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ReportagemGolpe militar, 60 anos: como lidar com os traumas da ditadura
Memória, produção cultural, exposição do regime autoritário, responsabilização, educação e grupos de reflexão são caminhos para o Brasil elaborar fase traumática da nossa história
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Golpe militar, 60 anos: como lidar com os traumas da ditadura
Memória, produção cultural, exposição do regime autoritário, responsabilização, educação e grupos de reflexão são caminhos para o Brasil elaborar fase traumática da nossa história
Seis décadas após o início da ditadura militar que assolou o Brasil de 1964 a 1985, período marcado por um regime autoritário que perseguiu, cerceou, sequestrou, torturou e assassinou opositores políticos, além de censurar a imprensa, o país ainda não elaborou esse trauma que deixou feridas profundas abertas na sociedade. E, ao contrário das prescrições médicas para as lesões cutâneas, nesse caso, segundo profissionais da psicologia, da psicanálise, do direito, da educação e das artes, o ferimento deve, sim, ser tocado e remexido para enfim cicatrizar.
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Entretanto, na contramão dos vizinhos Argentina e Chile, que também viveram governos ditatoriais na segunda metade do século 20, mas que passaram por um sério processo de responsabilização, resgate histórico, adoção de políticas de reparação e exposição do terrorismo cometido pelo Estado, por aqui, muito pouco foi feito.
Tivemos avanços, como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída em 1995 e extinta em 2022, e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 com o objetivo de investigar violações de direitos humanos. Finalizada em 2014, a CNV chegou a responsabilizar 377 pessoas por torturas e assassinatos durante a ditadura, mas já naquela época um terço dos militares apontados como responsáveis pela barbárie dos anos de repressão haviam morrido e, até hoje, efetivamente, não houve nenhuma implicação criminal a esses agentes estatais.
Punir os culpados, ressignificar endereços usados para o cometimento de crimes de lesa-humanidade — como, na Argentina, o museu da Esma (antiga Escola Superior de Mecânica da Armada, um centro do terror em Buenos Aires) — e construir locais dedicados à recordação dos tempos de horror — a exemplo do chileno Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago — cumprem um papel didático fundamental para que os mais novos conheçam o que foi vivenciado no passado.
No centro de São Paulo, o Memorial da Resistência tem essa função, mas ainda é pouco divulgado e conhecido. Em setembro de 2023, o ex-ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou a criação de um espaço nos moldes do museu chileno, mas há alguns dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desistiu da ideia, assim como cancelou os atos dos 60 anos do golpe, a fim de não provocar qualquer desavença com os militares. Lula disse ainda que não quer remoer o passado e que a ditadura faz parte da história.
Mas, na opinião de especialistas, atitudes como essas são prejudiciais à vida democrática. De acordo com Rodrigo Basílio, professor da Escola de Aplicação da FEUSP, mestre em história da memória da ditadura militar pela USP e criador de conteúdo no canal do YouTube Historiando, a memória é uma maneira de assimilar experiências passadas.
Um país que vive duas décadas de autoritarismo e não trata isso vê, dia após dia, o mesmo autoritarismo se repetir
Ele explica que, como o Brasil não lidou com esse passado autoritário, sobretudo pela promulgação da Lei da Anistia, que perdoou os responsáveis pela perpetuação da violência naquela fase, é necessário lembrá-lo sempre. “É uma forma de construir, de fato, uma democracia sólida, capaz de lidar com as suas experiências autoritárias, conseguindo enxergar essas experiências, negá-las e superá-las.”
“Um país que vive duas décadas de autoritarismo e não trata isso vê, dia após dia, o mesmo autoritarismo se repetir, agora não em relação a presos políticos, mas em relação às populações periféricas e pobres. Pensar na ditadura militar, rememorá-la e discutir exaustivamente o que foi aquilo nos ajuda a perceber que existem vários elos de continuidade entre o regime autoritário e o regime democrático”, afirma Basílio.
Psicanalista e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, Vera Iaconelli fala que é ingênuo pensar que a opressão, dentro do capitalismo, pode ser erradicada, já que ela é estruturalmente desenvolvida para alguns oprimirem outros. “E nessas situações extremas nas quais isso acontece — em governos autoritários, ditatoriais e fascistas —, os abusos só tendem a se repetir.”
A democracia está ameaçada de forma perene no capitalismo
Para Iaconelli, situações do tipo só podem ser evitadas com educação e responsabilização. Mesmo assim, conforme acredita, não há uma solução definitiva que garanta que um novo golpe não possa surgir — o 8 de janeiro de 2023 está aí para provar — e, por isso, a democracia deve estar sob eterna vigilância.
“A democracia está ameaçada de forma perene no capitalismo e, ao fim e ao cabo, nas relações humanas. O risco de um oprimir o outro está colocado desde o começo. Então, acho que é preciso um combo de ações e reflexões que não pode ser achatado nunca”, reforça.
Pensando em como elaborar os traumas ocasionados pela ditadura nestes 60 anos do golpe, e para que essa fase violenta e cruel da nossa história não volte a acontecer, Gama consultou psicólogos, psicanalistas, escritores, advogados, historiadores e cineastas que apontaram alguns caminhos.
Educação
O professor Rodrigo Basílio comenta que o Brasil e muitos países ao redor do mundo têm o grande desafio de construir uma cultura democrática com as novas gerações, que não creem na democracia e rejeitam o ritmo do processo democrático. “Temos visto, cada vez mais, a juventude se encantar com discursos prontos, autoritários, que prometem soluções rápidas e mobilizam paixões, principalmente ódios e intolerâncias”, alerta.
A primeira coisa a ser feita nesse sentido, diz Basílio, “é a criação de uma política pública que trate da memória acerca da ditadura”. “Por isso, me preocupa quando o governo federal, numa efeméride do golpe de 64, opta por silenciar e não promover manifestações e debates públicos.”
A opinião é a mesma de Mário Medeiros, professor do departamento de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e diretor do Arquivo Edgard Leuenroth. “A pior atitude que um governo pode ter é a de se omitir numa data como esta, tendo em vista que o Estado, seus funcionários e recursos foram utilizados como agentes repressores, violentos e terroristas. Não se pode silenciar o passado. Recordar e promover debates não significa remoer. Pelo contrário: trata-se de promover uma cultura democrática e de garantir elementos para que se conheça o que ocorreu, posicionando-se para que não volte a acontecer no presente e no futuro. A ausência de uma educação política para uma cultura democrática, baseada no silenciamento sobre a ditadura civil-militar, nos conduziram para os eventos de 8 de janeiro de 2023”, discorre.
Não se pode silenciar o passado. Recordar e promover debates não significa remoer
Basílio relata que o docente, individualmente em sala de aula, pode levar a temática aos estudantes, porém, quando o Estado brasileiro escolhe o silêncio e não propõe um debate público há um esvaziamento simbólico na disputa da memória, o que faz com que os jovens olhem para o passado ditatorial com simpatia, muitas vezes reproduzindo lembranças e percepções absorvidas da família ou da internet.
Além de trabalhar o assunto na escola, ele exalta a importância da visitação pedagógica a espaços como o Memorial da Resistência e o antigo DOI-Codi — central de terrorismo contra opositores do sistema durante os anos de chumbo (1968 e 1974) localizada na rua Tutóia, em São Paulo. “Essas estratégias servem para que a gente consiga entender esse passado não apenas nas dimensões política e econômica, mas na sua dimensão sensível, compreendendo como as pessoas foram presas, torturadas, mortas e desaparecidas por divergências políticas.”
O professor Basílio acrescenta outro: os profissionais da educação precisam ter respaldo para abordar essa conversa em sala, pois, nos últimos anos, o trabalho pedagógico de muitos educadores sofreu com censuras.
“Tenho certeza que vários colegas devem ter pensado em trabalhar a temática da ditadura e os 60 anos do golpe, mas tiveram receio de perseguição e coerção dentro do espaço escolar. Em escolas privadas, então, há até o risco de demissão ao pautar esse debate”, salienta.
Grupos de reflexão
A memória coletiva é essencial para a elaboração do trauma. Os sobreviventes de eventos chocantes relacionados à ditadura — presos políticos, torturados ou familiares de mortos e desaparecidos — lutam por direitos à memória, à verdade e à justiça para que nenhum fato seja esquecido e, assim, possa ocorrer a responsabilização dos agentes públicos e privados envolvidos e para que esses indivíduos e nós, como sociedade, possamos conviver melhor com a democracia.
Mas conforme indica o professor da Unicamp Mário Medeiros, para que tudo isso ocorra, é indispensável que “nós, no presente, nos comprometamos em ter, primeiro, a escuta sensível para ouvir o que aqueles e aquelas que lutaram contra a ditadura e foram atingidos por ela têm a dizer”.
Essa escuta ativa e acolhedora chegou a acontecer nas Clínicas do Testemunho, dispositivo iniciado em 2013 e encerrado em 2017, no governo do ex-presidente Michel Temer, que proporcionou atendimento psicológico, individual e em grupos, a pessoas afetadas direta ou indiretamente pela violência estatal.
O programa, de acordo com Maria Beatriz Vannuchi, psicanalista e analista institucional que trabalhou numa Clínica do Testemunho, foi pensado como “uma forma de compartilhamento de experiências que, quando partilhadas e testemunhadas por indivíduos que vivenciaram algo semelhante, podem agir validando os impactos e os efeitos de destruição causados na subjetividade”.
O trauma não é fruto exclusivamente da violência, mas do silenciamento ou da impossibilidade de nomeação da violência
Vannuchi explica que muitas dessas pessoas viveram um silenciamento posterior à experiência da violência sofrida. “Esse silenciamento crava o que a gente fala da experiência traumática, porque o trauma, a partir da perspectiva psicanalítica, não é fruto exclusivamente da violência, mas do silenciamento ou da impossibilidade de nomeação da violência”, desenvolve.
O trauma, segundo Vannuchi, é justamente aquilo que não se inscreve no repertório subjetivo da pessoa. E como foi uma violência social, ela não se inscreve também porque não há uma validação social do que foi vivido. “A tortura faz calar. Aparentemente, ela faz dizer, é feita para que seja dito, mas o que ela faz no sujeito é calar. Então, a ideia das Clínicas do Testemunho foi abrir esse espaço de fala.”
Para quem participou, conta a psicanalista, o programa foi de extrema importância, porém, muitas pessoas deveriam continuar o tratamento. “Mais do que uma continuidade das clínicas de testemunho, no sentido estrito do projeto, seria bem-vinda a inclusão do atendimento de vítimas da violência no SUS”, finaliza.
Produtos culturais
Tão importantes quanto a construção e a preservação de museus que escancaram os horrores da ditadura são os produtos culturais sobre o tema, como livros, filmes e peças teatrais.
A cineasta carioca Lucia Murat, que foi presa pelo regime de 1971 a 1974, dedica boa parte de sua obra à narração do período em longas-metragens como “Que Bom Te Ver Viva” (1989), “Uma Longa Viagem” (2012), “A Memória que Me Contam” (2013) e “Ana. Sem Título” (2020).
Ela acha que essa produção é importantíssima, mas, ao comparar com o que o cinema argentino apresenta a respeito da ditadura local, “o Brasil tem muito pouco trabalho para ser visto”. A diretora pondera que, ao contrário daqui, lá os algozes do sistema foram julgados. “Temos um problema muito sério com a memória da história brasileira em geral, desde a escravidão e, particularmente, com a ditadura.”
Murat pensa que falta ainda a criação de museus e de centros de direitos humanos. “Já tentamos várias vezes fazer isso e ainda não conseguimos. Sem contar que falta dar continuidade à Comissão da Verdade e à Comissão de Mortos e Desaparecidos, por exemplo, que não foi restaurada pelo governo”, critica.
Autor de “Cartas de Paris, Notícias do Brasil” (Autêntica, 2023), o advogado criminalista Eduardo Muylaert retrata no livro a sua vida de estudante em Paris de 1969 e 1972, época em que trocava correspondências com os pais e o avô. Ora com objetividade, ora com sutilezas, os parentes narravam o que acontecia no país do AI-5, ato institucional que marcou os anos mais duros da ditadura.
Para ele, publicações como a sua têm relevância por oferecerem um resgate da memória. “Percebo que os jovens não sabem quase nada dessa história, não têm ideia do que é uma ditadura. Parte da população tem um encantamento com a ideia da ordem imposta à força e por regimes mais policialescos. E isso decorre de uma profunda ignorância”, aponta.
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