minha vida.”