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Reportagem

Da pornografia às camgirls: liberdade sexual ou novas prisões?

Plataformas que facilitam a disseminação de conteúdo sexual vendem liberdade e autonomia, mas estudiosos contestam essa visão

Leonardo Neiva 18 de Junho de 2023

Da pornografia às camgirls: liberdade sexual ou novas prisões?

Leonardo Neiva 18 de Junho de 2023
Divulgação

Plataformas que facilitam a disseminação de conteúdo sexual vendem liberdade e autonomia, mas estudiosos contestam essa visão

“Então faz um PIX”, cutuca uma seminua Anely, chicote na mão, em frente à webcam. A frase é a senha para que algum ávido admirador do outro lado da tela deposite uma quantia polpuda na conta da moça, numa prática conhecida como “camming”. Em troca, ela pode tirar as botas de látex brilhante ou até o sutiã rendado enquanto performa danças sensuais sobre a cama.

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Qual peça vai despir depende do quanto seu interlocutor está disposto a pagar. Só a máscara estilo Tiazinha, que esconde tudo e ao mesmo tempo nada, permanece fixa. Depois que realizam seu desejo, Anely ainda provoca: “Já vi PIX maiores, hein”.

A dinâmica foi apresentada nas chamadas da novela das nove da Globo, “Terra e Paixão” (2023), onde a personagem interpretada por Tatá Werneck vem fazendo sucesso. Apesar de fictícia, Anely busca espelhar a realidade de muitas mulheres — e também homens — que vêm enxergando na exibição do corpo em plataformas online uma maneira de ganhar dinheiro extra e até a principal profissão.

Não exatamente nova, a atividade se popularizou na última década, a partir do surgimento de plataformas como o OnlyFans, e ganhou ainda mais adeptos na pandemia, com a crise financeira. No serviço de conteúdo criado na Inglaterra, o usuário paga uma assinatura mensal e pode consumir tudo que um determinado influenciador produz, sejam fotos de biquíni, imagens fetichizadas, vídeos sensuais ou sexo mesmo.

Ainda que não tivesse necessariamente essa pegada no início, a plataforma cresceu em grande parte devido aos usuários de “soft porn” — conteúdo sexual menos explícito que o pornô tradicional. Mais tarde, o site até tentou estabelecer regras rígidas para esse tipo de publicação, mas desistiu de banir conteúdo adulto após forte pressão dos usuários.

Com o tempo, esses sites também acabaram vendendo uma conexão entre a produção de conteúdo adulto e uma certa liberdade sexual e autonomia sobre o próprio corpo. Apesar de o camming existir há mais de 20 anos, com homens e mulheres realizando fetiches em troca de dinheiro e presentes, plataformas como o OnlyFans parecem ter elevado a “facilidade” de produzir conteúdo como esse a outro patamar.

“Tudo parece muito transparente, o quanto você ganha, a taxa da plataforma…”, diz a professora e pesquisadora de semiótica da USP Clotilde Perez. “A simplificação do modelo de negócio é um incentivo. Num filme pornô, o trabalho de produção, direitos e veiculação é muito mais pesado.”

As denúncias histórica de exploração e violência ligadas à pornografia tradicional teriam ajudado a colar uma visão positiva a essas plataformas. Afinal, não há mais produtores bafejando no pescoço nem forçando ninguém a gravar cenas desconfortáveis ou acobertando violências cotidianas. Além disso, o conteúdo não precisa ser gerado em tempo real, num contato direto com os fãs, como acontece no camming. Se cada um pode virar microempreendedor do próprio corpo e sexualidade, a ideia é que acabe se tornando “chefe de si mesmo”, num discurso à la Uber.

Mas será que essas mudanças significam se livrar de fato das grades da pornografia ou somente entregar as chaves da cela a um novo carcereiro?

De acordo com Perez, a narrativa de empoderamento e autonomia ajuda a atenuar o peso do julgamento que comercializar a própria imagem e corpo costuma ter na sociedade. “Nosso discurso é sempre cheio de filtros sobre o que é socialmente aceito. Para mim, esse empoderamento é uma busca de legitimidade moral, uma narrativa para justificar. Ok, meu corpo minhas regras, mas ele precisa estar exposto?”, questiona a professora.

Em frente à câmera

Logo que começou a fazer transmissões pela internet, uma camgirl que prefere não se identificar conta que era mais uma questão de fetiche. “Havia algum tempo que eu já tinha vontade de me exibir para outras pessoas.” Com 20 anos na época, a jovem tinha acabado de chegar a São Paulo para fazer faculdade e também precisava de grana para se manter. Como encontrou dificuldade para conciliar a carga de estudos com um trabalho formal, “uniu o útil ao agradável”.

Após quase sete anos no trabalho, ela ganha de R$ 7 a 11 mil por mês, passando em média três horas por dia em frente à câmera. Embora o camming seja sua única ocupação profissional, ela, que hoje faz mestrado, estabeleceu uma meta: “Não pretendo continuar para além do doutorado. Já sinto também a urgência de adquirir outras experiências profissionais conforme esse prazo se aproxima.”

Usando um nome que não é o seu, a jovem até tentou criar uma personagem na hora de aparecer em frente à webcam. Mas não consegue se impedir de transparecer suas preferências para quem está do outro lado.

Desde que começou a trabalhar como camgirl, percebeu que a forma de viver a própria sexualidade mudou a partir do trabalho. Se hoje ela enxerga a atividade como um meio de ganhar dinheiro, na vida pessoal acredita ter passado de uma pessoa libidinosa e disposta a experimentações para alguém mais “vanilla”, que “prefere fazer amor olhando nos olhos”.

Dinheiro ou liberdade

Assim como a personagem da novela das nove e boa parte de quem trabalha com isso, ela não revelou a toda a família o que faz. Até o momento, só as irmãs e alguns amigos sabem. “Mas acho que minha mãe e tios têm desconfianças”, revela.

Isso porque a sociedade ainda julga fortemente quem vive o sexo de forma diferente do tradicional, na opinião do sexólogo Rodrigo Torres. Por outro lado, segundo o especialista, muitas escondem o rosto por estarem monetizando apenas o corpo, numa relação comercial. “Não vejo a sociedade livre dos tabus e preconceitos em relação à sexualidade nem à diversidade sexual. Não sei que liberdade é essa.”

Nesses anos todos, uma coisa que a camgirl aprendeu é que existem fetiches de todos os tipos — inclusive os bem fora da caixa, como sentir tesão por jaquetas puffer. Hoje, ela se dá liberdade para só atendê-los quando estiver no clima. “Tento ser muito fiel às minhas vontades e não ceder, até para criar uma relação de respeito”, conta. E, quando identifica que um cliente está ficando obcecado de alguma forma, corta a coisa na hora. “Sou direta e digo que é uma relação que não pode extrapolar aquele ambiente.”

Em geral, o que se busca na atividade a é dinheiro ou expandir o leque de habilidades sexuais, diz a psicóloga Heloisa Fleury. “A exposição pode ser uma fonte de renda, uma necessidade de ser visto, uma motivação emocional ou reação a uma história de vida repressiva.”

Embora a maioria dos estudos hoje reforce os pontos negativos da pornografia, a psicóloga afirma que experiências autônomas podem trazer bons frutos, como ampliar os horizontes, entender melhor as próprias preferências e até conhecer mais a fundo sua identidade sexual. “Esses jovens podem estar exibindo novas formas de viver a sexualidade”, afirma. A prática, por outro lado, pode ser problemática caso induza ao isolamento e impacte a intimidade e o afeto com parceiros no mundo real.

Soft power

“Vivia numa kitnet, do nada se mudou pra cobertura/ Eu conheço essa novinha, ela morava na minha rua/ Ela andava, andava, andava de busão/ Do nada venceu na vida/ E o povo comenta: Trabalha com o quê, essa novinha?”

A mensagem de enriquecimento rápido, em excesso e sem dificuldade, explícito na música “Novinha do OnlyFans”, de Kadu Martins e Xand Avião, dá o tom do discurso de que muitas plataformas se beneficiaram para ganhar popularidade.

“Esse dinheiro é fácil, eu faço sentada no sofá da minha casa”, declarou a jogadora de vôlei e ex-BBB Key Alves, numa entrevista ao Universa em 2022. A atleta, que reúne mais de 11 milhões de seguidores no Instagram, chegou a mentir em determinado momento dizendo que ganhava R$ 200 mil por mês atuando no OnlyFans, com a intenção de chamar a atenção para seu perfil.

Para além de estratégias como essa, as cifras de encher os olhos, muitas vezes usadas como marketing pelos próprios sites, são raras entre a maioria dos usuários — em geral, só acontecem mesmo no caso de famosos.

Tá no contrato

Hoje, apesar de muitos homens atuarem no ramo, a prevalência ainda é feminina. E, embora boa parte desses sites venda uma mensagem de autonomia financeira e empoderamento, há contrapartidas consideráveis nos contratos oferecidos por alguns dos sites mais conhecidos. Entre elas, a utilização irrestrita pela empresas das imagens postadas por usuários na plataforma — em certos casos, quem assina pode até correr o risco de se ver aparecendo no marketing oficial da empresa.

Algumas gigantes do ramo também tomam o cuidado de, no contrato, incluir cláusulas que as isentam de responsabilidades legais em casos de vazamento de conteúdo ou até se a imagem do usuário acabar associada a situações degradantes dos mais variados tipos.

Dadas as devidas proporções, a situação faz lembrar o enredo do primeiro episódio da recém-lançada nova temporada da série sci-fi “Black Mirror” (2011-2023). Na história, a protagonista Joan vê sua vida desmoronar ao descobrir que uma empresa de streaming muito semelhante à Netflix produziu uma série sobre sua vida. O pior: ao tentar processar a produtora, acaba descobrindo que autorizou o uso irrestrito de sua imagem quando assinou o serviço sem ler direito o contrato.

A camgirl confessa a Gama que a atividade que desempenha não tem nada a ver com liberdade sexual. Pelo contrário, está ligada à realidade cada vez mais precária do trabalho contemporâneo. Por permanecer no anonimato e manter um controle razoável sobre a disseminação do conteúdo que faz, hoje considera que sofre até menos os efeitos da exposição nas redes do que alguns influenciadores no Instagram e TikTok.

A psicóloga Heloisa Fleury concorda que o trabalho fazendo poses sensuais em frente à câmera tem pouca ou nenhuma ligação direta com a libertação sexual. “Dizer isso dá uma ideia de posicionamento político, de afirmação de algo, o que nem sempre corresponde a esses sites.”

*Esta matéria foi corrigida no dia 6 de julho de 2023