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Conversas

Amara Moira: "Minha ideia de amor é a de uma amizade radical"

Professora, doutora em crítica literária e escritora diz que “o amor que cobra é perverso e precário” e fala sobre como o sentimento pode ser maldito para as travestis

Isabelle Moreira Lima 08 de Junho de 2025

Amara Moira: “Minha ideia de amor é a de uma amizade radical”

Isabelle Moreira Lima 08 de Junho de 2025
Foto de Renato Parada

Professora, doutora em crítica literária e escritora diz que “o amor que cobra é perverso e precário” e fala sobre como o sentimento pode ser maldito para as travestis

Para Amara Moira, o amor é uma palavra perigosa. A professora de literatura, doutora em crítica e teoria literária pela Unicamp e autora de “Neca” (Companhia das Letras, 2024) se refere ao tipo de relação que pede exclusividade e se baseia na experiência travesti. Por isso, para ela, melhor que ter um amor é viver uma amizade radical, em que ninguém precisa abrir mão de nada, e pode ainda haver sexo.

O sexo, aliás, assim como o gozo e o desejo são temas de que ela gosta mais. São centrais em “Neca”, um monólogo escrito em pajubá, e em outras obras suas como “E se Eu Fosse Pura” (2023). Sua preocupação é focar, na literatura, na parte mais divertida do sexo, uma vez que entende que nos tempos atuais o ativismo tem transformado a discussão sobre ele em algo político, sempre mirando nos problemas que podem acontecer em torno dele e nunca no que é relativo ao prazer.

“Só sabemos falar de sexo para denunciar a violência. A reivindicação do direito ao gozo, a essa experiência incontornável que é o desejo, parece que está em segundo plano”, afirma em entrevista a Gama.

Ela tem uma visão aberta para autores do cânone, cujas visões são consideradas hoje problemáticas, localizando a escrita no tempo, e relembrando as diferentes interpretações do texto em cada época. “O significado dos livros não está dado, depende de nós também, de como a gente vai transformá-los, de como a gente vai deixar nossa marca de leitura”, afirma.

Por tudo isso, talvez, ela não refuta a ideia de escrever sobre amor. “Esse sentimento ainda é muito central na nossa sociedade. Eu não gostar dele não significa que ele não seja um acontecimento incontornável”, afirma na entrevista, em que diz que luta contra a ideia de que vale tudo por um amor verdadeiro. “Mas lutar contra isso quer dizer que eu pretendo escrever sobre isso também.”

O amor é uma palavra maldita

  • G |“Neca” é um livro que fala de muitos assuntos. Tem muito humor, fala da vida travesti, de família, de literatura, de história. Tem muito sexo, desejo. Mas como fica o amor?

    Amara Moira |

    O amor vai ser mencionado [no livro] de forma muito pejorativa. Amor é uma palavra que serve para tirar dinheiro das bichas. Amor só faz mal. Amor mata. O amor é uma palavra maldita. É assim que aparece no “Neca”. É realmente uma palavra perigosa, que tratamos como uma muito bonita, mas esse ideal é uma forma muito perversa —amor como posse, como exclusividade, como entrega. Quando a gente pensa especificamente na história das travestis, os estudos indicam que, na maior parte das vezes, a travesti contrai HIV do namorado. Quando a pessoa deixa de ser cliente e passa a ser namorado, a primeira coisa é abolir a camisinha. O que significa o amor, então, para essa comunidade? Um amor que muitas vezes é migalhas, esse amor que se esconde no motel, não assume para a família. Quais são os corpos que podem andar de mãos dadas, que podem ser apresentados pra família, para os amigos? Fico sempre me perguntando se era algo pelo qual, de fato, deveríamos lutar. No “Neca”, eu trago um pouco dessas dúvidas. O amor não resolve nada e pode complicar mais ainda as coisas.

  • G |Como autora, te interessa debater esse lado ruim do amor? Existe algum tipo de amor que é legal?

    AM |

    A Rita Von Hunty tem uma frase que diz: “O amor ideal é uma espécie de amizade com momentos eróticos”. Eu gosto muito dessa ideia do amor como um vínculo que não depende da pessoa abrir mão de outros vínculos para que fique segura. O amor que cobra é muito perverso e precário. A pessoa com que eu transo é mais importante na minha vida do que a minha amiga de 20 anos, que acompanha todos os meus bos e segurou a minha mão? Não tem hierarquia. Minha ideia de amor é a de uma amizade radical, que pode comportar sexo inclusive.

  • G |Como autora, você escreve muito sobre erotismo. Mas e o amor, acha que ainda vai explorar?

    AM |

    Esse sentimento ainda é muito central na nossa sociedade. Eu não gostar dele não significa que ele não seja um acontecimento incontornável. Pensando nos nossos romances românticos como “Iracema”, a guardiã da Jurema, um segredo ancestral, ela tem que permanecer virgem, mas ela se apaixona e se envolve com esse cara. Ela não deveria fazer isso, mas, por amor, ela contraria todas as tradições do seu povo e acaba precipitando uma guerra que vai ter repercussões catastróficas. E tudo isso por amor. Valeu a pena? Ai, não. Parece Hollywood: o mundo está acabando, mas o casalzinho ficou junto no final e aí tudo bem. Não tá tudo bem, né? Mas isso vende, é desejável ter alguém que sacrifique tudo por nós. Eu luto contra isso, mas lutar contra isso quer dizer que eu pretendo escrever sobre isso também.

Começamos a ver os envolvimentos afetivos e sexuais como um risco, uma violência possível, algo do nosso tempo

  • G |O que você está descrevendo parece um amor maldito.

    AM |

    Mas é o amor comum, o que nos alimenta todo dia. É o amor que diz que você vai ter que deletar e bloquear suas suas ex-companheiras e ex-companheiros nas redes sociais. É a coisa do mundo heteronormativo, que homem só pode ter amizade com homem. Mas, com a emergência da presença LGBT na sociedade, isso vai bugando completamente. O que era um espaço seguro, homens estarem com homens, de repente virou um banheiro-pegação. Essa ideia de amor é algo que me parece apavorante e eu luto com todas as minhas forças contra ela.

  • G |Você citou “Iracema” e, como alguém imersa na literatura, como fazer uma leitura atualizada do amor que está no cânone?

    AM |

    Eu amo “Iracema”, acho o livro incrível, e quero disputar novas novas formas de olhar para essa obra. “Nossa, olha que lindo, ela sacrificou tudo pelo amor”. Não, é bem assim. É mais: “Gata, você tem compromissos aqui com o seu povo, você está ameaçando o futuro do seu povo e pelo quê, sabe?” Como é que a gente vai ler isso? Essas obras forjaram nosso pensamento, a nossa sociedade, os nossos valores.
    Eu amo o Dom Casmurro, que foi publicado ali na viradinha do século 19 para o 20. Nos 50 anos primeiros anos desse livro, a dúvida era se a Capitu traiu mais de uma vez. Nos anos 1950, chega uma crítica literária americana, lê o livro e fala: “Gente, vocês estão viajando, não tem nenhuma prova contundente de que houve uma traição aqui”. Inclusive, há pistas de que o Bentinho é completamente paranoico e louco. Já nos anos 1960, o livro é lido com um estudo do ciúme. O Silviano Santiago diz: “Esse livro é um uma investigação sobre como os homens se comportam quando desconfiam das suas companheiras”. Era um livro misógino e agora parece um livro feminista. E o que mudou? A forma como olhamos esse livro. O significado dos livros não está dado, depende de nós também, de como a gente vai transformá-los, de como a gente vai deixar nossa marca de leitura.

  • G |Aumentaram muito as publicações de autores e autoras transsexuais. Acha que o amor está bem retratado nelas?

    AM |

    “Monstrans — Experimentando Hormônios”, é um livro em quadrinhos que eu amo de paixão, muito caótico, de uma figura que é um divisor de águas para mim das produções de autoria trans, o Lino Arruda. Ele publicou mais recentemente um outro livro chamado “Cisforia: O pior dos dois mundos”, que é um um negócio meio “Black Mirror” transfeminista torto: os homens cis têm um chip implantado na cabeça e, sempre que ficam de pau duro, surge uma tela para ver se estão abusando de alguém. Então o cara está dormindo e tem uma ereção involuntária, está se masturbando sozinho ou está transando com alguém, aparece a tela. Começamos a ver os envolvimentos afetivos e sexuais como um risco, uma violência possível, algo do nosso tempo. Tem essa romantização do amor e ao mesmo tempo que tem problema. Por isso que eu falo tanto de tesão, sexo e desejo nas minhas obras. O sexo também tem virado um ponto de violência no discurso ativista militante. Só sabemos falar de sexo para denunciar a violência. Então, essa reivindicação do direito ao gozo, ao prazer, a essa experiência incontornável que é o desejo, parece que está em segundo plano. Essas denúncias vêm com um monte de olhar normativo — se vê uma pessoa mais velha com uma pessoa mais nova, ou é golpe da mais nova, ou o mais velho está abusando. Por isso o nosso ideal de relacionamento são pessoas parecidas, caso sejam diferentes, alguém está sendo violentado. Talvez estejamos perdendo de vista o gozo, o tesão, o prazer, ao focar muito nessa experiência da violência, da denúncia.

O gozo, o prazer, o amor são teatrinhos, brincadeiras. Precisamos poder falar sobre tudo isso de uma forma mais leve, sem todo esse peso moral

  • G |Acha que o seu jeito de amar foi mudando com você?

    AM |

    Sim, o jeito de amar, o desejo e quem eu acho atraente. O poeta Glauco Mattoso, no começo do movimento LGBT, no final dos anos 1970, teve que suprimir o lado fetichista dele para caber dentro daquele ideal de revolucionário homossexual. Não tinha ativo nem passivo, quem manda ou obedece. Ele conta que teve que romper porque o movimento revolucionário não dava conta de lidar com as suas fantasias, seu desejo peculiar. Ele gostava de ter quem manda e quem obedece. Uma coisa é você sair mandando, tratando mal as pessoas, outra é você canalizar isso para um momento erótico com uma pessoa que vai sentir prazer em ter esse tipo de tratamento. É um teatrinho. O gozo, o prazer, o amor são teatrinhos, são brincadeiras. Precisamos poder falar sobre tudo isso de uma forma um pouco mais leve, sem todo esse peso moral, sem essas identificações imediatistas de “se gosta de fazer isso na vida privada com a companheira ou com companheiro é uma pessoa terrível, ruinzona, malvada”.

  • G |É mais fácil ou mais difícil ter um relacionamento amoroso hoje?

    AM |

    Quando eu me tornei uma pessoa mais conhecida, isso mobiliza desejos e fantasias. Eu sou bissexual, mas faz tempo que eu tenho sentido um pouco de preguiça de homens. Então, chegam mensagens e eu ignoro. Tem perfil fake criado só para ir atrás de travestis.

  • G |Quais são as suas referências, seus principais autores que escrevem sobre o amor? Que livros você indica pra quem quer se reconectar mais com o tema?

    AM |

    O conto “Frederico Paciência”, que Mário de Andrade ficou 20 anos escrevendo, só foi publicado depois que ele morreu. Ele nunca o mostrou porque é um conto muito revelador, em primeira pessoa, em que ele brinca ao sugerir que pode ser autobiográfico. É um conto que fala de amor de dois meninos de forma aberta e sem patologização. É também um amor que se desfaz, eles vão ficando distantes, frios, cada um toca a sua vida. Também é bonito isso, não é um amor pra vida inteira, esse amor “sem você a minha vida acabou”. Ele coloca tudo isso no discurso dos adolescentes, que prometem fechar o olho do outro quando morrer, cuidar um do outro a vida inteira e, de repente, um mês depois, nem lembram mais. Isso também é bonito.

Produto

  • Neca
  • Amara Moira
  • Companhia das Letras
  • 120 páginas

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